O ATALHO

Ana Maria Coelho Carvalho – Bióloga – Uberlândia – anacoelhocarvalho@terra.com.br

Tenho horror a atalhos em estradas, sou traumatizada. Tudo porque, na década de setenta, passei pela experiência que passo a relatar.
Costumávamos passar o Natal com a família do Zé, então meu marido e agora já falecido. Certa vez estávamos indo do Carmo do Rio Claro para Paraisópolis, no sul de Minas. O Zé, compenetrado, dirigindo um Opala branco de seis cilindros. No banco da frente, bem confortável, ia a minha sogra, gente boa, mas espaçosa. Eu, espremida no banco de trás com quatro filhos, com idade entre dois e oito anos (naquela época, ninguém usava cadeirinha). Chegando em Machado, o Zé resolveu atalhar o caminho para Pouso Alegre (ou seja, abreviar, encurtar, resumir). Saiu do asfalto e entrou por uma estrada em construção, de barro vermelho e grudento. O Opala descia o morro deslizando, debaixo de uma chuvinha fina. Depois de meia hora, chegamos a uma lagoa que atravessava o caminho. Do outro lado, avistava-se algo parecido com estrada. Perto havia uma casinha com uma mulher curiosa olhando pela janela. O Zé perguntou-lhe se dava pra passar, ela balançou a cabeça afirmativamente e o Zé foi. Foi e ficou. O Opala afundou na lagoa, que felizmente era bem rasa. Retiramos as crianças do carro, mas a sogra se negou a descer no barro. Arrumei uma pinguela para ela, uma tábua velha que ia do carro ao barranco. Para desatolar o Opala, alguns homens generosos fizeram, com enxadas, um canal para esvaziar a lagoa. Depois, o empurra-empurra e eu no meio, com barro nos “zóio, zovido e zóreia”. Mas o Opala nem mexia. Alguém teve ideia de arranjar uns bois. Eles foram encontrados em uma fazendinha próxima e atrelados no carro por meio de cordas. Daí o Opala saiu. Mas era preciso voltar para o asfalto, ou seja, o carro teria que subir um tobogã de lama. Atolamos novamente, com a chuva caindo e a noite também. Tínhamos saído de manhã e sem o atalho, a viagem seria pertinho, pertinho ( naquela época, não existia celular, sem chances de avisar a família ou de pedir algum socorro).
Já nos preparávamos para passar a noite dentro do carro, quando resolvi sair com o filho corajoso, de sete anos, pedir algum cantinho para passar a noite, nas fazendinhas por perto. Como mineiro é desconfiado, ninguém ajudou. E ainda tivemos que correr de uns cachorros bravos, na chuva. Pensei no restante da família, que deveria estar desesperada, julgando-nos mortos ou desaparecidos, e animei o Zé para tomarmos alguma atitude. Deixamos então as crianças no carro com a sogra e saímos pela estrada, na noite escura e chuvosa. E eu já sem sapatos, que ficaram atolados na lama. Como Deus é Pai, encontramos o acampamento da empreiteira que estava construindo a estrada. Batemos na porta de uma casinha que estava com a luz acesa e, acreditem se quiser, atendeu um homem que se chamava Salvador. Encharcados e tremendo de frio, relatamos todo o ocorrido. Ele deve ter pensado que éramos loucos em entrar em uma estrada como aquela (aliás, eu não, o Zé, a ideia do atalho foi dele). O Salvador então subiu em uma patrola amarela enorme, com uma lâmina de uma tonelada na frente. Como só existia o banco do motorista, o Zé dependurou-se em uma janela e eu na outra, tentando me equilibrar nas alturas, com a chuva e o vento fustigando meu rosto. Pronta pra cair, ser soterrada no barro e compactada pela patrola. Quando a máquina se aproximou do carro, com a sua luz muito forte, as crianças começaram a gritar de terror, pensando que fosse um disco voador (a esta altura, já tinham comido as duas caixas de bombons que seriam dos amigos invisíveis).
Enfim, o Opala foi puxado com cabo de aço até o asfalto. Paramos no Posto Fernandão para avisar a família e limpar um pouco do barro. Joguei minhas roupas no lixo, vesti um vestidinho amarelo de florzinha e chegamos em Paraisópolis de madrugada.
De tudo isso, além de muita história pra contar, restou um consolo: minha sogra passou a considerar-me uma heroína. Quanto ao Zé, entrou no atalho para chegar mais cedo e assistir na TV o jogo Cruzeiro X Internacional. Perdeu o jogo. Bem feito.

Difícil de acreditar

Paulo Henrique Coimbra de Oliveira – Economista – RJ

Custei a acreditar que o comandante do exército se reúne com Alexandre de Moraes na calada da noite. E o recebe na sua casa. Vão tratar o quê? Se for social até entendo. Mas a mídia mostrou à exaustão o encontro. E depois dele decisões foram tomadas. E posteriormente o comandante comparece a uma sessão da Câmara e é desmoralizado por um deputado. Que exército é este? Nem como o da Salvação podemos caracteriza-lo. É uma força subalterna como bem disse Flávio Dino. E subalterno a interesses excusos conforme já comprovado. Só vejo uma saída para o general. Ou se demite ou num rasgo de patriotismo se encontre novamente com Alexandre de Moraes só que da próxima vez para prende-lo.

Sucessão?

Tania Tavares – Professora – SP

Este embate do Lira (CPIs) entre a Câmara e o Senado/STF é fogo de palha. O ano que vem vamos ter um novo Presidente da Câmara, e Lira quer continuar recebendo as “mordomias ” do cargo, não quer receber café frio!

Eles querem liberdade de expressão para defender criminosos!

Autor: Rafael Moia Filho – Escritor, Acadêmico da ABLetras, Blogger, Analista Político e Graduado em Gestão Pública.

Os deputados ligados a Bolsonaro estão dizendo no exterior que o Brasil virou uma ditadura do judiciário. Interessante que, até outro dia, o próprio Jair Bolsonaro defendia a ditadura militar que aconteceu no país entre 1964-1985. Defendeu e ainda defende o torturador Cel. Ustra, que torturou inocentes nos porões do DOI-CODI sob a complacência do exército e da grande mídia nacional.
Agora, 39 anos depois, o filho de Jair, o deputado federal Eduardo Bolsonaro acusa o Brasil de ser uma ditadura. Afinal, eles gostam ou não de ditadura? Que ditadura é essa que funciona com todas as instituições democráticas e com liberdade de imprensa?
No episódio mais recente e patético, os mesmos políticos de direita votaram para que o mandante dos assassinatos de Marielle e seu motorista Anderson ficasse livre da prisão. Em 2017, queriam, Lula preso mesmo sem terem provas, num tribunal de exceção montado no picadeiro de Moro e Deltan em Curitiba, mas não querem um mandante de assassinatos preso?
Com relação ao deputado Domingos Brazão, preso por ser o mandante dos crimes de assassinato, logo que este recebeu ordem de prisão, os deputados de direita correram as redes sociais tentando associá-lo ao PT. Entretanto, a mentira não resistiu a cinco minutos na mídia, visto que o mandante de assassinatos sempre apoiou Bolsonaro em campanhas eleitorais na baixada fluminense. São ambos apoiadores de milicianos.
Essa escória política, ralé do baixo clero do submundo da política nacional defende tudo que a esquerda é contrária, porém, sem terem provas, argumentação e inteligência.
Perderam a eleição limpa e democrática, não conseguiram encontrar uma prova sequer de fraude, acusam quem defendeu a lisura do processo eleitoral e defendem quem disseminou fake news criminosas antes e durante as eleições.
O deputado federal sem projetos e completamente improdutivo Eduardo Bolsonaro pagou o consultor político argentino Fernando Cerimedo para atuar em sua campanha de reeleição à Câmara dos Deputados. O mesmo foi usado para espalhar mentiras sobre as urnas eletrônicas.
Esses deputados e senadores improdutivos da extrema direita nacional criaram uma narrativa mentirosa para poder manter os seus eleitores e apoiadores em transe. É impensável que em pleno século XXI, era da informação e da tecnologia avançada, tenhamos no Brasil tanto atraso, tantos brasileiros cegos, surdos e mudos, votando e apoiando pessoas que não fazem nada pelo país nem pela sociedade e ainda por cima trabalham contra os trabalhadores, as mulheres e os pobres.

Autor: Rafael Moia Filho – Escritor, Acadêmico da ABLetras, Blogger, Analista Político e Graduado em Gestão Pública.

Os deputados ligados a Bolsonaro estão dizendo no exterior que o Brasil virou uma ditadura do judiciário. Interessante que, até outro dia, o próprio Jair Bolsonaro defendia a ditadura militar que aconteceu no país entre 1964-1985. Defendeu e ainda defende o torturador Cel. Ustra, que torturou inocentes nos porões do DOI-CODI sob a complacência do exército e da grande mídia nacional.
Agora, 39 anos depois, o filho de Jair, o deputado federal Eduardo Bolsonaro acusa o Brasil de ser uma ditadura. Afinal, eles gostam ou não de ditadura? Que ditadura é essa que funciona com todas as instituições democráticas e com liberdade de imprensa?
No episódio mais recente e patético, os mesmos políticos de direita votaram para que o mandante dos assassinatos de Marielle e seu motorista Anderson ficasse livre da prisão. Em 2017, queriam, Lula preso mesmo sem terem provas, num tribunal de exceção montado no picadeiro de Moro e Deltan em Curitiba, mas não querem um mandante de assassinatos preso?
Com relação ao deputado Domingos Brazão, preso por ser o mandante dos crimes de assassinato, logo que este recebeu ordem de prisão, os deputados de direita correram as redes sociais tentando associá-lo ao PT. Entretanto, a mentira não resistiu a cinco minutos na mídia, visto que o mandante de assassinatos sempre apoiou Bolsonaro em campanhas eleitorais na baixada fluminense. São ambos apoiadores de milicianos.
Essa escória política, ralé do baixo clero do submundo da política nacional defende tudo que a esquerda é contrária, porém, sem terem provas, argumentação e inteligência.
Perderam a eleição limpa e democrática, não conseguiram encontrar uma prova sequer de fraude, acusam quem defendeu a lisura do processo eleitoral e defendem quem disseminou fake news criminosas antes e durante as eleições.
O deputado federal sem projetos e completamente improdutivo Eduardo Bolsonaro pagou o consultor político argentino Fernando Cerimedo para atuar em sua campanha de reeleição à Câmara dos Deputados. O mesmo foi usado para espalhar mentiras sobre as urnas eletrônicas.
Esses deputados e senadores improdutivos da extrema direita nacional criaram uma narrativa mentirosa para poder manter os seus eleitores e apoiadores em transe. É impensável que em pleno século XXI, era da informação e da tecnologia avançada, tenhamos no Brasil tanto atraso, tantos brasileiros cegos, surdos e mudos, votando e apoiando pessoas que não fazem nada pelo país nem pela sociedade e ainda por cima trabalham contra os trabalhadores, as mulheres e os pobres.

SUCESSÃO?

Tania Tavares – Professora – SP – taniatma@hotmail.com

Este embate do Lira (CPIs) entre a Câmara e o Senado/STF é fogo de palha. O ano que vem vamos ter um novo Presidente da Câmara, e Lira quer continuar recebendo as “mordomias ” do cargo, não quer receber café frio!

Quanto mais Democracia, mais Saúde ?

Dr. Flávio de Andrade Goulart*

O tema da democracia esteve em alta no início do mês de abril, por motivo do sexagésimo aniversário do golpe militar de 1964. Há controvérsias quanto à data exata do evento: 28 ou 31 de março. Mas, convenhamos, a data mais adequada seria o dia 1º de abril. A respeito de tal palavra – democracia – há uma reiterada afirmativa, por parte dos militantes do SUS, de que exista uma relação direta entre a qualidade e a efetividade da saúde do Brasil com o grau de democracia aqui praticado. Sinceramente, não sei se é bem assim, ou pelo menos não creio que haja uma correspondência direta entre uma coisa e outra. Senão, vejamos. Na verdade, a militância, principalmente a mais tradicional dá como existir relação totalmente biunívoca, ou seja: mais saúde é igual mais democracia e mais democracia corresponde a mais saúde, como se uma coisa dependesse e fosse capaz de gerar a outra. Entretanto, penso que são coisas distintas, as quais não adianta tentar ungi-las com alguma aproximação genérica, embora não tenha dúvidas de que continua valendo a pena lutar pelas duas. Uma coisa é certa: a palavra democracia se presta a variados usos e devemos cuidar de não a vulgarizar ou camuflar, tomando-a pelo que ela definitivamente não é. Podemos trazer a argumentação para realidades mais próximas a nós ou relativas à época em que vivemos.
Tomo com exemplo os casos de Cuba e EUA. De um lado um regime socialista, com forte ou quase total presença estatal, planejamento centralizado e forte; de outro, o império da livre iniciativa, das forças de mercado e da pulverização de qualquer tendência centralizadora. De um lado um regime de partido único, com eleições diretas apenas no nível legislativo e sagração de lideranças a partir de decisões de um politburo; do outro um processo ascendente de escolhas, disputas à luz do dia (ou quase), grandes convenções políticas festivas e liberdade partidária.
Pois bem, ambos os países se tomam como democráticos. Os EUA, aliás, se consideram não só a verdadeira pátria de nascimento, mas também se veem como verdadeira polícia da proteção da democracia no mundo. Mas na saúde, Cuba tem indicadores melhores do que a nação mais ao Norte. Não só em termos de mortalidade infantil ou por doenças crônicas, por exemplo, mas também nas infecciosas agudas, nutricionais e causalidades externas, para não falar nas facilidades de acesso à saúde incomparavelmente maiores do que ao norte do Golfo da Flórida. Não custa indagar: como se sustenta, diante disso, aquela frase entusiástica dos militantes do SUS? Não se sustenta, claro, a não ser à custa de alguns subterfúgios…
E o Brasil? Nosso país é formalmente classificado como democracia, embora sob ameaças constantes, mas o essencial nós ainda temos: eleições diretas; liberdade de expressão e reunião; imprensa que às vezes tropeça, mas dá conta do recado; partidos políticos variados (até demais…); três poderes em atividade etc. Mas em matéria de saúde todos sabemos das limitações do panorama, com indicadores apenas sofríveis e muitos deles em declínio. O surgimento da pandemia, no contexto do governo negacionista, irresponsável e incompetente, pôs a nu nossa fragilidade sanitária. O SUS segurou a barra como pôde, mas fosse ele mais robusto e fortalecido pelas políticas públicas e pelo apoio dos cidadãos – e isso não vem de hoje – talvez o resultado de sua ação fosse ainda melhor, sem chance de que um governo o debilitasse tanto, como aconteceu nos últimos anos temer-bolsonaristas. Mas apesar de tudo não é o caso de desprezar o SUS e muito menos ignorar que sem ele a situação ainda seria pior. O nascimento do SUS coincide com a redemocratização do país, mas nem assim creio que a questão da democracia faça parte direta da equação da saúde. Uma ditadura até poderia fazer mais pela saúde, embora, sem dúvida e por muitas outras razões, seja melhor apostar na democracia, mesmo capenga como a que temos.
Assim, cabe introduzir conceitos próximos, porém diferenciados, na discussão, ou seja, igualdade e liberdade, para definir se isso teria de fato influência sobre o estado de saúde de uma dada população.
O que seria, afinal uma boa democracia ou, para não corrermos o risco de adicionar juízos de valor muito abrangentes, uma democracia que realmente funcione? Apenas como aproximação ao cerne da questão arrisco um palpite: democracia, na saúde, pelo menos, seria aquela situação em que a liberdade e a igualdade estejam em equilíbrio – e que este seja o mais estável possível. Voltemos ao exemplo acima: em Cuba, em nome da igualdade foi sacrificada a liberdade; nos EUA se daria o inverso: muita liberdade de ação e restrições fortes a uma igualdade verdadeira.
Liberdade, sem dúvida, é uma bela e legítima aspiração, mas é bom lembrar que na saúde ela pode significar a capacidade de agir dentro de uma lógica de mercado, no que os principais beneficiários serão sempre aqueles que fazem parte daquela minoria de portadores das chaves capazes de abrir as sucessivas catracas físicas e financeiras que se interpõem a um atendimento digno e necessário. É assim que a igualdade se esvai.
Entre a liberdade e a igualdade, portanto, existe um equilíbrio delicado e difícil de se obter, um dilema do qual a maioria dos sistemas de saúde atualmente em vigor não escapam. É aí que entra o Estado, que o velho Marx já havia sentenciado com um “escritório de interesses da burguesia” – ou de interesses do Mercado, se quisermos.
Conclusão óbvia, que contraria o dito dos próceres da nossa reforma sanitária: para discutir democracia, assim como liberdade e igualdade temos, primeiro, que nos ater à forma de organização do Estado, sendo a saúde consequência disso, não propriamente um fator capaz de gerar maior ou menor conteúdo democrático à vida social.
Vale lembrar também que a Saúde é algo que depende de múltiplos fatores, entre eles a renda, a educação, o acesso a serviços, a qualidade de vida, o mundo do trabalho, as desigualdades sociais em geral. Já a Dona Democracia, esta pobre senhora tão ameaçada nos dias de hoje, ela pode não ser um fator determinante, mas sem dúvida é benfazeja não só para a Saúde, para a Educação, para a Justiça, ou qualquer tipo de política social, enfim. Em conclusão, as lutas por mais saúde e por democracia podem e devem ser convergentes, mas as duas coisas, em termos de essência e metas, são essencialmente distintas.
A este respeito. li, há tempos um artigo da revista The Lancet no qual os autores indagam se os estatutos da democracia contribuem realmente para a saúde pública, recorrendo a estimativas de mortalidade por causas específicas e expectativa de vida livre de HIV, além de dados da carga global de ferimentos e fatores de risco, relativos a 2016. Cotejando tudo isso com informações sobre o tipo de regime foi analisada a associação entre a democratização e a saúde da população em 170 países, no período de 1980 a 2016. Assim, descobriu-se que a expectativa de vida adulta livre de HIV melhorou mais rapidamente nos países em desenvolvimento que fizeram a transição para a democracia no último meio século.
E mais: que a qualidade da vida democrática, particularmente definida como ocorrência de eleições livres e justas, seria responsável por 22% da variação positiva nas doenças cardiovasculares, 18% nas lesões de trânsito, 17% na tuberculose, 10% no câncer, com frações menores para outras doenças, principalmente não transmissíveis. Isso parece ser mais influente do que próprio PIB, que seria responsável por apenas 11% da variação nas doenças cardiovasculares e 6% no câncer, por exemplo. A “qualidade da democracia” não parece estar associada a aumentos no PIB per capita, mas está associada a declínios na mortalidade por doenças cardiovasculares e aumentos nos gastos públicos em saúde.
Será que nós realmente precisamos de democracia? – indagam os autores. Os choques entre movimentos políticos populistas e as instituições liberais, como se vê hoje não só no Brasil como em outros países, recomendam, por si só, prestar atenção no assunto, além de levantarem questões urgentes sobre como os seres humanos devem ser governados. É lembrado, também, que os países mais democráticos se abrem às eventuais queixas sobre abusos dos direitos humanos.
Os autores do estudo ainda sustentam que a democracia provavelmente funciona como aquela “mão invisível” de que falava Adam Smith, ao criar equilíbrio entre oferta e demanda. Mas, em contrapartida, se tal mão invisível regula os mercados para coisas boas, as mãos invisíveis do escândalo, da exposição na mídia, das eleições e da reforma também influem na regulação dos sistemas de saúde públicos e privados.
Certamente a história já demonstrou que a expansão dos direitos civis desempenhou um papel importante na melhoria da saúde, tomando como exemplos o Reino Unido e os EUA. O presente estudo sugere que suas conclusões podem ser aplicadas globalmente, com descobertas relativas a como, durante o último século e meio, a mortalidade em países de alta renda declinou e os sistemas de saúde melhoraram em paralelo ao aumento da renda e melhores condições de vida, configurando um “grande escape” em relação à pobreza e à doença.
Mas tem mais: como possíveis razões para a realidade desalentadora de muitos países, particularmente na África, com os piores sistemas de saúde, está o fato de que têm sido governados por autocratas corruptos que mantêm o poder pela força e podem ignorar o bem-estar de seu povo sem repercussões. Isso deveria ter implicações nas atitudes da comunidade global de desenvolvimento, mas é contraposto pela antiga suposição de que, nos países pobres, especialmente, os ditadores são melhores em fazer as coisas porque podem ignorar as demandas de grupos pequenos e competitivos na sociedade. Em suma, postulam que a defesa da saúde precisa se ater a algo mais do que clamar por mais financiamento e lamentar a corrupção.
Não resisto a colocar aqui um depoimento pessoal sobre o tema. Estive estagiando no Canadá nos anos 90 e ali tive oportunidade de participar de uma reunião do Conselho de Saúde do Quebec. Na plateia, no máximo 12 pessoas, entre eles gestores, prestadores privados (filantrópicos), alguns sindicalistas. O evento durou menos de duas horas e grande parte de seu tempo foi tomado pela exposição de um relatório de atividades e planejamento por parte da Diretora Regional de Saúde. Seguiram-se algumas perguntas com um breve debate. O relatório apresentado foi distribuído, muito bem impresso e ilustrado, como sempre acontece naquele país. Ao final, cafezinho, refrigerantes, profiteroles… E ponto final. Fiquei pensando com meus botões: que democracia é essa, em que os mandatários já trazem tudo pronto, não há paridade de representação e nem há debates. É que minha cabeça, lamentavelmente, não tinha chegado a Montreal. Estava em pleno mundo tupiniquim… Mais tarde percebi que estes mecanismos de conselhos, participação social (lá ninguém fala em “controle”) representam apenas uma parte, pequena talvez, entre muitas, dos instrumentos de uma verdadeira Democracia (pode nem ser tão “verdadeira” assim, mas certamente é maior e muito mais profunda do que a nossa…).
Foi assim que percebi a democracia, para merecer tal nome, se faz com consciência política, imprensa livre, mecanismos difusos de participação nas comunidades, voto distrital, recall eleitoral, voto não obrigatório – coisas assim. Conselhos também, mas não com a “sacralização” e a burocratização que se faz deles no Brasil.
Concluindo: mais saúde = mais democracia? Depende… Estamos falando de que qualidade de democracia e de quais direitos e deveres que se quer garantir em saúde? O certo é que a correlação não seria assim tão direta e biunívoca, como querem os militantes do SUS.
Para a Saúde (e para o resto) Democracia é benfazeja, mas sozinha não é capaz de tudo.
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário de Saúde em Uberlândia – MG