Dr. Flávio de Andrade Goulart*

O tema da democracia esteve em alta no início do mês de abril, por motivo do sexagésimo aniversário do golpe militar de 1964. Há controvérsias quanto à data exata do evento: 28 ou 31 de março. Mas, convenhamos, a data mais adequada seria o dia 1º de abril. A respeito de tal palavra – democracia – há uma reiterada afirmativa, por parte dos militantes do SUS, de que exista uma relação direta entre a qualidade e a efetividade da saúde do Brasil com o grau de democracia aqui praticado. Sinceramente, não sei se é bem assim, ou pelo menos não creio que haja uma correspondência direta entre uma coisa e outra. Senão, vejamos. Na verdade, a militância, principalmente a mais tradicional dá como existir relação totalmente biunívoca, ou seja: mais saúde é igual mais democracia e mais democracia corresponde a mais saúde, como se uma coisa dependesse e fosse capaz de gerar a outra. Entretanto, penso que são coisas distintas, as quais não adianta tentar ungi-las com alguma aproximação genérica, embora não tenha dúvidas de que continua valendo a pena lutar pelas duas. Uma coisa é certa: a palavra democracia se presta a variados usos e devemos cuidar de não a vulgarizar ou camuflar, tomando-a pelo que ela definitivamente não é. Podemos trazer a argumentação para realidades mais próximas a nós ou relativas à época em que vivemos.
Tomo com exemplo os casos de Cuba e EUA. De um lado um regime socialista, com forte ou quase total presença estatal, planejamento centralizado e forte; de outro, o império da livre iniciativa, das forças de mercado e da pulverização de qualquer tendência centralizadora. De um lado um regime de partido único, com eleições diretas apenas no nível legislativo e sagração de lideranças a partir de decisões de um politburo; do outro um processo ascendente de escolhas, disputas à luz do dia (ou quase), grandes convenções políticas festivas e liberdade partidária.
Pois bem, ambos os países se tomam como democráticos. Os EUA, aliás, se consideram não só a verdadeira pátria de nascimento, mas também se veem como verdadeira polícia da proteção da democracia no mundo. Mas na saúde, Cuba tem indicadores melhores do que a nação mais ao Norte. Não só em termos de mortalidade infantil ou por doenças crônicas, por exemplo, mas também nas infecciosas agudas, nutricionais e causalidades externas, para não falar nas facilidades de acesso à saúde incomparavelmente maiores do que ao norte do Golfo da Flórida. Não custa indagar: como se sustenta, diante disso, aquela frase entusiástica dos militantes do SUS? Não se sustenta, claro, a não ser à custa de alguns subterfúgios…
E o Brasil? Nosso país é formalmente classificado como democracia, embora sob ameaças constantes, mas o essencial nós ainda temos: eleições diretas; liberdade de expressão e reunião; imprensa que às vezes tropeça, mas dá conta do recado; partidos políticos variados (até demais…); três poderes em atividade etc. Mas em matéria de saúde todos sabemos das limitações do panorama, com indicadores apenas sofríveis e muitos deles em declínio. O surgimento da pandemia, no contexto do governo negacionista, irresponsável e incompetente, pôs a nu nossa fragilidade sanitária. O SUS segurou a barra como pôde, mas fosse ele mais robusto e fortalecido pelas políticas públicas e pelo apoio dos cidadãos – e isso não vem de hoje – talvez o resultado de sua ação fosse ainda melhor, sem chance de que um governo o debilitasse tanto, como aconteceu nos últimos anos temer-bolsonaristas. Mas apesar de tudo não é o caso de desprezar o SUS e muito menos ignorar que sem ele a situação ainda seria pior. O nascimento do SUS coincide com a redemocratização do país, mas nem assim creio que a questão da democracia faça parte direta da equação da saúde. Uma ditadura até poderia fazer mais pela saúde, embora, sem dúvida e por muitas outras razões, seja melhor apostar na democracia, mesmo capenga como a que temos.
Assim, cabe introduzir conceitos próximos, porém diferenciados, na discussão, ou seja, igualdade e liberdade, para definir se isso teria de fato influência sobre o estado de saúde de uma dada população.
O que seria, afinal uma boa democracia ou, para não corrermos o risco de adicionar juízos de valor muito abrangentes, uma democracia que realmente funcione? Apenas como aproximação ao cerne da questão arrisco um palpite: democracia, na saúde, pelo menos, seria aquela situação em que a liberdade e a igualdade estejam em equilíbrio – e que este seja o mais estável possível. Voltemos ao exemplo acima: em Cuba, em nome da igualdade foi sacrificada a liberdade; nos EUA se daria o inverso: muita liberdade de ação e restrições fortes a uma igualdade verdadeira.
Liberdade, sem dúvida, é uma bela e legítima aspiração, mas é bom lembrar que na saúde ela pode significar a capacidade de agir dentro de uma lógica de mercado, no que os principais beneficiários serão sempre aqueles que fazem parte daquela minoria de portadores das chaves capazes de abrir as sucessivas catracas físicas e financeiras que se interpõem a um atendimento digno e necessário. É assim que a igualdade se esvai.
Entre a liberdade e a igualdade, portanto, existe um equilíbrio delicado e difícil de se obter, um dilema do qual a maioria dos sistemas de saúde atualmente em vigor não escapam. É aí que entra o Estado, que o velho Marx já havia sentenciado com um “escritório de interesses da burguesia” – ou de interesses do Mercado, se quisermos.
Conclusão óbvia, que contraria o dito dos próceres da nossa reforma sanitária: para discutir democracia, assim como liberdade e igualdade temos, primeiro, que nos ater à forma de organização do Estado, sendo a saúde consequência disso, não propriamente um fator capaz de gerar maior ou menor conteúdo democrático à vida social.
Vale lembrar também que a Saúde é algo que depende de múltiplos fatores, entre eles a renda, a educação, o acesso a serviços, a qualidade de vida, o mundo do trabalho, as desigualdades sociais em geral. Já a Dona Democracia, esta pobre senhora tão ameaçada nos dias de hoje, ela pode não ser um fator determinante, mas sem dúvida é benfazeja não só para a Saúde, para a Educação, para a Justiça, ou qualquer tipo de política social, enfim. Em conclusão, as lutas por mais saúde e por democracia podem e devem ser convergentes, mas as duas coisas, em termos de essência e metas, são essencialmente distintas.
A este respeito. li, há tempos um artigo da revista The Lancet no qual os autores indagam se os estatutos da democracia contribuem realmente para a saúde pública, recorrendo a estimativas de mortalidade por causas específicas e expectativa de vida livre de HIV, além de dados da carga global de ferimentos e fatores de risco, relativos a 2016. Cotejando tudo isso com informações sobre o tipo de regime foi analisada a associação entre a democratização e a saúde da população em 170 países, no período de 1980 a 2016. Assim, descobriu-se que a expectativa de vida adulta livre de HIV melhorou mais rapidamente nos países em desenvolvimento que fizeram a transição para a democracia no último meio século.
E mais: que a qualidade da vida democrática, particularmente definida como ocorrência de eleições livres e justas, seria responsável por 22% da variação positiva nas doenças cardiovasculares, 18% nas lesões de trânsito, 17% na tuberculose, 10% no câncer, com frações menores para outras doenças, principalmente não transmissíveis. Isso parece ser mais influente do que próprio PIB, que seria responsável por apenas 11% da variação nas doenças cardiovasculares e 6% no câncer, por exemplo. A “qualidade da democracia” não parece estar associada a aumentos no PIB per capita, mas está associada a declínios na mortalidade por doenças cardiovasculares e aumentos nos gastos públicos em saúde.
Será que nós realmente precisamos de democracia? – indagam os autores. Os choques entre movimentos políticos populistas e as instituições liberais, como se vê hoje não só no Brasil como em outros países, recomendam, por si só, prestar atenção no assunto, além de levantarem questões urgentes sobre como os seres humanos devem ser governados. É lembrado, também, que os países mais democráticos se abrem às eventuais queixas sobre abusos dos direitos humanos.
Os autores do estudo ainda sustentam que a democracia provavelmente funciona como aquela “mão invisível” de que falava Adam Smith, ao criar equilíbrio entre oferta e demanda. Mas, em contrapartida, se tal mão invisível regula os mercados para coisas boas, as mãos invisíveis do escândalo, da exposição na mídia, das eleições e da reforma também influem na regulação dos sistemas de saúde públicos e privados.
Certamente a história já demonstrou que a expansão dos direitos civis desempenhou um papel importante na melhoria da saúde, tomando como exemplos o Reino Unido e os EUA. O presente estudo sugere que suas conclusões podem ser aplicadas globalmente, com descobertas relativas a como, durante o último século e meio, a mortalidade em países de alta renda declinou e os sistemas de saúde melhoraram em paralelo ao aumento da renda e melhores condições de vida, configurando um “grande escape” em relação à pobreza e à doença.
Mas tem mais: como possíveis razões para a realidade desalentadora de muitos países, particularmente na África, com os piores sistemas de saúde, está o fato de que têm sido governados por autocratas corruptos que mantêm o poder pela força e podem ignorar o bem-estar de seu povo sem repercussões. Isso deveria ter implicações nas atitudes da comunidade global de desenvolvimento, mas é contraposto pela antiga suposição de que, nos países pobres, especialmente, os ditadores são melhores em fazer as coisas porque podem ignorar as demandas de grupos pequenos e competitivos na sociedade. Em suma, postulam que a defesa da saúde precisa se ater a algo mais do que clamar por mais financiamento e lamentar a corrupção.
Não resisto a colocar aqui um depoimento pessoal sobre o tema. Estive estagiando no Canadá nos anos 90 e ali tive oportunidade de participar de uma reunião do Conselho de Saúde do Quebec. Na plateia, no máximo 12 pessoas, entre eles gestores, prestadores privados (filantrópicos), alguns sindicalistas. O evento durou menos de duas horas e grande parte de seu tempo foi tomado pela exposição de um relatório de atividades e planejamento por parte da Diretora Regional de Saúde. Seguiram-se algumas perguntas com um breve debate. O relatório apresentado foi distribuído, muito bem impresso e ilustrado, como sempre acontece naquele país. Ao final, cafezinho, refrigerantes, profiteroles… E ponto final. Fiquei pensando com meus botões: que democracia é essa, em que os mandatários já trazem tudo pronto, não há paridade de representação e nem há debates. É que minha cabeça, lamentavelmente, não tinha chegado a Montreal. Estava em pleno mundo tupiniquim… Mais tarde percebi que estes mecanismos de conselhos, participação social (lá ninguém fala em “controle”) representam apenas uma parte, pequena talvez, entre muitas, dos instrumentos de uma verdadeira Democracia (pode nem ser tão “verdadeira” assim, mas certamente é maior e muito mais profunda do que a nossa…).
Foi assim que percebi a democracia, para merecer tal nome, se faz com consciência política, imprensa livre, mecanismos difusos de participação nas comunidades, voto distrital, recall eleitoral, voto não obrigatório – coisas assim. Conselhos também, mas não com a “sacralização” e a burocratização que se faz deles no Brasil.
Concluindo: mais saúde = mais democracia? Depende… Estamos falando de que qualidade de democracia e de quais direitos e deveres que se quer garantir em saúde? O certo é que a correlação não seria assim tão direta e biunívoca, como querem os militantes do SUS.
Para a Saúde (e para o resto) Democracia é benfazeja, mas sozinha não é capaz de tudo.
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário de Saúde em Uberlândia – MG