DR. Flávio de Andrade Goulart*

José Cândido, conhecido como Candinho é motorista de caminhão e adora uma cervejinha com os amigos, de preferência acompanhada por um bom torresmo. Seu problema é ser hipertenso e apresentar sobrepeso, mas ele bem que daria uma fortuna por usufruir sem culpa desses momentos especiais, que vão se tornado cada vez mais raros, pelos seus compromissos de trabalho. Eis que ele teme, especialmente, por sua saúde, da qual depende para continuar na estrada. Assim como Candinho, a maioria das pessoas quer ser, não só feliz, como também saudável. Nada mais natural. Sobre isso li um artigo interessante, no qual se revelam alguns fatores determinantes do otimismo ou do pessimismo das pessoas perante sua saúde e a vida em geral (ver link ao final: Adler et al). Foram entrevistadas cerca de 4 mil pessoas, no Reino Unido e nos EUA, às quais se pediu que fizesse escolhas entre ser feliz ou ser fisicamente saudável. Os resultados sugerem que existem negociações internas sobre isso nas pessoas, ou seja, a ocorrência de um chamado trade-off, decisão que consiste na escolha de uma opção em detrimento de outra. e que isso seria determinado em parte substancial pelos próprios níveis de felicidade e saúde das mesmas. Assim, as pessoas infelizes parecem mais propensas a escolher vidas infelizes e pessoas insalubres mais propensas a escolher vidas insalubres. Tais resultados parecem confirmar um adágio popular daqueles países: “é melhor se haver com um diabo que você já conheça”, ou algo assim. A idade também desempenha um papel importante, já que pessoas mais velhas são mais propensas a escolher ser saudável em vez de ser feliz. Informações sobre adaptação às condições físicas de saúde também parecem importantes, embora com menos força do que as características dos entrevistados. Sem dúvida isso tem implicações para os formuladores de programas e políticas de saúde, se estiverem preocupados em satisfazer este tipo de preferência em seu público alvo.

Esta leitura me fez procurar mais informações sobre a questão da felicidade, que eu encontrei em outro artigo, também indicado ao final, através de matéria da Folha de São Paulo, no qual os autores alertam que subsiste na sociedade atual uma verdadeira (e perniciosa) “tirania da felicidade, do prazer e do pensamento positivo”, ou “happycracia“. Isso mesmo! Vamos ver com mais detalhes. Segundo os autores de tal artigo (Illous e Cabañas, ver link) a influência da felicidade existiria não só no ambiente corporativo como também governamental, particularmente nos regimes sintonizados com algum tipo de neoliberalismo. Isso se articula com certa psicologia positiva, focada nas emoções positivas e na autodeterminação como caminho para a felicidade, coisa acolhida por acadêmicos, pela imprensa, formadores de opinião e o grande público, inclusive economistas e políticos, que enxergam felicidade a chave para mensurar o sucesso de uma sociedade. Com variadas metodologias circulando, critérios subjetivos como bem-estar, equilíbrio e prazer, vêm sendo quantificados, em busca dos tais índices de felicidade, passando inclusive a nortear políticas, porém em detrimento de ações concretas de distribuição de renda e de promoção de direitos.

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Circo, em vez de pão? “Não há nada de errado em buscar a felicidade. É de fato um direito fundamental. Os indivíduos têm o direito de definir por si mesmos o que os faz se sentir bem”, argumenta Eva Illouz, diretora da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, na França e coautora do artigo citado acima. Mas segundo ela, tal psicologia positiva também representa uma verdadeira distorção da ideia de felicidade, ao se transformar em mera subdisciplina da economia, servindo a propósitos políticos e eleitoreiros, tanto em regimes democráticos como ditatoriais. E ela completa: “Se você mensura a felicidade e declara que este é o objetivo da política, acaba considerando melhor ter países profundamente desiguais do que sociedades mais igualitárias, simplesmente porque as pessoas na Índia declararam que são mais felizes do que as pessoas na França.” Assim, isso representaria nada mais do que a busca pela satisfação dos cidadãos substituindo os princípios de liberdade e justiça.

Transferindo tal situação para o Brasil: será que aqueles pobres peões que assistem e até acompanham alegremente uma motociata bolsonarista em algum grotão da fronteira agrícola nacional se sentiriam mais felizes por fazê-lo do que os trabalhadores, estudantes ou membros da classe média que rejeitam o mito e são repelidos a golpes cassetetes, balas de borracha e gás lacrimogênio nas ruas e avenidas das grandes cidades do país? Fica a indagação.

Outros aspectos do interessante trabalho aqui em foco são apontados: (a) um dos problemas de apresentar a felicidade como o objetivo mais fundamental a ser perseguido na vida é negligenciar valores tão importantes quanto, como igualdade, solidariedade ou justiça. (b) A desigualdade é imperativa em relação ao sentimento de felicidade: as taxas de doença mental são inconfundivelmente mais altas em sociedades com maiores diferenças de renda. (c) A felicidade é, de fato, um desejo valioso, mas seus parâmetros mudaram e passaram a orbitar em torno do “eu”, de forma que ser feliz passou a ser uma busca pessoal, associada à aquisição e ao desenvolvimento de três características psicológicas: a autogestão emocional, a autenticidade e o florescimento. (d) A felicidade individual dispõe, atualmente, de uma verdadeira “indústria” à sua disposição, constituída por cursos, serviços terapêuticos e de coaches, treinamentos da força interior, literatura de autoajuda, palestras motivacionais, técnicas de meditação, aplicativos medidores de bem-estar e aconselhamentos. (e) Cria-se assim uma noção de felicidade que diz que uma vida boa não seria uma questão social, cultural e política, mas uma questão de escolha individual, responsabilidade pessoal e fatores subjetivos como atitude e força de vontade. (f) Não há nada de errado em não se sentir bem; é apenas normal – o problema surge quando se transforma a felicidade em um novo normal, o que não é apenas irreal, mas também pode ser prejudicial.

E aproveitando a presença do nosso personagem Candinho, a questão correlata do otimismo (versus pessimismo) das pessoas remete obrigatoriamente a Voltaire em seu livro Cândido, ou o Otimismo, um retrato satírico de seu tempo, escrito em 1758, no qual dois personagens são destacados, Cândido, um jovem inocente e o Doutor Pangloss, representação sarcástica de uma filosofia ingenuamente otimista. O livro representa uma crítica bem-humorada sobre as regalias da nobreza, a intolerância religiosa e os absurdos da Igreja Católica e sua Inquisição.

Cândido é um jovem rapaz que tem como mestre o referido Pangloss, que o direciona sempre ao que é bom, ou como ele diz: “o melhor dos mundos possíveis”. Mas Cândido se apaixona pela filha do barão que lhe hospeda, é expulso do castelo e sofre uma série de desgraçadas absurdas, sendo torturado, roubado, enganado, sobrevivendo a um naufrágio e a um terremoto, até que enfim questione a pregação otimista de Pangloss. Ele representa, de fato, um personagem marcante na literatura, ao carregar consigo as contradições comuns à condição humana, travando uma batalha interna entre as certezas absolutas e o mundo real e entre a teoria e a prática, tudo que faz parte da existência humana, na qual as convicções são inevitavelmente contestadas à medida em que se adquire experiência.

Pangloss é tratado de forma caricatural e satírica por Voltaire, na verdade encarnando um filósofo real, Leibniz, que propunha um sistema filosófico-teológico baseado no otimismo, na crença do mundo como o melhor dos mundos possíveis, já que criado por Deus, a criatura perfeita. Tal idealismo se vê contestado no livro pelas situações absurdas e tenebrosas que afetam seus personagens, diante das quais não há pensamento positivo capaz de resistir.

Assim, o que se vê são os vícios, defeitos e a fraqueza corruptível dos seres humanos, o que torna falível o apoio de qualquer doutrina radical e extremista, reforçando o caráter imprevisível da existência e da convivência entre os homens, invalidando, assim, o domínio dos pensamentos inflexíveis em relação ao pessimismo e o otimismo perante a vida, ao fim e ao cabo, ingênuos e perigosos em igual medida. Em suma, o conteúdo verdadeiramente filosófico de tal história mostra que o que importa é o pensamento equilibrado e apoiado na realidade, não em ideias tolas e utópicas, sobre mundos possíveis “melhores ou piores”.

Hoje em dia, para a maioria da população brasileira, a felicidade se transformou um artigo raro. Mais difícil ainda de se obter do que um bom kg de picanha ou um tanque completo de gasolina por semana… No famoso Índice Mundial de Felicidade, por exemplo, nós saltamos de um décimo terceiro lugar até honroso, em 2015, para um humilhante trigésimo oitavo neste 2022. Literalmente, a gente era feliz e não sabia, naqueles tempos em que o pior pesadelo nos era apontado como o dos governos do PT – quanta ilusão! O tema da felicidade realmente entrou na ordem do dia. Já se fala até em um Índice Bruto de Felicidade, como possível substituto do Produto Interno Bruto, como indicador mais efetivo para medir o que realmente interessa na vida de um povo. E este 2022 ainda promete mais, com inflação de dois dígitos, pandemia mal controlada, guerra na Ucrânia, violência policial galopante, serviços de saúde cada vez mais sucateados, além da máquina de produzir fake-news e notícias ruins (estas bem verdadeiras) para a população brasileira, operando a todo vapor em Brasília e alhures. Mas voltemos ao índice: entre as nações da América Latina, o Brasil está abaixo da Costa Rica, Uruguai e Panamá, mas à frente do Chile, México, Argentina e Colômbia, segundo o relatório World Happiness Report. No topo da lista está, desde muito tempo, a Finlândia, seguida dos demais países nórdicos da Europa, Suíça e Holanda. O indicador representa a combinação entre igualdade social e desenvolvimento econômico, medida quando se pergunta às pessoas para enumerarem, de zero a dez, a satisfação com a vida, com a saúde e educação, e se tiveram sentimentos negativos ou positivos nos últimos dias, entre outras questões. Em tempo, os países com os piores índices de felicidade são Afeganistão, que é o último da lista, seguido pelo Líbano, também no Oriente Médio, Zimbábue e Ruanda, ambos da África. Ainda bem que estamos, por enquanto, pelo menos, distantes deles…

Voltando à questão inicial: é possível ser feliz e ter saúde? E além disso, dispor de paz, segurança, harmonia social e familiar, beleza, dinheiro para as necessidades elementares? Quando mais a lista cresce, mais difícil ficam as coisas. Não há no mundo nenhum sistema de proteção social que tenha garantido isso – e nem haverá, certamente. Mas é preciso garantir às pessoas pelo menos o direito de sonhar com tais benefícios. Bem certos estavam os Pais da Pátria dos Estados Unidos da América quando inseriram em sua Constituição primordial aquele Pursuit of Happiness. O que definitivamente não é lícito é propagar e iludir as pessoas, à maneira daquele Doutor Pangloss criado por Voltaire, com uma noção de felicidade que se afasta das questões sociais, culturais e políticas para se concentrar na esfera exclusiva dos desejos, das escolhas e das responsabilidades individuais, além de fatores altamente subjetivos, como atitude e força de vontade, à moda de que prescrevem os livros de autoajuda, com seu novo normal construído a partir da autogestão emocional, do f*da-se perante as responsabilidades e do culto à individualidade. Este Pangloss deve ter se reencarnado em Paulo Guedes, pelo visto.

A multidão de Cândidos agradece…

Stop Bolsonaros!

As estatísticas revelam que a cada 60 minutos uma criança ou adolescente morre em decorrência de ferimentos por arma de fogo no Brasil e que a cada duas horas, em média, uma criança ou adolescente dá entrada em um hospital da rede pública de saúde com ferimento por disparo de algum tipo de arma. Além disso, as taxas de mortalidade por suicídio aumentam se houver armas em casa e que o acesso às mesmas aumenta o número de mortes e ferimentos relacionados a conflitos. Pois bem, mesmo diante desses dados, o aprendiz de genocida, Eduardo Bolsonaro, também conhecido pela alcunha de Bananinha, pretende passar na Câmara Federal um projeto de lei liberando a propaganda da venda de armas de fogo no Brasil. Pode? Quem vai parar esta quadrilha?

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Longa metragem revela histórico e polêmicas que rondam o SUS

O documentário Saúde tem Cura, dirigido por Silvio Tendler, foi lançado nesta terça-feira (8/6) e já está disponibilizado no YouTube. O filme, longamente produzido desde a Constituição de 1988, tenta apresentar um panorama detalhado sobre a importância da implementação do SUS no país e quais são seus principais desafios hoje. Vamos todos assistir, certamente valerá a pena!
Para assistir: https://www.youtube.com/watch?v=b-kZMfwvKsM

Saiba mais: https://mail.google.com/mail/u/0/?pli=1#inbox/FMfcgzGpGSzQBjxWWHTLvrtMchjpwHpn

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.