Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Os versos de Jorge Luiz Borges são impactantes: Não restará na noite uma só estrela. / Não restará a noite. / Morrerei e comigo irá a soma / Do intolerável universo / Apagarei medalhas e pirâmides, / Os continentes e os rostos. / Apagarei a acumulação do passado. / Farei da história pó, do pó o pó. / Estou mirando o último poente. / Ouço o último pássaro. / Lego o nada a ninguém. (O Suicida). É difícil ser neutro quando se trata de tal tema. Uns parecem cultivar a ideia, como Borges; outros fingem ignorá-la; há quem pense que tal coisa só pode acontecer aos outros, sempre longe de si e dos que lhe estão próximos; e há também aqueles traumatizados pela vivência com algum parente ou amigo – mas todos temem tal evento. Uma coisa é certa: é preciso conhecer tal fenômeno mais profundamente, velho como a história da humanidade que é. Aqui no DF, por exemplo, a quantas anda? E no Brasil? O que se faz, no Brasil e no mundo, para conhecê-lo melhor e tentar controlá-lo, como parte de uma política pública? Sua divulgação em notícias de imprensa poderia ser nefasta e potencialmente capaz de desencadear novos casos? De fato, há muitas questões em jogo no cenário. [Este post é mais um trabalho conjunto de Flavio Goulart com Henriqueta Camarotti – vida longa a tal parceria!]
Vamos aos dados locais. Segundo as estatísticas oficiais (dados da SES-DF divulgados pelo portal G1 – ver link ao final), a incidência de suicídio em nossa cidade é maior entre pessoas de 20 a 29 anos, ocupando o segundo lugar do ranking por faixas etárias; em média, a cada 100 mil moradores da capital, desse grupo etário, 7,9 tiraram a própria vida por ano; de 2010 a setembro deste ano, 401 pessoas desta faixa cometeram suicídio no DF. Em números absolutos, todavia, a maioria das vítimas tinha de 30 a 39 anos. Os números mostram ainda crescimento no número de suicídios no Distrito Federal desde 2016, ano em que a capital registrou 161 mortes dessa natureza, enquanto em 2019 foram 206, um aumento de 27,95%, portanto. Só no ano corrente já foram contabilizadas 74 vítimas entre janeiro e setembro. O levantamento ainda mostra a diferença do número de mortes entre gêneros: das 1.689 pessoas que tiraram a própria vida entre 2010 e setembro deste ano no DF, 1.250 eram homens e 439 mulheres, com as vítimas masculinas sendo 184% mais frequentes do que as femininas. O acometimento de idosos ocupa a quinta posição, mas dá indícios de estar atualmente em crescimento, o que indica a necessidade de se prestar mais atenção a tal grupo etário.
No Brasil, a tendência é de crescimento da mortalidade por esta causa, com números especialmente preocupantes entre jovens, sendo que nas últimas três décadas houve um aumento de 30% nos casos de suicídio, taxa maior do que a média das outras faixas etárias. Dados da OMS mostram que o Brasil está em oitavo lugar entre os países com maior número de suicídios, atrás de Índia, China, EUA, Rússia e Japão, por exemplo. O predomínio do sexo masculino é nítido, da ordem de 75%. Em termos relativos, (mortes por cem mil habitantes), o Rio Grande do Sul tem a maior taxa, 10,2. Mesmo que o nosso país tenha sido signatário de um “Plano de Ação sobre Saúde Mental 2013-2020” da OMS, que tinha como meta a redução da taxa de suicídio em 10% até 2020, infelizmente, nos últimos dez anos, o número de suicídios no país vem aumentando.
Em termos globais, dados da OMS mostram que a cada ano, cerca de 800 mil pessoas tiram a própria vida no mundo e um número muito maior de indivíduos tenta fazê-lo. O suicídio ocorre durante todo o curso de vida e tem sido a segunda principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos. Suicídio não ocorre apenas em países de alta renda, mas sim em todas as regiões do mundo, embora quase 80% tenha ocorrido em países de baixa e média renda em 2016. A OMS enfatiza o fato de que isso representa uma verdadeira tragédia, que afeta famílias, comunidades e países inteiros e tem efeitos duradouros sobre as pessoas deixadas para trás. Trata-se de um grave problema de saúde pública, uma verdadeira “epidemia”, mas que pode e deve ser controlada em tempo oportuno, com base em evidências e com intervenções não onerosas, mediante estratégias acima de tudo multissetoriais.
Desde 2014, a Associação Brasileira de Psiquiatria, em parceria com o Conselho Federal de Medicina, organiza nacionalmente o evento denominado Setembro Amarelo, sendo o dia 10 deste mês, oficialmente, o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. A importância disso tem como base o registro de mais de 13 mil suicídios anuais no Brasil e mais de um milhão no mundo. Estima-se que cerca de 96,8% dos casos de suicídio são relacionados a transtornos mentais, principalmente a depressão, seguida do transtorno bipolar e abuso de substâncias.
Aproveitamos este setembro Amarelo para refletir sobre o uso do termo suicídio, oriundo da tradução para o inglês – suicide – da obra Religio Medici, do médico do século XVII, Thomas Browne. Tal palavra vem do latim sui, que significa “a si”, e “cídio”, que é termo associado a crime, por exemplo, homicídio e genocídio. Na atualidade os psiquiatras e especialistas do comportamento têm proposto mudar tal nomenclatura sugerindo, em substituição, o termo automorte, o que visa reduzir o estigma do suicídio como um ato criminoso.
A história da medicina apresenta várias situações de substituição de termos que trazem preconceito e peso emocional no bojo da sociedade, como por exemplo, a mudança do diagnóstico de Lepra para Doença de Hansen. Há quem critique essas mudanças por entendê-las como uma forma de eufemismo, mas na prática clínica, os pacientes e seus familiares evidenciam muito mais aceitação do diagnóstico e assim mais abertura para o tratamento quando não sentem o peso do preconceito social.
Sobre as possibilidades de prevenção, o nosso amigo professor Marcelo Tavares, da Universidade de Brasília, um estudioso do assunto, coloca três importantes vertentes de abordagem, a saber: prevenção; avaliação e intervenção precoce para prevenção de comportamentos de risco e sofrimento psíquico grave; detecção de eventos adversos no sofrimento psíquico. Assim tem sido possível a identificação precoce do risco, o fomento de políticas públicas para prevenção e o foco na atenção às pessoas com risco psíquico grave e suporte a seus familiares. Importante lembrar, ainda, que pessoas que cometem suicídio têm geralmente tendência ao isolamento, dificuldade de adaptação ao contexto, sofrendo de angústia e depressão.
Outra estudiosa daqui do DF, Julia Rodrigues (2009), afirma que o investimento em fatores de proteção pode diminuir o risco de suicídio com o fortalecimento da capacidade de enfrentamento da pessoa diante do sofrimento psíquico, sendo alguns exemplos disso a interação com pessoas significativas, as conexões e vínculos positivos, a redução do estresse emocional, o investimento no bem-estar, o interesse pela vida, o despertar de sentimentos de utilidade, sentido e propósito de vida e espiritualidade.
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É nessa direção que a co-autora deste artigo, Henriqueta Camarotti, elabora conceitos relativos à Terapia Transessencial (TTE), uma abordagem transdisciplinar proposta por ela para superação do sofrimento e autotransformação, que oferece uma nova visão de acolhimento e cuidado com as pessoas em sofrimento psíquico, dentro de uma visão da pessoa em sofrimento em sua totalidade física, vibracional, emocional, consciencial e espiritual. Tem como base científica e filosófica as ciências emergentes, inserindo princípios que transcendem os conceitos de matéria, energia, tempo e espaço. Incorporada à terapêutica oferece ferramentas relacionadas à nova física, nova biologia, nova cosmologia, como por exemplo, a visão quântica da realidade, a epigenética, a inteligência celular, os campos morfogenéticos, a metaenergia, os estudos das neurociências e as pesquisas que buscam entender o campo sutil do Universo e a expansão da consciência.
Na nossa percepção, com base em tais contribuições, cuidar do ser humano vai além do conhecimento da biologia e do corpo humano, requerendo também o envolvimento dos vários níveis da sua essência, tocando o sofrimento existencial e a busca profunda de sentido. Mister se faz a abertura de espirito para acolher aquele ser no mais profundo, adentrar a relação Eu-Tu, e não Eu-Isso (na visão do filósofo e terapeuta Martin Buber). Em outras palavras, cada ser visto na sua singularidade e cada contato humano na sua inteireza.
Na concepção e abordagem das ações de saúde e saúde mental, nas suas práticas relativas aos fatores protetivos do sofrimento psíquico, do desespero emocional, da solidão, da melancolia, bem como de problemas como depressão, ansiedade e transtornos do humor, a consciência da sociedade tem sido fundamental para abrir o diálogo, estimular a busca de ajuda e promover espaços afetivos e de cuidado. Cabe destacar, neste campo, excelentes esforços desenvolvidos por um conjunto de tecnologias sociais entre elas, os Centros de Valorização da Vida (CVV) e de Comunicação não Violenta (CNV), a Terapia Comunitária Integrativa (TCI), além de grupos diversos de ajuda mútua, que oferecem espaços de fala, de escuta e de construção de vínculos solidários às pessoas em sofrimento e seus familiares.
Acreditamos também que a imprensa pode contribuir também para informar e reduzir, não apenas para amplificar, os habituais tabus impregnados na sociedade a respeito da automorte, promovendo diálogo entre as gerações e religiões e facilitando a aceitação das diferenças entre pessoas, comunidades e mesmo nações. Mas é necessário evitar o sensacionalismo tão comum, em troca de ações humanistas e baseadas nos estudos científicos atuais, sempre voltadas para a redução do sofrimento humano. Com liberdade de ação e informação, acima de tudo. Afinal, quanto mais esclarecido um povo mais sucesso este terá em cuidar de sua vida e promover uma igualdade respeitosa.
Prevenir o suicídio é, antes de tudo, construir uma sociedade baseada no afeto, na solidariedade, na generosidade e na compreensão inclusiva; significa abrirmos mão das certezas reducionistas, dos preconceitos e da competição; acreditar que precisamos de acolhimento, redes de apoio, leveza… afinal, de poesia! Como diz a professora Neury Botega, psiquiatra da Unicamp, se referindo especificamente aos jovens, mas com alcance geral para outros segmentos sociais: A sociedade está cada vez menos solidária, o jovem não tem mais uma rede de apoio. Além disso, é desiludido em relação aos ideais que outras gerações tiveram.
Enfim, àqueles seres que chegam a encarar (e optar) pelo gesto extremo da automorte é preciso mostrar, bem ao contrário do que o poema de J. L. Borges sugere, que há estrelas a contemplar na noite, que o universo não é sempre algo intolerável, que a história de uma pessoa não se reduz a pó, que existem poentes, pássaros e pessoas que vale a pena apreciar e amar. Que o legado de alguém jamais poderia ser o nada absoluto.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.