Dr. Flávio de Andrade Goulart*
Hoje não vamos falar de Covid… Tornou-se proverbial a afirmativa que a medicina moderna, com suas máquinas e procedimentos mágicos, nem sempre se faz acompanhar de atenção mais qualificada, em termos humanos, aos pacientes. Tem tudo para ser verdade, mas convém tentar ir um pouco mais fundo em tal questão. Começo por um exemplo pessoal: por esses dias (e por esses caprichos dos jovens médicos que dominam as tecnologias clínicas e querem que seus pacientes sejam revirados pelo avesso diante de uma simples falta de ar) me vi submetido a uma série de exames de imagem do coração, com e sem contraste radiativo, com e sem esforço, com ou sem a minha vontade. Não que eu seja avesso a tais exames – nem de longe! – mas minha ignorância frente a tal arsenal, totalmente impensável em meu tempo de médico, salvo em alguma sessão de cinema ou romance de ficção científica, confesso que me deixa desconfiado e ansioso. Se não em relação à sua eficácia, certamente à sua capacidade de trazer à luz coisas ruins, em outros tempos de detecção impossível. Sabem, quando gente morria nas trevas da mais completa ignorância a respeito do que se tinha ou se deixava de ter e talvez fosse feliz mesmo assim, ou apesar disso? Mas uma vez adentrado a tal cenário de ficção científica, com direito ao ar condicionado siberiano; luzes frias; banheiros de descarga automática e luzes que não precisam ser apagadas nem acesas; aparelhinhos e aparelhões de diversas qualidades; telas de LED de todos os tamanhos pelos quatro cantos; apitos e sibilos eletrônicos perpassando a atmosfera; luzinhas faiscantes por todo lado, tive uma sensação no mínimo estranha, quase uma epifania, qual seja a de que eu não estava me sentindo “objetificado” ou meramente processado por máquinas; ao contrário, eu até me sentia bem no meio daquilo tudo! Por uma razão muito simples…
Cristalinamente simples: havia também pessoas operando tal cenário, além daquelas, como eu, que nele recebiam influxos diagnósticos, e essas tinham um comportamento singular, ou seja, não assumiam o papel de máquinas, mas sim de gente; gente diante de gente. E foi assim que recebi um bom dia caloroso em todas as portas que entrei; me foi oferecido um lanche; recebi a oferta de um cobertor para espantar a friagem durante os exames; minhas perguntas foram todas respondidas com gentileza e até mesmo várias vezes me indagaram se eu estava me sentido bem no teste da esteira. Ao final, mesmo sem saber que eu também era médico, o doutor me chamou à sala de laudos para me mostrar o resultado da cintilografia e apurar mais algumas informações sobre o motivo de minha ida ali. Enfim, saí de lá satisfeito e me pus a refletir sobre tudo isso.
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E a questão central das minhas reflexões era: a tal da medicina tecnológica e intermediada por máquinas seria também, necessariamente, fria, desumana? Aquela amostra recentemente experimentada por mim me dizia que não.
Por saudável ironia, recebi de meu amigo Renilson Rehem, que entende bem desses assuntos, no mesmo dia de meu exame, por sinal, um artigo que trata de tal tema e cujo título já diz tudo: as máquinas tornarão a medicina mais humana. Fosse eu a escrevê-lo, tomaria o cuidado de pelo menos colocar ao final um ponto de interrogação, mas o autor, um cidadão que eu não conhecia até então, chamado Guilherme Hummel, não deixou por menos, dando um caráter afirmativo a tal frase. É caso de indagar, cautelosamente: será que é isso mesmo? Mas, sem dúvida, esta minha experiência recente, junto com a leitura do referido artigo, justificam o aprofundamento da questão, longe de tratá-la com superficialidade ou simplesmente oferecer uma negativa peremptória a ela.
O ponto de partida de Hummel é uma frase do médico Eyal Zimlichman, membro do corpo clínico do Sheba Medical Center, o maior hospital de Israel. Disse ele, para espanto e comoção em seu próprio país e também fora dele: “Em uma década, mais de 90% dos procedimentos cirúrgicos serão feitos por robôs, e 70% das visitas ao hospital serão realizadas na própria casa do paciente usando a telemedicina”. Cruzes! (ou Estrelas de David!) – qualquer pessoa diria mesmo, em sã consciência, diante de uma frase como esta.
Preconceitos à parte, o autor nos revela que existe hoje, universalmente, uma aposta nas refinadas tecnologias atuais, inteligência artificial e robótica em primeiro plano, como elementos de transformação da medicina atual. Para pior? Não, por incrível que pareça, para melhor, para fazê-la mais humana – ou menos desumana, se quiserem. O segredo estaria na potencialidade de que essas tecnologias possam trazer aos médicos capacidade (e tempo) para interagir mais intensamente com os pacientes, produzindo cuidados de maior valor e eliminando certas funções vulgares ou “mundanas” que costumam consumir o quase sempre escasso tempo dos médicos.
Assim, por exemplo, avanços importantes já vêm sendo detectados em toda parte, dentro desses novos cenários tecnológicos. São citados: a redução do tempo gasto com a burocracia dos serviços; a minimização das fontes de erro humano; a discriminação frente aos falsos negativos e positivos nos exames de imagem; o melhor planejamento da oferta de cuidados individualizados e adequados, “sob medida”, ao perfil dos pacientes; o alcance de maior objetividade e resolutividade nas consultas médicas, entre outros aspectos. Ou nas palavras do próprio autor: as máquinas inteligentes despressurizam os sistemas, aliviam a carga na tomada de decisão e poupam o ‘leadtime’ dos profissionais de saúde.
Mais iluminista, impossível! Poderia até beirar a ingenuidade. Mas vamos analisar, sem preconceitos.
É claro que tais conclusões, seja pelo seu ineditismo ou por contrariarem, de fato, o senso comum estabelecido, estão sujeitas a críticas. Afinal, humanização é um conceito complexo, de características intensivamente subjetivas. Cuidado humanizado para uma pessoa pode não ser para outra. Talvez uma boa aproximação seja a de se incluir no contexto o respeito aos costumes, desejos, crenças e valores dos pacientes. Em outras palavras, seja qual for o modo de atendimento, é preciso considerar as particularidades individuais dos pacientes, para acrescentar carinho, dedicação e atenção às angústias, sofrimentos e ansiedades dos mesmos. De toda forma, agir assim certamente exigirá dos médicos e de qualquer profissional de saúde algo que eles atualmente dispõem cada vez menos: tempo.
Neste aspecto, o artigo destaca uma coisa realmente significativa, qual seja a de que as novas tecnologias seriam capazes de liberar tempo dos médicos para aprimorarem a sua empatia com os pacientes. Assim, a combinação de tal empatia com a criatividadee o domínio técnica seria o grande fator a fazer com que os pacientes assumam confiança nos seus médicos. Mas, sem dúvida, é a tal empatia que tem papel central na real interação pessoal necessária ao bom cuidado em saúde, aquilo que une médico e paciente no encontro das soluções adequadas – e isso deve ser diferenciado do mero paternalismo.
Em suma, acredito realmente que tecnologia e disponibilidade de aparelhamento tecnológico da medicina não precisam ser, necessariamente, antagônicos a um bom cuidado. Em algum lugar, se não em muitos lugares, da cadeia tecnológica, sempre haverá humanos atuando. A questão está na definição de objetivos de serviços de saúde, cabendo indagar se eles efetivamente são focalizados em valor. Ou seja, é preciso ir além de tratar as questões da saúde apenas com base em números, seja de consultas, exames, horas trabalhadas, leitos ocupados, altas concedidas, recursos transferidos, pagamentos de serviços. Há que ter em foco maneiras diferenciadas de pensar e agir, de fundo qualitativo, uma “saúde baseada em valor”, na qual instituições, empresas, profissionais e servidores de maneira geral, são avaliados e também remunerados na base dos resultados proporcionados aos pacientes. E isso deve ser acrescido de uma dimensão especial, ganhando um sentido plural (como valores), que devem ser o pano de fundo simbólico pelo qual uma instituição se move: Ética; Comprometimento; Competência; Solidariedade; Trabalho em equipe; Humildade.
E que isso valha não apenas para o ambiente refrigerado, iluminado, confortável, acolhedor que me foi dado frequentar, como pagante de um plano de saúde. Os serviços públicos de saúde do SUS também deveriam oferecer isso a seus pacientes. Nem precisaria de tanto luxo, mas ainda assim com oferecimento de real VALOR.
E para terminar uma frase que para mim se transformou num verdadeiro mantra para a gestão pública, que se aplica muito bem aqui também:
os bons (funcionários) precisam ser elogiados, estimulados e promovidos; os maus devem ter pelo menos um pouquinho de temor…
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.