Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Leio e ouço na mídia que toda a cúpula da Secretaria de Saúde do DF foi exonerada. Não tanto preventivamente, porque uma parte dos atingidos já tinha processos em andamento contra si. Não excluo a possibilidade, também, de que essa demissão em massa sirva para juntar alguns inocentes ao rol dos verdadeiros culpados, como o papel que acompanha o bombom que se bota fora. Repete-se assim, também aqui no DF – e não de forma inédita – um acontecimento que virou triste rotina em quase toda parte do Brasil. E quem achava que o estado de emergência desencadeado pela Pandemia poderia amainar tais propensões para o peculato, se enganou, pois o que se vê, junto com o aumento de infectados e de mortos pela Covid 19, é uma escalada das operações policiais, judiciais e administrativas relativas aos desvios. É imoral, claro, roubar diante de uma situação de ameaça à saúde pública, mas é bom lembrar que fora disso também o seria. Conclusão: é algo imperdoável, de fato. Ibaneis posa agora de justiceiro destemido, de dirigente que não tolera a corrupção, de defensor intransigente da coisa pública. Mas isso não resiste a um olhar mais agudo. Esta turma toda foi nomeada por ele e até bem pouco tempo atrás gozava de total prestígio. Será que só agora o governador descobriu os malfeitos que que vinham praticando, desde longa data? Mas a grade questão é: seria possível evitar a nomeação de gente assim tão “descuidada” para ocupar cargos públicos? Eu acho que a resposta é positiva, quase sempre – acompanhem meu raciocínio.
Em primeiro lugar, na faixa de idade em que se encontra a maioria dos nomeados para cargos mais altos, imagino que estes já detenham um portfolio profissional razoável. Dez anos, imagino, seja uma média (ou talvez o mínimo) de sua experiência em funções e cargos públicos ou mesmo privados. Será que tiveram desempenho competente e honesto nessas passagens de sua vida profissional? Não creio que seja complicado aferir algo assim.
Na área da saúde é comum um tipo de raciocínio que na verdade é equivocado e até mesmo perigoso: o doutor Fulano de Tal é bom médico (às vezes “é meu médico”) e, portanto, só poderia exercer o cargo para o qual eu o estou nomeando com competência e honradez. Nada mais falso: bons médicos, dentistas, enfermeiros, farmacêuticos e outros profissionais nem sempre se revelam bons gestores. Às vezes, muito antes pelo contrário, porque o domínio de conhecimentos necessários à clínica é radicalmente diferente daquele que é útil para a gestão.
Além disso, o desconhecimento das regras que regem a coisa pública faz desse tipo de neófito, mesmo quando bem-intencionado, presa fácil das corporações que dominam as áreas de compras, convênios, contratos e processos congêneres, que é, de fato, onde se localizam os grandes focos de corrupção no serviço público e particularmente na saúde.
E tais corporações devem ser observadas com estrita vigilância, diga-se de passagem, pois assim como se especializam em dizer “não pode isso ou aquilo”, por outro lado executam procedimentos escudados pela lógica de que possuem um saber especial e não facultado ao escrutínio dos não-iniciados. E é assim que muita licitação torta acontece. E tal vigilância não pode ser feita por outras “raposas”, é claro.
Como agravante de tudo isso está aquela tradicional farra de nomeações políticas, não baseadas em mérito técnico, que acompanha, quase sem exceção, a maioria dos governos no Brasil, em todos os níveis da Federação. E mora aqui um perigo duplicado: o dos que já entram no jogo político para se dar bem (ou fazer terceiros se dar bem), somados àqueles que por ignorância ou incúria “deixam a boiada passar”.
E tem também a tendência a “passar o pano”, a leniência com que a corrupção é tratada no país. Não é raro ouvirmos que alguém “roubou pouco”, quando comparado a outros que “roubaram muito mais” e que, portanto, deve ser perdoado. Isso naturalmente é um argumento falso e mesmo desonesto. Mas tem muita gente que pensa assim. Corrupção é corrupção, seja de 50, 50 mil ou 50 milhões, embora as penalidades possam até ser diferentes, a critério da Justiça.
Além disso, deve prevalecer a regra de que que em caso de dúvida que se afaste logo os suspeitos, até o completo esclarecimento da situação. Não se trata de culpar inocentes de forma precipitada, mas de resguardar a credibilidade da governança. Depois, que se declare a divulgue a real inocência de algum acusado – isso é muito melhor que deixar gente mal intencionada agindo sem peias. É bem o oposto do que acontece por aqui, inclusive no caso presente, de afastamento tardio de alguns suspeitos. O caso do atual Ministro do Turismo, com sua vivaz coloração “orange”, é bem uma mostra disso.
Outra boa regra no serviço público em geral, seja para seus agentes internos ou para os que com ele interagem, é a seguinte: que os bons sejam incentivados, mas que os maus tenham pelo menos um pouco de temor. A verdade é que as tradições do serviço público no Brasil, além de não reconhecerem a atuação dos bons funcionários ou prestadores, ainda costumam ser infensas à punição dos que desviam da norma.
Isso resolveria o problema da corrupção? Não de maneira total, certamente, mas já ajudaria bastante.

* Flávio de Andrade Goulart é médico, foi professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.