Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Cloroquina é de direita; isolamento é de esquerda. A morte, que deve ser ambidestra, espreita igualmente a todos. Entre tantos prejuízos que a presente pandemia já nos legou – e com reflexos inquestionáveis para o futuro – está a da polarização ideológica. Como falou Chico Buarque, esta é com certeza mais uma “página infeliz de nossa história”. Nada poderia descrever, como em tal frase, o momento de desdita, desgoverno e desvario em que estamos imersos. Um presidente intelectualmente tosco e irresponsável, com seguidores tão ou mais ignorantes do que ele, que conseguem politizar a seu favor, num balaio só, a cloroquina, o confinamento, o distanciamento social, o uso de máscaras e as verdades científicas, sem que isso tenha mudado em nada após tal personagem de ópera bufa, mas trágica em suas consequências, ter contraído a doença. Enquanto isso, coveiros fazem hora-extra para abrir sepulturas suficientes para as vítimas do vírus e multidões marcham alegremente para as praias e as baladas. O ponto a que chegamos: acreditar em microbiologia, imunologia, epidemiologia, metodologias de análise e na ciência, enfim, virou coisa de esquerdista, enquanto sua negação é ostentada orgulhosamente pelos que se dizem de direita. E morrer de Covid, é de direita ou de esquerda? Tristes tempos, nos quais todos nós, seja de uma banda ou de outra, os que acham que ideologia é só a dos outros e os que a reconhecem e aceitam, estaremos pagando um alto preço por tanta besteira.
“Direita” e “Esquerda” são sombras do passado, alguns dirão. Eu prefiro recorrer ao italiano Norberto Bobbio, um dos maiores pensadores políticos do século XX, que em sua obra “Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política”) acredita que continua valendo tal “díade”, mesmo em tempos, como os atuais, de negacionismo geral. Mas segundo ele, essas duas partes, Direita e Esquerda, implicariam identificar conceitos e práticas a serem considerados de forma mais ampla, não dicotômica, até podendo serem complementares. Ou seja, o buraco muitas vezes está além – ou aquém – de onde nossa vista alcança.
Em primeiro lugar, acredito, como Bobbio, que é preciso reconhecer polaridades mediadas e não absolutas, de forma a perceber nuanças, e não apenas o preto no branco, é prática intelectual legítima, mas que não pode ser confundida com o dualismo grosseiro de quem apenas enxerga “uma coisa ou outra”. A realidade não se apresenta assim, mas como uma coisa “e” outra, que se influenciam e se sobrepõem, estando estão incluídas umas nas outras muitas vezes.
Talvez valha a pena levantar uma questão, logo de início. Estes que se apregoam “de direita” talvez nem saibam o que é isso de fato. É claro que não aceitariam ser chamados de obscurantistas, reacionários, fascistas ou algo assim, mas na prática talvez nem saibam qual é o significado real dessas palavras.
A palavra ideologia também entrou no vocabulário de quem não faz a mínima ideia do seu real significado. Assuntos como células B, imunoglobulina M, isolamento social, farmacodinâmica, além de outros, passaram ser filtrados pela “ideologia”, quando na verdade são temas pertinentes à biologia, à epidemiologia ou à farmacologia. A ideologia existe e sempre é necessária uma discussão tendo ela como fundamento, mas isso, por si só, não esgota qualquer assunto. Aliás, negar a ideologia também é algo profundamente ideológico.
A visão obtusa da direita que aí está – ou assim se identifica – seja lá qual for o nome que se queira dar à horda de fanáticos que se ajunta no cercadinho do Alvorada, é incapaz de reconhecer nuanças na realidade. Para eles é preto ou branco; macho ou fêmea; esquerda ou direita; comunismo ou capitalismo; mamadeira fálica ou famílias de bem. Aborto após o estupro de uma criança de 10 anos é assassinato e o que importa é que o pavilhão verde-e-amarelo não fique vermelho um dia. Essas são as visões de mundo que os dominam. Dentro de tal cenário tosco de reflexões (?) é praticamente impossível argumentar.
Isso nos traz o problema das “zonas cinzentas”, ou seja, aquelas sombras que rodeiam qualquer obra humana, que misturam, em qualquer grupo social, dores e delícias; sublimidade e barbárie; crenças e dúvidas. E na presente situação pandêmica elas estão presentes, de fato, nem tudo sendo “preto no banco”, inclusive no conhecimento científico.
Mas também a própria realidade social carrega armadilhas, ao mostrar estratégias de organização e resistência originadas de comunidades pobres e marginalizadas, onde seria difícil imaginá-las, como se estivessem para sempre condenadas à simplória visão de mundo perpetrada pelo rebanho dominante. Perceber tais nuanças pode parecer coisa habitual, mas não é assim que funciona a mente daqueles que padecem da insuficiência caracterizada pela necessidade de se ter alguém (pastores, políticos, militantes, “mitos”, guias diversos) que pensem por eles. E neste caso não haveria monopólio da dita “direita”
É preciso também entender que o valor que se dá a alguns conceitos universal e consensual. Parece, mas não é. Liberdade, Democracia, Igualdade, Direitos: eu acredito nisso, você também. Mas para muitos são palavras vazias, flácidas, intercambiáveis. Nem falo daqueles que trocariam, de bom grado, emprego ou renda pela condução de um líder populista que despreze a democracia. Estes estão justificados pela sua pobreza material, que é bom adubo para pobreza espiritual e política. Mas tenho o maior temor daqueles, mais bem situados, economicamente pelo menos, que acham que isso realmente não passa de conversa fiada – de “esquerdistas”, de “gente que não pensa no Brasil”.
É um tipo de raciocínio que poderia ser considerado “mágico”, mas que sem dúvida é acima de tudo dogmático. Mas pensando bem, não seria exclusivo da Direita, principalmente se ela for do tipo inconsciente ou que apenas segue o rebanho, pois frequentemente vemos isso repercutido na outra banda, onde também trafegam algumas manadas errantes. E tudo se agrava quando vemos o cenário infectado não apenas pelo vírus, mas também pela polarização.
Mas convenhamos, o epicentro atual da virulência dogmática, demagógica, violenta e polarizadora tem nome, endereço e CPF – até as emas do Palácio da Alvorada sabem disso.
Mas de toda forma, aquelas palavras, melhor dizendo, valores citados acima (Liberdade, Democracia, Igualdade, Direitos) deveriam perder sua aura de abstração onírica diante das questões do mundo real, enfim, deixarem de ser tratadas como panaceias e pensamentos desejosos para as dores do mundo, para se tornarem ingredientes efetivos da ação política. Para não falar das dificuldades notórias em juntar, num único bonde, aqueles que realmente são contra o estatuto vigente, para confrontar o mal maior. E como estamos distantes disso, seja na direita dita civilizada (acho que ela existe), seja na esquerda.
Mas é preciso prestar atenção na História e em como ela nos revela o conteúdo do “prontuário” de cada segmento citado acima. Definitivamente, “não é tudo a mesma coisa”.
Simplificando a questão, sem dúvida, Direita e Esquerda, em suas formas mais conscientes pelo menos, travam um debate histórico em torno dos ingredientes da Liberdade versus o da Igualdade. Concretamente, nem os regimes de um lado (Thatcherismo, Reaganismo, por exemplo), nem os do outro (Socialismo real em suas diversas vertentes) lograram alcançar um optimum entre uma coisa e outra. A questão continua em aberto, portanto. O grande equívoco é a polarização, que só é capaz de enxergar “uma coisa contra a outra” e não o processo político dentro de uma luta histórica.
Fechando estas reflexões, ainda com Norberto Bobbio na algibeira, destaco sua crítica aos extremismos, seja de direta ou de esquerda, caracterizando-os como a intenção de provocar mudanças abruptas na história humana, em busca de abstrações ainda não testadas, com desprezo pelas eventuais conquistas obtidas pelas sociedades. É sempre bom lembrar que entre tais conquistas estão os progressos democráticos, que foram capazes de conter os grandes abusos de poder, lembrando que todas as vezes que se sacrificou a ordem em nome da busca por uma sociedade onde todos são plenamente iguais ou plenamente livres, os resultados alcançados foram decepcionantes, avessos mesmo ao objetivo onde se pretendia chegar.
Para Bobbio, romper com a democracia (por mais limitações que ela possa ter) para se buscar algo melhor poderia representar não um avanço, mas um retrocesso. As verdadeiras “intentonas” contra-democráticas e iliberais que continuamente se celebram nas praças públicas de Brasília e de outras cidades no país cinzento em que habitamos bem ilustram isso. Enfim, as conquistas democráticas devem ser conservadas e reformadas ao longo do tempo, de forma a avançar sem o risco de perder o que já foi conquistado.
O nosso azar como sociedade, sem dúvida, é a de termos “fraquejado” e gerado estas monstruosidades que nos acossam. Acho que “vai passar”, mas talvez ainda demore.
Enquanto isso, o melhor é cultivar as virtudes da Democracia e da Ciência, sendo que esta última, que mesmo com suas falhas, ainda é o sistema que apontou caminhos mais promissores para a Humanidade. Da penicilina à internet; das leis de Newton à prospecção freudiana do inconsciente.

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Saiba mais:

• SILVA, WA; MORAES, RA. Direita e esquerda no pensamento de Norberto Bobbio. Agenda Política. Revista de Discentes de Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos Volume 7, Número 1, São Carlos, 2019, 168-192
• BOBBIO, N. (1995). Direita e Esquerda. Razões e Significados de uma Distinção Política. São Paulo: Editora UNESP.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.