Dr. Flávio Goulart*

Boas práticas, sérias e responsáveis no controle da atual pandemia existem! Nem tudo é a mixórdia que se vê aqui no DF e em grande parte do país. Em dois posts passados tive a oportunidade de comentar os acertos verificados não só no Uruguai, mas também em diversas localidades brasileiras, como São Caetano do Sul, Belo Horizonte, Pelotas, Lagoa Santa, na cidade de Ceilândia, aqui no DF, além do estado de Mato Grosso do Sul e da Zona Norte da Cidade do Rio. Há muitos outros lugares que estão tomando medidas acertadas como essas, certamente, porque a irresponsabilidade e a insensatez são, felizmente, ingredientes não uniforme e “democraticamente” distribuídos no Brasil. Usando a linguagem bíblica, que alguns apreciam (da boca pra fora) nos dias de hoje, podemos dizer que nem todos os mandatários políticos lavam suas mãos, à moda de Poncio Pilatos, e nem todos, também, traem seus cidadãos, como Judas Iscariotes. Sem esquecer de Herodes, é claro. Já o presidente, como se sabe, faz uma coisa e outra, além de propagandear medicamento ineficaz e perigoso. Mas o que seria fazer a coisa certa na situação pandêmica atual?
Na verdade, fazer a coisa certa não tem muito segredo, não. A roda, de maneira geral, já está inventada, pronta para utilizar. Ignorância e má fé é que podem torná-la quadrada… Assim, olhando para os casos dos lugares citados, podemos ver que há uma série de ações coincidentes, algumas mais fortes aqui, outras ali – mas quase sempre presentes. Vai abaixo uma lista delas, sem preocupações de que seja exaustiva.
1. Liderança e credibilidade, por parte de quem tem o comando político ou técnico, são essenciais. É importante, para convencer as outras pessoas, de que quem emita as normas não só esteja convencido de sua validade, como também tenha um modo adequado de comunicá-lo. Sabem aquela imagem do médico que recomenda aos seus pacientes que parem de fumar, mas que no bolso do jaleco mostra um maço de cigarros?
2. Ações coordenadas e planejadas são essenciais e, mais do que isso, calcadas em alianças negociadas na sociedade, nos centros de pesquisa, nas universidades, nos organismos da sociedade, no sistema escolar, nos aparelhos da justiça etc. Ações em rede, em uma só expressão.
3. Respeito à Ciência é fundamental. Remédios, só aqueles que já foram testados mediante protocolos de reconhecida eficácia. Nada de achismos ou de recomendações de alguma droga ou procedimento só porque se soube de meia dúzia de sucessos, ou porque algum ilustre desconhecido, com ou sem jaleco, cujo currículo se desconhece, andou dizendo isso ou aquilo.
4. Criatividade: a testagem nas ruas, em pleno trânsito, como se faz em São Caetano do Sul, é um bom exemplo disso. Mas há muito a fazer neste campo, sem desrespeitar os limites científicos, por exemplo, na educação do público, no rastreamento de casos, no alcance a grupos de risco, entre outros aspectos.
5. Informações são também fundamentais. Ninguém combate pandemias, ou mesmo doenças simples, se não tiver dados atualizados e confiáveis, além de baseados na realidade local. Lidar apenas com estatísticas externas pode não ajudar ou até atrapalhar. Na realidade brasileira a chamada curva epidemiológica está em diferentes estágios de evolução em cada região ou mesmo município do pais.
6. As pessoas são iguais perante a lei, mas não perante a pandemia. A detecção e a abordagem diferenciada para grupos de risco devem ser feitas como parte rotineira das ações, com foco, entre outros grupos, em idosos, portadores de comorbidades, moradores de rua, presidiários, pessoas em asilos, crianças em creches etc.
7. A pandemia deu impulso em todo o mundo às tecnologias de informação, comunicação e educação. Existem alternativas diversas, que vão desde o uso ampliado de simples celulares até as grandes centrais agregadoras de dados. Para as atividades rotineiras de base local, estratégias corriqueiras, como o uso de celulares para buscar e rastrear casos têm sido impactantes. O georreferenciamento surge daí como ferramenta de uso já corriqueiro e essencial.
8. Auditoria de prontuários e de números também importa. Lembrar que estamos diante de uma situação que ainda traz novidades para todo mundo. A revisão ex-post-facto dos dados disponíveis, feita mesmo entre pares, pode ajudar muito a exorcizar as imprecisões e também possibilitar a correção de rumos, seja no gerenciamento sistêmico, seja na gestão de casos individuais.
9. Proteção a usuários e profissionais, sim, mas de forma conjunta. Não há dúvida que muitos profissionais de saúde adoeceram e morreram com a pandemia, mas não se pode planejar medidas para uns sem que os outros estejam sendo considerados.
10. Situações excepcionais como esta exigem, muitas vezes mudanças adequadas na própria estrutura e processos nas unidades de saúde, como bem exemplifica a experiência de Ceilândia, aqui no DF, com suas propostas de acolhimento e mudança de layout interno. Aliás, uma das “vantagens” que a pandemia pode trazer seria exatamente a de se experimentar mudanças nos processos de trabalho, muitas delas, inclusive, podendo ser incorporadas à rotina dos serviços mais tarde, assim como já acontece, por exemplo, com as atividades escolares, com o comércio e até mesmo com as próprias relações amorosas.
É bom lembrar que há um passo até agora tímido, não só nas experiências em foco como na realidade brasileira de maneira geral: a realização ampliada de testagens. Uma parte do problema deriva da tremenda incompetência que a administração militar e as posturas do atual governo implantaram e têm mantido no Ministério da Saúde, que de outra forma seria responsável por comandar e prover de insumos tal processo em nível nacional.
Estaríamos, sem dúvida, em melhor situação não fossem os maus espíritos do comandante Poncio Pilatos, de Judas Iscariotes, de Herodes e outros, reencarnados neste pobre país. Que Deus – não o deles – nos proteja…

Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.