Flávio Goulart*

Vamos batendo, semana após semana, o recorde de número de mortos na tal “gripezinha” de Bolso-Nero. Dados oficiais de 29 de maio último mostram que chegamos a mais de 26 mil mortes no país, mais de 140 no DF. E o homem não desanima em sua sanha irresponsável e homicida. Demitiu dois Ministros da Saúde e, no caso deste último, fez isso antes mesmo que seu nome fosse lembrado pela população, para o bem ou para o mal, Além disso, escalou para o MS todo um regimento verde-oliva, com gente que entende de saúde apenas o bastante para comprar uma aspirina na farmácia da esquina. Não satisfeito, passou a receitar a cloroquina como panaceia, botando um general para cuidar disso, como quem nomeia um comandante de tropas para vencer um inimigo (que na verdade ele não identifica muito bem). Para ele e para os seus, saúde é apenas uma questão de logística – e de obediência. Pensando bem, já é hora de alguém questionar esta suposta “eficiência” dos militares na gestão da coisa pública, transformada em mantra neste governo. Como bem dizia Clemenceau, um político francês de um século atrás, “a guerra é um assunto muito sério para ser confiado aos militares”. A Saúde, nem se fala; cloroquina aí incluída…
Enfrentar a atual pandemia está difícil para todos os países do mundo. Alguns tiveram sucesso já aferido, como a China, por ser um regime autoritário, ou a Alemanha, a Nova Zelândia e a Coreia do Sul, por serem ricos, por um lado e terem dirigentes responsáveis, por outro. Já outros chafurdam na lama da ignorância, da ideologia e da pobreza de espírito, como o nosso pobre Brasil, ao qual fazem boa companhia a Venezuela, a Nicarágua, o Turcomenistão, entre outros…
Neste pequeno texto pretendo analisar, de forma panorâmica, mas baseada em evidências, algumas das questões que fazem com que tenhamos a exibir ao mundo apenas esta marcha envergonhada de caranguejo, com mais passos para trás do que para frente.
1. O cenário. Em primeiro lugar, as nossas marcantes desigualdades, que fazem com que no Brasil o vírus tenha preferência especial pelos mais pobres, nas diversas categorias em que se dividem estes: negros, moradores de periferias urbanas, ribeirinhos, pessoas confinadas, velhos abandonados pelas famílias etc. A questão habitacional é gritante, particularmente diante da necessidade de se manter distanciamento. Moradias acanhadas, precárias, sem água e sem saneamento básico, onde habitam, às vezes, meia dúzia de pessoas em dez metros quadrados, constituem ambiente privilegiado… para o vírus, naturalmente. Se a questão é a da higiene pessoal, ou seja, dispor de água para lavar as mãos, tomar banho, limpar as dependências da casa, o vasilhame de cozinha, neste caso são muitos, mas muitos mesmo, os brasileiros que não auferem de tal direito, que afinal de contas é apenas o direito de se proteger. Isso valeria não só para a atual pandemia, mas também para outras situações atuais ou pretéritas, como a peste negra, a gripe espanhola, a gripe H1N1 e a SARS, para falar das mais notáveis historicamente. Determinantes sociais, como renda, moradia, acesso à saúde, condições de trabalho, educação, transporte digno, acesso à comida saudável, são fatores que influenciam profundamente não só a transmissão e a severidade de doenças transmissíveis, como a atual pandemia, como em muitas outras, mesmo as crônicas e degenerativas e as violências, por exemplo.
2. Como o nosso governo (?) tem reagido? Em que pese a gravidade incontestável do problema, constatada em muitos países do mundo e também no Brasil, a reação ao mesmo por parte do governo brasileiro vem sendo marcada por equívocos em série, que têm colocado em risco a segurança sanitária da população. A postura do próprio Presidente da República, muito aquém do que se esperaria de uma autoridade. Jair Bolsonaro tem, com efeito, minimizado a importância do problema, utilizando termos como “gripezinha”, “resfriado comum” ou “histeria” provocada pela imprensa. Além disso, contrariando frontalmente as orientações de seu próprio Ministro da Saúde, depois demitido, tem se exposto e promovido diversas formas de contato próximo com cidadãos, até mesmo participado de aglomerações, inclusive com palavras de ordem contrárias à democracia e também às próprias medidas oficialmente assumidas pelo governo. Não obstante a gravidade disso, mantem postura de belicosidade contra governadores, prefeitos, cientistas e outras autoridades nacionais e estrangeiras, ao se contrapor visceralmente às medidas de controle sanitário que os mesmos vêm executando ou defendendo. O cume de tudo isso foi a demissão de seu Ministro da Saúde, Henrique Mandetta, que, bem ou mal, vinha executando medidas baseadas na ciência e nos ditames dos organismos internacionais de saúde, coerentes, aliás, com as políticas específicas de diversos países do mundo. Ao lado disso resolveu assumir, sabe-se lá por quais razões, a defesa da utilização de medicamento não suficientemente testado pela ciência, além do mais com efeitos colaterais potencialmente perigosos. Paralelamente, medidas de proteção sanitária e econômica da população, particularmente a mais vulnerável, foram postergadas ou executadas com displicência e desprezo pelo problema. De forma acintosa, o foco colocado pelo Governo, com endosso claro do Presidente, tem sido a saúde da economia, particularmente de bancos e grandes empresas, muito mais do que na saúde da população. O resultado disso é que não só as medidas sanitárias de isolamento e quarentena tem sido pouco acatadas pela população, à falta de exemplos vindos de cima, mas também intervenções importantes deixam de ser executadas a tempo como, por exemplo, a compra de insumos de diagnóstico; o investimento na busca informações mais rigorosas e em tempo ágil; a contratação de leitos hospitalares adicionais; a emissão de decretos ou a proposição de leis que pudessem relativizar o domínio e a soberania do setor privado na questão dos leitos hospitalares e de UTI.
3. E de que modelo assistencial dispomos para tal enfrentamento? A atenção primária em saúde, ou atenção básica, como é conhecida no Brasil representa a “porta de entrada” dos usuários no sistema de saúde, tendo como objetivo não só promover medidas educativas e de prevenção de doenças, como solucionar casos de doenças agravos, além de direcionar e garantir o encaminhamento dos mais graves aos níveis mais complexos, como os hospitais, emergências e ambulatórios de especialidades. No mundo todo, são os países que tem a sua atenção básica mais pujante é que tem colhidos melhores resultados no controle da pandemia. O Brasil tem a Estratégia de Saúde da Família como modelo mundialmente respeitado de atenção básica, contando hoje com 45.796 mil equipes, cobrindo cerca de 150 milhões de pessoas estão cobertas, embora de maneira não totalmente regular. Mas cabe a pergunta: a atenção básica ela estaria dando contado recado no momento presente? Há muitos problemas, todavia, entre eles, as dificuldades de fixação de médicos; as carências materiais e de recursos humanos que afetam as equipes; a pouca valorização de tal estratégia de ação, seja por parte dos profissionais, dos mandatários políticos e mesmo da população; a carência de profissionais qualificados nas diversas profissões de saúde.
4. A estrutura de Saúde. Como se vê, falhamos em tal modelagem, mas podemos contar com a estrutura existente, mesmo desregulada? Sobre os leitos hospitalares que estão disponíveis para a população, dados recentes mostram que o Brasil dispõe de 2,01 leitos por 1.000 habitantes, o que representa uma taxa inferior àquela de países como a Itália (3,18), a Espanha (2,97) e a Inglaterra (2,81), sendo bastante desigual entre as diversas regiões e unidades da federação. Apenas uma parte de tal capacidade hospitalar encontra-se disponível para atendimento a toda a população, sendo 31% dos leitos vinculados apenas aos clientes de planos de saúde e particulares de modo geral. Mesmo na rede pública do SUS, 21,5% dos leitos são de natureza privada e 64% filantrópicos, ou seja, fora do controle estatal direto. Em termos de leitos públicos, em dois terços das regiões de saúde do país o número de leitos de UTI por 100 mil habitantes é inferior ao mínimo necessário, mesmo para um ano típico, sem considerar as necessidades trazidas ao cenário pelo Covid-19. Em se tratando da oferta de leitos de UTI e respiradores disponíveis, verifica-se que a disponibilidade no SUS é cerca de 50% da oferta total, com enorme heterogeneidade regional na distribuição de tais recursos e que mesmo juntando SUS e serviços privados, mais de metade das regiões de saúde dispõem leitos insuficientes. Verifica-se, ainda, que das regiões de saúde com número de leitos de UTI pelo SUS abaixo do mínimo, pelo menos a metade não possui leito algum, o que significa que parcela apreciável da população que depende exclusivamente do SUS conta com zero leito de UTI na região em que reside. Tal carência absoluta se concentra nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
5. E a atual relação entre o setor público e o privado em saúde no país, ajuda ou atrapalha? Uma maior cooperação entre ambos tem sido advogada como um caminho para se contornar este grave problema que aflige o país. Segmentos mais lúcidos e comprometidos com a saúde pública no Brasil, defendem que se implemente no país uma estratégia de “fila única” para internação e UTI, com foco nos casos graves de Covid-19, independentemente de os pacientes serem usuários, ou não, da rede dos planos privados. Isso, evidentemente não é aceito pelas empresas do setor, que defendem que seus serviços sejam oferecidos apena com base no mercado, ou seja, para quem contribua financeiramente de forma direta com o sistema. Propõe-se, assim, a criação de um sistema nacional de vagas, nos moldes do atual e bem-sucedido Sistema Nacional de Transplantes, sob regulação do Ministério da Saúde, dentro de um modelo já testado em outros países, acarretando subordinação do setor privado da saúde às políticas públicas, pelo menos enquanto dure a pandemia. Tal medida tem respaldo no art. 5º da Constituição Federal e em decretos já editados relativos a calamidades. Trata-se de um imperativo ético do qual não se pode fugir. É preciso deixar claro que a preservação da vida é de responsabilidade pública e, em um caso como o da presente pandemia, uma fila única e de gestão pública deve ser constituída, face ao potencial de omissões e oportunismos discriminatórios típicos dos negócios puramente privados.
6. Temos informações confiáveis? Embora se possa reconhecer que a capilaridade do SUS no Brasil, embora tenha lacunas, ela tem sido capaz de gerar informações relativamente confiáveis. Todavia, nos cemitérios brasileiros há centenas de covas à espera de novos inquilinos, sendo estas numericamente muito superiores às mortes registradas nas estatísticas oficiais. Exemplificando, no Brasil ocorreram, em 2019, cerca de 58 mil mortes por “pneumonia” e 44 mil por “insuficiência respiratória”, enquanto nos primeiros quatro meses de 2020, tais registros já são de 54, 8 mil e 41,6 mil, respectivamente. Ao mesmo tempo os números oficiais de morte por Covid-19 são, até o momento de tal levantamento, em torno de três mil no país. A explicação para isso é simples, embora trágica: não há testes disponíveis em quantidade suficiente no país, o que faz com que muitas pessoas que estão adoecendo – e mesmo morrendo – tenham diagnósticos apenas presuntivos, ou provisórios. E aqueles que morrem, para os quais é formalmente exigido que em seu atestado de óbito conste a causa da morte, recebem aqueles rótulos, por assim dizer, “genéricos”. Mas não há dúvida, apontam os especialistas: o que está matando mesmo é a Covid-19.
Para não ficar só no diagnóstico (ou na crítica), vamos arrolar algumas medidas que poderiam ser tomadas. Fica aqui uma resposta àqueles já tristemente proverbiais “e daí?” ou “não posso fazer milagres” proferidos recentemente pela mais alta autoridade da República. Sem dúvida, são necessárias ações multisetoriais e multidisciplinares, além do mais, urgentes, além de uma compreensão mais adequada, liberta de ideologias e baseada na ciência. Uma síntese do que deveria ter sido feito:
1. Em primeiro lugar, unificação de procedimentos, em bases negociadas entre níveis de governo versus o autoritarismo e a beligerância que se constata até agora, ressalvando que a realidade altamente heterogênea do pais, tanto do ponto de vista econômico, como cultural e epidemiológica deva ser considerada.
2. Isolamento e quarentena são medida testadas em todo o mundo e os países que deixaram de optar pelas mesmas, mesmo por períodos restritos de tempo, estão pagando um alto preço em termos de mortes e de custos econômicos, além da sobrecarga do sistema de saúde; tais medidas devem ser defendidas a todo custo, em que pese a controvérsia e o tibieza com que algumas autoridades vêm tratando o problema.
3. Impõe-se também a necessidade de desenvolvimento de uma política de testagem em massa, com a devida articulação de insumos, logística e estratégias para sua operacionalização, com total urgência em altos percentuais da população, longe da atual tática de fazê-lo por “drive thru”, o que naturalmente contempla apenas os segmentos da população com possuem veículos.
4. Medidas de ampliação de leitos de UTI e de equipamentos de hospitais públicos são também necessárias, inclusive com eventual intervenção estatal em serviços privados, implicando na mobilização de recursos para tanto, mesmo que originários de fontes pouco habituais, como, por exemplo, os recursos de emendas parlamentares e os recursos de financiamento eleitoral e partidário.
5. Não apoiar qualquer açodamento no retorno às atividades públicas, respeitando os pareceres dos especialistas em epidemiologia e não apenas aos agentes da área econômica.
6. Cautela quanto às “balas mágicas” às vezes anunciadas pelas autoridades (caso da cloroquina) e reforço às medidas de intervenção e tratamento que sejam efetivamente baseadas em evidências comprovadas pela ciência.
7. Atenção e cautela, também, quanto à verdadeira “epidemia” de notícias falsas (fake-news), muitas delas revestidas de interesses comerciais e viés ideológico e partidário.
8. Melhoria das informações estatísticas e da capacidade decisória das autoridades.
9. E por último, mas não menos importante, especial atenção cuidado com os segmentos mais pobres da população, além daqueles considerados “grupos de risco” para doença, como é o caso dos idosos, portadores de doenças crônicas e debilitantes, presidiários e outras populações confinadas.
Alguém ainda se surpreende com tal tragédia mais do que anunciada? Que ninguém venha querer justificar seu voto ou seu apoio a tal aberração com aquele velho argumento do “se eu soubesse…”. Para estes, usarei o antídoto do “mas eu não disse?”

*Médico, doutor em Saúde Pública, professor aposentado da Universidade de Brasília, ex-secretário de Saúde de Uberlândia – goulart.fa@gmail.com