J. Carlos de Assis

O fundamento da democracia, segundo Norberto Bobio, é o princípio segundo o qual os cidadãos são livres para estabelecer conjuntamente seus próprios deveres e direitos. É o oposto do liberalismo absoluto, copiado recentemente pelo neoliberalismo, segundo o qual o fundamento da liberdade é a liberdade sem limites. A ação prática segundo esses princípios jamais prevalecerão de forma absoluta uma sobre a outra, porque liberalismo e democracia participam, cada uma, dos elementos essenciais da outra – ou seja, há no neoliberalismo conteúdos democráticos, assim como há na democracia conteúdos libertários.
Essas questões aparentemente abstrata estão profundamente arraigadas na vida política prática norte-americano. O Partido Republicano, liberal em economia, funciona segundo os cânones democráticos em política. O Partido Democrata, de caráter plebiscitário, funciona como uma hierarquia partidária fechada, o que se pode ver na sucessão histórica de seus presidentes, contaminando os republicanos, como os Bush, e se expressando na tentativa de se eleger Clinton como sucessora do marido. É sintomático dessas ambivalências que a palavra “liberal” em inglês tenha dois sentidos, o sentido econômico e o sentido moral.
Vejamos esses conceitos à luz do que ocorre atualmente nos Estados Unidos, no Brasil e no mundo. Acabamos de ver aprovada uma lei, a chamada lei de reforma trabalhista, cujo conteúdo central é a prevalência do “negociado sobre o legislado”. Ou seja, isso é a dominação absoluta do liberalismo econômico sobre a democracia, na medida em que a democracia é o domínio da lei estabelecida pelo conjunto da sociedade sobre interesses individuais e de grupos. Os autores dessa reforma pensaram essencialmente no interesses dos patrões, não no interesse da sociedade. Privilegiaram grupos, não o conjunto da nação.
Não é necessário sofisticar o argumento para chegar às mesmas conclusões. Quando se fala em prevalência do “negociado sobre o legislado” esquecem-se os milhões de trabalhadores que não tem condições efetivas de defenderem seus interesses em face dos patrões. Na realidade brasileira, essa “inovação” trabalhista, que de fato é uma “regressão”, foi introduzida conjuntamente com uma medida destinada a enfraquecer os sindicatos, pela retirada da contribuição sindical, o que está ferindo de morte seu próprio órgão técnico, o DIEESE, Departamento Intersindical de Estudos Estatísticos e Sócio-Econômicos.
Vejamos, ágora, a situação a que a ideologia neoliberal está levando o Brasil na maior crise trabalhista e econômica de todos os tempos. O Governo camuflou o aumento do diesel (e dos demais combustíveis) na vinculação dos preços internos dos derivados do petróleo ao mercado internacional, basicamente norte-americano. Isso criou uma tensão extrema com os caminhoneiros, esmagados entre o preço crescente do diesel e o preço “de merdado” do frete. Desesperados, em plena greve, exigiram que, para acomodar o preço do diesel com o subsídio de 46 centavos de real, fosse reajustado proporcionalmente o preço mínimo do frete.
Os empresários que transportam soja se insurgiram, e continuam se insurgido, porque seus contratos atuais e futuros embutem um preço mais baixo do frete. Em alguns casos, se quiserem contratar o transporte de soja ou milho, perdem dinheiro. Antes, foram os caminhoneiros que fizerem uma espécie de greve de sobrevivência para reduzir o preço do diesel. O governo interveio subsidiando o diesel mas compensando os valores na redução dos orçamentos públicos e, tentativamente, na redução do ICMS, que depende da vontade dos governadores – já quebrados financeiramente pelo próprio governo.
Isso é o que a literatura chama propriamente de “oximoro”, uma palavra criada que exprime conceitos contraditórios, a exemplo de “lúcida loucura”. Estamos diante de uma lúcida loucura absoluta, onde os límpidos conceitos do neoliberalismo de almanaque, postos em prática por Pedro Parente e Michel Temer, provocam uma crise mundial sem precedentes, a partir do mercado de grãos. É que cargas do maior exportador mundial de soja, o Brasil, não conseguirão chegar aos portos ao tempo de abastecer os contratos à vista de Chicago, base dos contratos futuros e dos derivativos, como os swaps.
Há uma única alternativa para a quebra financeira ocidental (o Oriente está protegido pela China): a redução imediata, sem subsídios, do preço dos combustíveis – inclusive o socialmente relevante gás de cozinha -, para ajustar os fretes à receita potencial da soja, do milho e de outras commodities agrícolas. Este governo o fará? Ou os norte-americanos, que deram contribuição relevante à derrubada de Dilma, entrarão no jogo para quebrar a espinha do neoliberalismo brasileiro, ao mesmo tempo em que quebrarão a espinha ideológica de seu próprio neoliberalismo? A resposta definitiva está com Fux, o grande Salomão tupiniquim, que não deve manjar nada de economia, e que vai julgar nesta quinta a ADIN dos fretes.

*Professor de Economia e jornalista. Autor dos livros: A Chave do Tesouro: Anatomia dos escândalos financeiros: Brasil, 1974-1983; Os Mandarins da República: Anatomia dos escândalos na administração pública, 1968-1984; A Dupla Face da Corrupção e Os sete mandamentos do jornalismo investigativo.