Dr. Flávio de Andrade Goulart*

People´s Health Dispatch, publicação com foco na política de saúde, direito à saúde e também em ações organizadas pelos trabalhadores do setor, traz à luz um relatório sobre a saúde mental de trabalhadores da saúde em diversos países do Sul e do Norte global, mostrando, como seria de se esperar, a existência de muitas disparidades entre os respectivos sistemas de saúde, mas também diversos problemas em comum, entre os quais se destacam as longas cargas horárias, a alta demanda de trabalho, os baixos salários e a precarização. As autoras, Ruth Ballardie e Vera Weghmann, esclarecem em entrevista (ver link ao final) as principais conclusões de sua análise. Vai a seguir uma síntese da entrevista, mas antes de passar a ela penso que caberiam alguns comentários sobre o tema do cuidado aos cuidadores. Nada mais justo do que pensar neles, sem dúvida. A obra em foco revela muitas distorções a que os trabalhadores de saúde estão submetidos, acima e abaixo do Equador, em países tão díspares como a paupérrima Libéria e a abastada Suécia. Destaca-se, por exemplo, o estresse ocupacional e o burnout, que crescem avassaladoramente em toda parte, enquanto as condições de trabalho em geral pioram, os salários encolhem, os direitos são restringidos e a carga de trabalho explode. Eu, que já fui pronto-socorrista na minha juventude, posso dizer que sei muito bem o que é isso. O texto de Ballardie e Weghmann, sem perder seu caráter militante, é muito elucidativo e vale a pena ser conhecido na íntegra. Mas há um reparo a fazer (nada é perfeito…). Não há neste texto nenhuma menção mais direta e insistente sobre os direitos dos pacientes. E todos sabemos que se há algo mais desrespeitado em toda parte, particularmente em um país como o Brasil, são os direitos dos pacientes – muito mais, aliás, do que os direitos dos trabalhadores. Não se trata de trocar uma coisa pela outra, pelo contrário, é importante que tanto uma como a outra sejam protegidas, defendidas e valorizadas. Mas no meu entendimento as pautas sindicais, no Brasil e em toda parte, costumam ser um tanto alheias quanto a este tipo de ênfase, que poderia ser traduzida pela simples expressão: a parte mais importante de um sistema de saúde são seus usuários. Que o sindicalismo em saúde explicite isso já no caput de seus documentos e que também o tema seja incluído nas análises que lhe são feitas. Sim, porque não faz sentido proteger trabalhadores da saúde enquanto os usuários são deixados em segundo plano. É isso aí: tudo junto e pra já!
Aqui vai uma síntese:
• A saúde mental dos trabalhadores da saúde em todo o mundo vem se deteriorando há muitos anos, associada ao crescimento do estresse ocupacional, que oscilou de 33% em 1990. para 44% em 2022.
• A pandemia da covid-19 exacerbou enormemente os problemas de cansaço e saúde mental, questão que afeta diversas outras profissões, mas tem sido pior para os trabalhadores da saúde.
• Mais do que soluções de emergência, é preciso colocar foco no que está acontecendo no nível coletivo, pois sem dúvida a associação entre o estresse ocupacional e o ambiente de trabalho é crítica e crescente, representada por trabalho excessivo, pressão nos ambientes de trabalho, falta de pessoal, turnos longos, problemas de comunicação, baixos níveis de apoio institucional e planos de carreira insuficientes.
• Vem daí uma série de consequências como depressão, ansiedade, burnout, estresse pós-traumático, doenças cardiovasculares e transtornos musculoesqueléticos, bullying e violência no trabalho, com numerosos riscos psicossociais, que se agravam devido aos baixos salários e à ausência de estabilidade nos empregos, afetando de forma diferenciada a maioria feminina.
• Questões especialmente a agravar o problema em termos mundiais são: remuneração baixa; rotatividade das equipes; desincentivos ao desenvolvimento profissional; dificuldade de se contratar novos funcionários; força de trabalho sobrecarregada.
• Considera-se que nas últimas décadas, políticas econômicas e modelos de financiamento neoliberais prejudicaram o financiamento dos sistemas de saúde, junto com legislações contrárias ao interesse dos sindicatos, aspectos incentivados por organizações como o Banco Mundial e o FMI, particularmente me países de renda média e baixa.
• Ocorre, sem dúvida, em todo o mundo uma crise global da força de trabalho da saúde, com riscos que interagem com as questões macro, diferenciadas de um país a outro, mas o grande fator que está na raiz das mudanças em curso é a implementação de políticas neoliberais e também o ataque à resistência que os sindicatos fazem a elas.
• A crise de investimento resulta em escassez na contratação de volume suficiente de profissionais e na garantia da multiprofissionalidade e da capacitação adequada, particularmente de trabalhadores mais jovens, da mesma forma que a manutenção de salários adequados.
• Em relação ao Brasil, o estudo aponta que existe um aprofundamento das desigualdades pré-existentes, com impactos ligados a questões de raça, classe gênero; os turnos de trabalho são excessivamente longos; o acúmulo de vínculos é regra; o SUS é um fator positivo, mas vem sendo corroído pelas privatizações e políticas neoliberais e pela reforma trabalhista; o negacionismo do governo anterior na pandemia fez aumentar os riscos para os trabalhadores; no governo Lula estão ocorrendo mudanças positivas, embora ainda tímidas, com destaque para a discussão do piso da Enfermagem

• *Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário de Saúde em Uberlândia – MG