Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Visando inovar neste espaço, apresentamos hoje um diálogo entre Flavio Goulart e Henriqueta Camarotti sobre a atividade de voluntariado e suas implicações no setor Saúde, coisa que tem muito a ver uma com a outra. Aqui no Brasil somos testemunhas das várias entidades religiosas que se dedicam a isso, pelo menos em suas origens, com especial menção às Santas Casas de Misericórdia, cuja primeira unidade foi fundada no Brasil poucos anos depois da chegada dos portugueses. Sem esquecer das múltiplas entidades espíritas, evangélicas e de matriz afro, sem falar de muitas outras iniciativas derivadas diretamente da sociedade civil, sem qualquer ligação religiosa, que também fazem parte desta ação civil tão especial. Vamos ao tal diálogo, então, ao qual convidamos os leitores a participar.
FG: Acho que podemos iniciar este diálogo com uma pequena história. Contar casos é do meu feitio, desculpe… No início da década passada, eu, docente da UnB participei de uma reunião do colegiado da Faculdade de Medicina na qual se discutia a oportunidade e o objeto de um convite para que alguma personalidade médica viesse fazer uma palestra inaugural para os jovens alunos recém ingressados. Após muitas discussões, chegou-se ao consenso relativo de que um representante da organização internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) seria uma boa indicação. Mesmo sem ter nada contra tal deliberação, ponderei que talvez pudéssemos indicar alguém que representasse uma iniciativa, que a meu ver estava mudando os rumos da assistência à saúde no país, o Programa de Saúde da Família, com a vantagem de ser “coisa nossa”, ao contrário do MSF, que na época nem atuava no Brasil. Fui voto perdedor, por larga margem, e o tal representante foi convidado, mas acabou delegando o convite a uma pessoa de escalão secundário na tal organização, que afinal nem compareceu. Tudo bem, faz parte do jogo, mas este fato me confirmou uma impressão antiga que eu tinha: a mística que o trabalho tido como voluntário exerce sobre as pessoas. E eu indago a você Henriqueta: isso é sempre justificável, ou pode ser relativizado?
HC: Entendo Flavio que tudo tem seu contexto e suas intenções. Ao longo da vida, se eu posso resumir em algumas palavras, tenho sido testemunha do papel das ações de voluntariado, quer seja individual ou institucional, como construtoras de uma capilaridade muitas vezes inalcançável pelas políticas públicas. Primeiro, porque elas procedem diretamente da criatividade e do coração compassivo das pessoas e, também, porque não estão atreladas às burocracias ou lentificações processuais das instituições formais. Gostaria de acrescentar que algumas iniciativas movidas pelo voluntariado são motivadas pelas necessidades da população que só muito tempo depois vão sendo oferecidas pelo sistema público.
FG: Acho que você tem uma história de vida na qual o voluntariado teve um papel muito importante. Conte para nós.
HC: Sim, eu me vejo defensora, a princípio, do voluntariado, vou te contar um pouquinho minha história e dizer quando começou essa simpatia. Eu tinha onze anos de idade quando comecei a acompanhar uma tia-avó espírita cuja vida foi integralmente dedicada aos pobres e desvalidos. Por ser originária da cidade de Paud’alho e depois moradora da cidade de Olinda, essa tia ajudava sistematicamente os idosos desvalidos de ambas as cidades, além de acolher e cuidar dos doentes geralmente terminais que ali residiam. Conto essa história para dizer que eu cresci e construí minha visão de mundo entendendo que nosso propósito como ser humano vai além das nossas obrigações formais. Posso dizer que na minha vida como médica e pessoa sintonizada com causas humanitárias, estivem sempre envolvida com ações de voluntariado, mesmo com toda responsabilidade que a minha função suscita.
FG: Henriqueta, eu de fato acredito que voluntariado represente sempre algo positivo. Pessoas fazendo pelos outros, que talvez de outra forma não pudessem ser socorridos, ações que produzem reposição material e afetiva, traduzida por bem estar, proteção, solidariedade emocional. Mas mesmo assim acho que precisamos cuidar para que não haja desvios, mesmo que bem-intencionados.
HC: Gostaria de entender melhor o que você considera desvios, mas posso antecipar que nesse caminho existem trabalhos maravilhosos que salvam e melhoram a qualidade de vida das populações, realizados por grupos religiosos, instituições não governamentais, programas e redes internacionais, que abrangem desde aplacar a fome e prover necessidades básicas até ações de proteção dos animais, do Planeta e das relações entre os povos. Mas vamos ser realistas e compreender que a caminhada humana e assim como os programas de voluntariado teve e tem alguns equívocos. Penso que precisamos refletir amplamente essa questão, não como tentativa de reduzir a importância, mas como forma de avançarmos investindo em ações fundamentadas no desenvolvimento humano, fomento à cidadania e resiliência, ampliação da consciência como pessoa e como grupo.
FG: No caso do voluntariado no âmbito das religiões, acho que os cuidados têm que ser desdobrados, pois faz parte do modus operandi delas fazer proselitismo. Tenho alguns exemplos disso, baseados em minha vivência como Gestor de Saúde, como era o caso dos espíritas fazendo distribuição de roupas e remédios, muitos deles provenientes de amostras grátis doadas por médicos, sem nenhum critério, seja de necessidade econômica ou clínica. Ou dos evangélicos com suas comunidades terapêuticas, ávidos por verbas públicas, partindo do pressuposto que ler o Evangelho pode curar a dependência. Mas você que tem raízes religiosas na família talvez possa fazer uma defesa do papel das religiões no voluntariado – ou pelo menos aprofundar este aspecto.
HC: Estás trazendo uma questão bem interessante, primeiro a diferenciação entre voluntariado e voluntarismo; segundo, que toda ação humana, quer na família, no trabalho ou nas ações voluntárias, passam pelo filtro da natureza da pessoa ou do grupo. Nesse exemplo da distribuição de medicamentos sem critério ou prescrição médica, eu como médica entendo não ser uma boa prática. Mas, entendo também que esses abnegados estão buscando aliviar sofrimentos causados pelas doenças, quase como um ato de desespero; e nessa sensação de impotência buscam aquilo que é possível naquele momento. Qual então a sugestão que faço ao gestor de saúde que se deparou com esse problema? Claro que teríamos muitas possibilidades para lidar com o problema, como, por exemplo, procurar proximidade com as situações e soluções que emergem das comunidades; ou então fazer parcerias saudáveis entre as ações da política de saúde e os grupos religiosos ou leigos que desejam contribuir no bem-estar das pessoas. Que tal se reduzíssemos as barreiras e os preconceitos entre as instituições governamentais e os vários grupos ou instituições que buscam sanar sofrimentos nos recônditos do país onde os recursos formais não chegam, até mesmo pela falta de condição financeira do poder público? Sobre o proselitismo conheço muitos grupos ligados a diferentes religiões que tem como objetivo fundamental acolher, cuidar e oferecer um ambiente de reflexão sobre convivência, solidariedade e compaixão. Na juventude participei em Olinda do grupo de Jovem Fraternidade, coordenado por Marcelo Barros, Monge Beneditino ligado ao Arcebispo Dom Helder Câmara, referenciado na Teologia da Libertação. O que vi e entendi, posso resumir que fazíamos ações de conscientização do jovem, sobretudo nossa responsabilidade com um país consciente das desigualdades e manipulações dos poderosos.
FG: De fato é enriquecedora uma experiência assim, que eu gostaria de ter experimentado em minha vida. Fale mais sobre ela.
HC: De fato Flavio, tive a possibilidade de ser coparticipe de várias ações de grupos religiosos tanto em Olinda como em Brasilia onde resido há 43 anos, pois como venho de família espirita, entendi desde cedo a importância do cuidado com o outro. Seguindo essa mesma motivação, na minha prática psiquiátrica e psicoterapêutica, procuro inspirar nos pacientes e participantes dos meus grupos terapêuticos a busca de algum trabalho voluntário, percebendo como uma ferramenta para o processo de recuperação do sofrimento psíquico, até porque acredito que quando somos empáticos e compassivos com a dor do outro, a nossa dor é relativizada. Ainda mais que do ponto de vista clínico e emocional, quando no exercício de atividades de doação, nosso sistema neuroendócrino imunológico funciona melhor concorrendo para a recuperação da nossa saúde. O que tenho percebido é que independente de atividades consideradas corretas pelos cânones do pensamento institucional, as ações fruto da doação sincera e despretensiosa, cria uma vinculação afetiva humanizada que muito contribui para a alegria, satisfação e crescimento das pessoas e famílias atendidas.
FG: quero insistir que a meu ver não existiria um voluntariado do mal, mas ao mesmo tempo sua prática deve fugir de alguns equívocos e simplificações, que acabam fazendo com que as melhores intenções se convertam em problemas, mais do que soluções, para quem precisa ser ajudado.
HC: Essa tua colocação me faz pensar na importância da preparação desses grupos religiosos ou leigos para o trabalho voluntário, buscando harmonizar as ações de forma conjunta e confluente, se ajudando mutuamente. Na sua vida como gestor e pensador da saúde, você implementou ou foi testemunha de cursos para voluntários oferecidos pelas instituições públicas de saúde? Já vistes em algum planejamento de política de saúde a inclusão de parcerias com entidades dedicadas às ações voluntárias para realização de trabalho conjunto? Já participastes ou organizastes reuniões onde essas duas vertentes do cuidado pudessem dialogar e se ajudar mutuamente? Estes são alguns exemplos que trariam grupos e entidades dedicadas aos trabalhos voluntários para um caminho convergente. Acredito que quem ganharia seria com certeza a população sofrida pela falta de assistência pública e pelo descaso. Como diz Adalberto Barreto “ A Terapia Comunitária Integrativa” chega onde falham as políticas públicas.
FG: Você tem razão. Nunca vi tal preparação acontecer. Eu mesmo, como gestor de saúde, não cheguei a me preocupar com isso, por falta de espaço, conhecimento ou tradição, talvez. Mas veja bem, acho que podemos fazer uma distinção, entre voluntarismo como ação geralmente desencadeada por indivíduos, sem maior ancoragem em dados e bases sociais, podendo se constituir como elaborações certamente bem-intencionadas, porém sem apoio na realidade concreta, produzindo, às vezes, mais problemas do que soluções. As resultantes de clientelismo e dependência são bem um exemplo disso. De outro lado, as ações de voluntariado mais autêntico, que representam uma ação institucional, calçada por evidências, com os resultados sujeitos a críticas, revisão e principalmente apoio em definições coerentes com as políticas públicas voltadas para o problema, importando, portanto, em preocupação com a qualificação dos agentes e das instituições para tal tipo de trabalho, não apenas na mera “vontade de fazer alguma coisa”.
HC: Flavio quero te confessar uma coisa: em 2002 quando o Presidente Lula, eleito pela primeira vez, anunciou o Programa da Bolsa Família, de início, eu mesma fiquei refletindo se seria uma ação correta doar alimento e recursos para as famílias pobres; se não seria uma filantropia e não uma ação de desenvolvimento humano. Poucos meses, acompanhando a repercussão daquelas ações fui entendendo que aquela doação seria o primeiro passo, sem ela as famílias massacradas pela fome, nos interiores e mesmo nas periferias das cidades, não teriam nem como participar de ações de desenvolvimento humano e social. A fome destrói não só o corpo, mas a alma também. Com o amadurecimento do Programa, foram se incorporando o investimento nas crianças e adolescentes com a obrigatoriedade de frequência escolar, investe-se nos cursos profissionalizantes e nas orientações psicossociais daquelas pessoas e tantas outras ações complementares para o crescimento daquelas pessoas. Claro que ainda falta muito a fazer, foco sempre na necessidade de uma educação básica de tempo integral competente, construindo assim gerações preparadas para realizar o salto existencial e humano que tanto necessitamos.
FG: Claro! Há uma palavra-chave aí, que é a proposta das chamadas condicionalidades. O benefício não pode vir como coisa caída do céu. Tem que ter filho na escola, cartão de vacina em dia, gestação acompanhada em pré-natal regular. E principalmente busca de portas de saída para tais programas. Mas uma questão deve ser encarada de frente, em busca de melhor desempenho e articulação é o papel e a responsabilidade das instituições civis e filantrópicas que se apoiam no voluntariado, as quais, justiça seja feita, possuem no Brasil forte presença e expressividade históricas. Não se trata de obstaculizar sua ação, mas é importante que se atenham a algumas regras básicas.
HC: Sobre isso quero te falar um pouquinho sobre minha participação na Rede de Terapia Comunitária Integrativa (TCI) como terapeuta e formadora desde 2002. Essa metodologia, realizada sempre em grupo ou Rodas, tem o objetivo de potencializar a resiliência e contribuir para a cidadania de pessoas, famílias e comunidades pelo Brasil a fora. É um espaço de fala, de escuta e de construção de vínculos solidários. Significa uma oportunidade de expressão do sofrimento e abertura para as soluções participativas, fomentando o empoderamento para uma vida de forma ativa e coparticipativa. Gostaria de te falar Flavio que minha experiência nessa rede de TCI tem me mostrado que precisamos de todas as dimensões do cuidado, quer seja do acolhimento, da expressão do sofrimento, da escuta solidária, dos vínculos entre todos que vivenciam os mesmos problemas, e o mais importante da capacidade de criar consciência do potencial pessoal e comunitário para transformar a realidade. Somos 45 mil terapeutas comunitários já formados e atuantes nas comunidades brasileiras, como seria incrível se essa tecnologia social fosse integrada às políticas públicas principalmente da saúde, educação, justiça e desenvolvimento social. Entre esse contingente de terapeutas a grande maioria desenvolve a TCI no modelo de voluntariado, investindo no crescimento pessoal, social e existencial das comunidades.
FG: para mim, falando no caso das pessoas em situação de rua, os programas de voluntariado devem ser coerentes com o panorama filosófico e normativo da política pública oficial para tal área, como definida pelo decreto 7053, por exemplo, buscando assim ação integrada entre instituições públicas e privadas. Acho que não se pode descuidar, também, da atenção especial aos conteúdos de Direitos Humanos, como liberdade de expressão e culto, direito à movimentação e à organização, respeito à opção religiosa, sexual, cultural etc. Você certamente deve estar de acordo com isso.
HC: Entendo tua preocupação… Mas enquanto não alcançarmos essas ações integradas, como ficam as pessoas em situações de rua? Aguardamos de braços cruzados que o sistema público amplie suas ações para chegar até essas pessoas desprovidas de condições mínimas? Claro que estou de acordo com a integração das ações voluntárias com as políticas públicas, sem dúvida. Mas compreendo totalmente que precisamos começar cuidando e acolhendo num contexto humanizado, e as instituições religiosas foram interpeladas pelo sofrimento vivenciado e assim começaram a desenvolver ações de cuidado básico e de acolhimento. Se você Flavio me perguntar, resolve totalmente a situação de rua? Digo com certeza que não, mas é emocionante ver o quanto aquela pessoa assistida se beneficia com o cuidado de um banho, uma roupa limpa, uma alimentação adequada naquele dia da semana, um acolhimento humanizado e uma conversa afetiva. Quem sabe aquilo não funcionará como estimulo para novos passos! Eu tenho certeza que esse trabalho difundido em vários grupos religiosos no Brasil são estímulos para que se torne realidade uma assistência integrada, como você citou na tua fala. Há que darmos o primeiro passo. E são as pessoas sensíveis e compassivas que fazem isso ao longo da história humana. Sempre existirão pessoas idealistas e seres diferenciados que fazem a evolução humana acontecer e não as leis e os decretos, que aliás chegam tardiamente e muitas vezes não efetivos.
FG: É preciso que ocorra também abertura para supervisão, intercâmbio e troca de experiências. Principalmente em caso de financiamento público, cabe zelar pela correta aplicação de recursos e respectiva prestação de contas. As denúncias recentes sobre as organizações, geralmente evangélicas, que atuam na área de saúde mental, principalmente nos problemas com álcool e drogas, estão aí para nos alertar. Por falar nisso, como é que você, como psiquiatra e também ex-gestora de saúde vê tal questão?
HC: Militei durante mais de 20 anos na implantação da Reforma Psiquiátrica e na Luta antimanicomial no Brasil e com isso tenho a compreensão sobre o cerne de tratamento da saúde mental, quer seja nos transtornos psíquicos ou dependência de álcool e drogas. Entendemos que precisamos ampliar as instituições abertas e humanizadas de saúde mental e mudar a mentalidade da sociedade sobre o transtorno psíquico, que até o momento está impregnada de preconceitos e rejeição. Essas Comunidades Terapêuticas de cunho evangélico, citada por você, não acompanham a proposta já preconizada na política de saúde mental do Ministério da Saúde. Foram instituições criadas no vácuo da carência e das necessidades imediatas das famílias que se veem impotentes diante de situações limítrofes dos filhos nas drogas e no álcool. Além do mais a multiplicação dessas Comunidades veio pela benesse de um governo tendencioso que nos últimos anos beneficiou aqueles setores coniventes com os conchavos políticos. Para reversão dessa sangria de recursos públicos para poucos, entendo que é urgente que os gestores da saúde mental federais, estaduais e municipais incluam nas ações de saúde pública opções em sintonia com a proposta de humanização da Reforma Psiquiátrica já iniciada no Brasil na década de 90.
FG: Correto, mas gostaria de lembrar ainda que não devemos sempre considerar que a ação estatal está eivada de interesses políticos espúrios, mas ao mesmo tempo aceitar que nem toda ação voluntária civil é bem orientada e produz resultados efetivos. Quando estive no Canadá percebi a participação de instituições filantrópicas e de voluntariado em muitas instâncias da política pública. Acho que devemos procurar algo assim, que evite a duplicidade e principalmente certos equívocos conceituais e operacionais que acabam surgindo quando as ações são descoordenadas.
HC: Concordo que esse é o caminho. O crescimento dos grupos humanos não é necessariamente uma reta. Enquanto humanos saímos da caverna porque alguns idealistas perceberam que havia um sol lá fora e se arvoraram a buscá-lo. Minha postura é sempre sensível à importância do voluntariado nos seus vários aspectos, até como motivador de ações que avancem no sentido da humanização do cuidado e também permitam o desenvolvimento da empatia, compaixão e amorosidade de nossa sociedade ainda tão centrada no egoísmo e nas necessidades pessoais. O trabalho voluntario é uma via de mão dupla – ajuda quem é beneficiário e também quem se dedica a ele. Para mim sinto como um despertar da nossa consciência para um mundo mais justo e igualitário.
FG: Beleza! Temos muito mais acordos do que desacordos, sem dúvida. Só lembraria de mais algumas questões. Por exemplo, que sempre deve existir foco na ação emancipadora e promoção da cidadania, com abertura e manutenção de canais de comunicação para o recebimento de denúncias de violência contra a tal grupo. Cabe também facilitar e divulgar, entre os beneficiários dos programas informações sobre acesso a direitos de cidadania e benefícios em geral, inclusive previdenciários, assistenciais, programas de transferência de renda e de qualificação profissional e acesso ao mercado de trabalho. Enfim, adotar padrões básicos de qualidade, segurança e conforto na estruturação e reestruturação dos serviços de acolhimento temporários, coisa que nem sempre acontece, por exemplo, nas chamadas Comunidades Terapêuticas (eu diria: nem comunidades nem terapêuticas…). Fico preocupado em ver o atual governo também contribuir para o fortalecimento das mesmas, ao que parece para buscar o apoio político do grupo evangélico, a meu ver ainda demasiadamente influente no país. E o mais fundamental: criar canais de saída para tais programas de ajuda, de forma a não desenvolver uma espécie de fidelização e paternalismo frente às pessoas assistidas.
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Comunidades terapêuticas ligadas a igrejas evangélicas: isso seria uma boa ideia?
A atuação religiosa nem sempre representa um caso de voluntariado, embora em suas origens quase sempre seja assim. O caso das “Comunidades Terapêuticas” (cabe aspas aqui…) de orientação evangélica é defendido por seus operadores como algo assim ou, pelo menos, “filantrópico”. A realidade no Brasil tem mostrado outra coisa, menos nobre. Por coincidência, justamente na presente semana, na qual estamos propondo uma discussão crítica sobre voluntariado, o Conselho Nacional de Saúde aprovou resolução na qual se recomenda nada mais nada menos do que o cancelamento do financiamento às chamadas Comunidades Terapêuticas ligadas a confissões religiosas, observando os princípios da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial, pelos seguintes motivos: (a) pela tendência internacional respaldada pela OMS define que a atenção à saúde mental deve ser universal e igualitária para toda a população, por meio do fortalecimento dos serviços de saúde mental dentro dos marcos de sistemas baseados na atenção primária e de redes de fornecimento integrado e em atividades; (b) a necessidade de proteção dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais; (c) as diretrizes ancoradas em convenções internacionais da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas; (d) o conceito brasileiro de Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que propõe um modelo de atenção em saúde mental a partir do acesso e promoção de direitos das pessoas, baseado na convivência dentro da sociedade, em ambientes abertos, acessíveis e de base comunitária; (e) a constatação de violações de direitos constatas nas referidas instituições por parte de diversas instituições oficiais, além do Conselho Federal de Psicologia; (f) a definição do Conselho Nacional de Assistência Social que aponta que essas entidades não integram o Sistema Único de Assistência Social; (g) a proposta do próprio CNS sobre a revogação da criação de um Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas no âmbito do Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome; (h) as recomendações da 17ª Conferência Nacional de Saúde sobre o fortalecimento e o aumento do incentivo na Saúde Mental, bem como da Rede de Atenção Psicossocial; (i) a necessária defesa da dignidade e da vida, além do compromisso com o cuidado em liberdade.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.