Antônio Pereira

Isso foi em 1912, ou 13, por aí.

O Binuto era carpinteiro. Um morenão forte, casado recentemente com uma moça clara. Não tinham filhos. Moravam num barracão, na avenida Afonso Pena onde, depois foi o Bar da Mineira. Estava construindo a casa. O quarto e a cozinha já estavam fechados e cobertos. O resto eram só esteios aguardando os tijolos.

Em frente ao Binuto, onde se construiu, depois, o Banco Hipotecário, morava Pedro Salazar Pessoa Filho, cidadão importante, jornalista que registrou muita coisa valorosa do seu passado nos nossos jornais, empresário, construtor de estradas.

Ele, o Salazar, era bebê de ano e pouco quando sua mãe lhe aplicou uma vacina contra varíola pouco acima do joelho. A vacina vinha num frasco de vidro, como os das injeções. Quebrada a ponta do vidro, esfregava-se o caco em três lugares próximas um do outro até sangrar e aí se pingava o líquido preventivo. A vacina pegava quando formava umas pústulas amarelas do tamanho de um grão de milho. Ficava uma marca feia pro resto da vida.

Nessa época, a varíola pintou em Uberabinha. Avisada as autoridades estaduais, alegaram que não era varíola e sim varicela e não deram importância. As coisas não mudam.

Era uma doença terrível. A cara e o corpo todo do cidadão doente virava uma casca de jaca, purulenta. Doía e dava febres altíssimas que levavam o infeliz pro campo santo.

Um dos primeiros a pegar a danada foi o Binuto.

O Salazar estava na janela e escutou os gritos dele:

– Me dê água pelo amor de Deus.

Daí a pouco o Binuto gritou por água de novo. O Salazar pensou, ninguém tá atendendo, não?

O Binuto gritou pela terceira vez, o Salazar pegou um litro encheu d’água, atravessou a rua, entrou no barracão e pôs o livro na boca do coitado que bebeu tudo. Era a febre. A febre terrível da varíola preta. Binuto sossegou um pouco, a respiração opressa e o Salazar foi saindo.

Na porta da rua, topou com o dr. Eduardo de Oliveira Martins, que estava cuidando da epidemia pra Prefeitura. O dr. Martins punha uma bandeirinha vermelha na porta da casa de cada doente que era pra ninguém se aproximar. No segundo dia, não tinha mais bandeirinhas no estoque.

Já chegou admoestando o Salazar: o senhor está desobedecendo minhas determinações. O Salazar ergueu a perna da calça e mostrou a marca da vacina. O médico liberou-o, mas alertou-o que o cuidado dele com o Binuto não adiantaria nada. Morreria da noite para o dia. Foi o que aconteceu. No dia seguinte, da janela, Salazar viu chegar uma carroça conduzida por um soldado, onde o corpo do Binuto, enrolado num pano qualquer, foi jogado dentro. E a carroça seguiu pegando um aqui, outro ali, sem caixão, só enrolados, para levar para a vala comum do cemitério.
(Fonte: Pedro Salazar Pessoa Filho).