Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Pesquisas de opinião sobre qualquer assunto são importantes, mas devem ser analisadas em função do contexto em que são produzidas, além de questões de método, claro. A recente experiência brasileira com o bolsonarismo – que Los Hermanos Transplatinos acharam por bem reproduzir agora – mostrou um lado obscuro e até mesmo malévolo na interpretação de tais enquetes. De fato, é demasiadamente humano buscar em qualquer fato da vida uma explicação que atenda nossas crenças e interesses, mas a maneira como isso foi feito pelo Gabinete do Ódio instalado no Palácio do Planalto ultrapassou todas as fronteiras da intencionalidade enviesada e da desonestidade. Mas como aqui é um blog honesto, vamos comentar a recentíssima pesquisa sobre a atuação do governo federal na Saúde e outras áreas realizada pelo DataFolha. Não sou daqueles que acham que Datafolha e FSP façam parte de um tipo especial de gabinete do ódio e da mentira, um componente das forças golpistas. Mas também não o exato contrário disso. Para falar a verdade, confio mais na Folha do que em muitos sites que mal e mal disfarçam sua condição de porta-vozes extra oficiais do Governo, dos quais me abstenho de citar nomes. Sem impedimento de que também a FSP tenha seus interesses particulares, que nem sempre são os mesmos da maioria da população ou dos setores menos bem aquinhoados. Mas vamos aos resultados da tal pesquisa, com os comentários devidos.
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A saúde voltou a ser líder isolada entre as preocupações dos brasileiros, chegando a 23% das respostas como principal problema do país. Foram ouvidas em torno de duas mil pessoas em 135 cidades, com uma margem de erro de dois pontos para mais ou menos. Assim, em setembro de 2023 disseram estar mais preocupados com a saúde 17% dos entrevistados, com um acréscimo de seis pontos percentuais em relação ao levantamento recente, descolando-se da segurança pública, que tinha os mesmos 17% há três meses e agora registra 10% de menções como problema principal. Já a educação, que oscilou de 11% para 10%, empata agora com a violência.
Outros temas que preocupam o brasileiro são a corrupção (8%), a fome/miséria (7%), o desemprego (7%), a economia (6%) e a gestão do governo (4%). Empatados em 2% estão políticas públicas, área social, e inflação, com o meio ambiente marcando 1%. Verifica-se relativa homogeneidade entre os diferentes estratos socioeconômicos, com uma exceção notável na educação, que é a principal preocupação entre os mais ricos e instruídos. Aliás, como se viu no recente exame internacional do Pisa o Brasil patina feio em tal área.
A matéria aqui em foco destaca que historicamente a saúde está no topo das preocupações do brasileiro, tendo liderado o ranking do Datafolha durante todo o governo Bolsonaro. A pandemia da Covid-19, que deixou mais de 700 mil mortos no país exacerbou tais preocupações. Basta dizer que em dezembro de 2020, no auge da crise, 30% dos entrevistados apontavam o setor como o de maior prioridade.
Entretanto, o trabalho do governo Lula na saúde não é bem avaliado, mesmo com o esforço da negação do negacionismo científico, aspecto este que marcou o desgoverno de Bolsonaro no setor. Ainda hoje, o trabalho em saúde do Governo Federal é considerado ruim ou péssimo para 49%; regular para 31%; ótimo ou bom para apenas 20%. Neste mesmo momento do mandato, o antecessor de Lula marcava 15% de aprovação no setor. Da mesma forma, o cenário mostrado pelo Datafolha não é muito confortável para Lula na avaliação de 14 obrigações federais, mas é possível celebrar que em 11 deles a aprovação é maior do que aquela que registrou Bolsonaro no mesmo momento do mandato
Curiosamente, Lula é reprovado também em uma área que é motivo de orgulho para ele, ou seja, o combate à fome e à miséria. Nesse quesito, 40% acham que ele está ruim ou péssimo, 31%, regular, e 28%, ótimo ou bom. Em relação à Economia, empatam Lula, com 24% de aprovação e Bolsonaro, com 25%.
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Meus comentários
Em primeiro lugar, vale ressaltar que a tal da “opinião pública” é coisa que figura, muitas vezes, como uma verdadeira quimera. Ela assusta muita gente, mas olhada de perto ou com lentes adequadas pode não passar de uma vaca sagrada, ou de um fantasma. É como naquele velho adágio que já foi referido sobre a política, referida como “uma nuvem” que a cada espiada muda de figura. A questão é que a visão da “OP” depende do momento, do entorno simbólico, dos acontecimentos concorrentes reais ou imaginários, do que se atribui maior ou menor relevo a cada momento. E neste último aspecto o papel da mídia está longe de ser neutro, pelo contrário tem um imenso potencial de, por assim dizer, “criar realidades”.
Dito isso vamos do tópico central do levantamento do Datafolha, que é o Governo Lula, que está submetido, quase um ano depois de seu início a um verdadeiro bombardeio, impiedoso, nem sempre pautado em questões realmente relevantes. Não se trata de defender que ele não seja escrutinado, pois é este justamente o papel da imprensa, mas a verdade é que uma análise criteriosa das pautas colocadas em cena pela mídia, mostra que nem sempre é a informação relevante ao público o fator que está em jogo. Isso vale para cada nomeação de Ministro ou Juiz do Supremo, para cada mexida normativa na política econômica, nas relações internacionais do Brasil, como no caso dos conflitos na Ucrânia ou em Gaza etc. Ou seja, é quase impossível dizer ou avaliar qualquer coisa sobre o atual governo (ou qualquer outro) que não seja fortemente marcada pelos petardos e respingos que poluem o cenário.
Aqui entra a questão da governabilidade que vem sendo construída no governo atual. Que história é essa? Comprada com a infidelidade e a falta de escrúpulos do chamado Centrão é apenas um outro nome para a desfaçatez, para o achincalhe da política e dos políticos que no Brasil foi naturalizado. Assim era até há pouco tempo e infelizmente continua sendo. E a tal da opinião pública, por aqui, nada mais é do que um afluente caudatário de tal corrente de lodo. O grosso das pessoas não lê jornais e muito menos reflete sobre o teor das notícias que circulam. O que se ouve aqui e ali, do salão de beleza à fila do banco; da feira livre, ao corredor do busão, acaba sendo a fonte de informação de que muitos dispõem. E é diante de tal material espúrio que os cidadãos (?) são chamados a opinar sobre as políticas de governo ou qualquer outro assunto, no âmbito das pesquisas de opinião, por exemplo.
Mas tudo isso é apenas, ainda, uma parte do problema. Há também questões menos conjunturais no cenário.
Por exemplo: o Brasil é um país onde tudo muda para ficar igual, como um dia disse Lampedusa. Em tal geleia geral Bolsonaro e Churchill; Mussolini e o Mahatma; John Lennon e Chitãozinho, valem a mesma coisa, possuem o mesmo peso. Não é de se admirar que entra governo, sai governo, o pensamento dessa espécie rastaquera de cidadão é algo como: Políticos? Eles são tudo ‘igual’. Vale também para as ações dos governos, todas aplastadas em uma vala comum de platitude, preconceito, mesmice e reflexão zero.
Além disso, aqui no Brasil, a Saúde é um setor que acumula uma dívida histórica acumulada e pesada. Quem não conhece ou teve um parente ou amigo que morreu em porta do hospital ou esperou a morte em alguma fila de atendimento? A visão das pessoas sobre o setor é fatalmente negativa e desesperançosa. Qualquer otimismo ou mesmo racionalidade já foram abandonados de antemão. A resposta a perguntas sobre a qualidade do setor saúde tende a ser invariavelmente de negação e condenação.
Isso para não falar do jogo de interesses que rodeia a Saúde como política de governo, que não é jogado somente por empresários versus usuários, ou leigos versus doutores, mas tem muitos outros players importantes, tais como sindicalistas, empresários, autoridades da economia oficial, faria-limers, empresários de planos de saúde, corporações internacionais, big-farma, big-tech, lobbies diversos. Não bastasse isso, a Saúde é campo fértil onde pululam dilemas diversos, nem todos realmente e essencialmente antagônicos, como é o caso das disputas entre público x privado; filantrópico x social; ciência x práticas integrativas; contratos por CLT x estabilidade, por exemplo.
Não esquecer, também, que na Saúde há uma peculiaridade marcante, que é o fato de que o atendimento a demandas da sociedade de usuários, longe de satisfazê-las, pode abrir caminho para o surgimento de outras demandas ainda mais dispendiosas ou inexequíveis.
É em tal terreno complexo e movediço que se desenvolvem e são tentativamente interpretadas as famigeradas “pesquisas de opinião pública”.
Bom fim de semana para todos.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.