– Último dia para entrega do relatório, Filomena!

É comigo, infelizmente… Todo dia a mesma coisa, alguém me anunciando que é o último dia ou que o prazo já venceu. De susto em susto, de aperto em aperto, vou levando minha vida de gerente em serviço de saúde. Qualquer dia me anunciam – ou me cobram – o juízo final, só falta… Mas tenho muito orgulho do que faço, estou aqui por ter sido aprovada em concurso e depois ainda ter feito uma formação para gerente. Isso entre um punhado de concorrentes. E tem mais, fui considerada, modéstia a parte, aluna destacada, a primeira a ser nomeada para a gerência, e já se vão quatro anos.

Mas cá entre nós, o que me faz sentir uma funcionária especial é o fato de que, ao contrário da maioria de meus colegas gerentes, eu não ser enfermeira, médica ou de alguma outra profissão de saúde. Este povo da injeção e da lavagem intestinal, sabem? Na verdade, sou formada em administração, com carreira longa na saúde, encarregada de faturamento em hospital durante um bocado de anos. E foi aí que fiz vestibular, cursei e concluí a faculdade. Mais um esforço, entre tantos…

– Filomena, você já preparou a lista de medicamentos de urgência para este mês?

Ó céus, lá vêm eles de novo… Mas sabem, eu me considero, de fato, uma pessoa aplicada. Eu conheço na ponta da língua o estatuto do servidor e, além dele, todas as normas existentes com relação ao serviço público. Como minha vida nisso. Mas acho que cheguei quase à perfeição na contabilidade – sou realmente boa nisso – particularmente no que diz respeito ao faturamento. E não tomo decisões de nenhuma espécie sem consultar certos livros de cabeceira, como o estatuto do funcionalismo, a coletânea das leis e das normas do SUS e até mesmo a Constituição. Aliás, além do curso de gerente já fiz vários outros de menor carga, por exemplo, na área de relações humanas no trabalho e de logística, coisas que eu simplesmente a-d-o-r-o.

Mas desde há três dias atrás, estou muito chateada. Não é que um programa de TV, daqueles sensacionalistas e muito cafonas, que muito apropriadamente se intitula “Barra Pesada”, deu grande destaque à reclamação de um cliente daqui da unidade, denunciando a falta de medicamento para eleição, seja lá o que isso for – acho que ele quis dizer ereção. Isso nem faz parte de nossa lista, só porque o laboratório mandou um punhadinho dos tais comprimidinhos azuis para se distribuir aqui ele acham que isso vai durar o resto da vida. Mas sei muito bem dos medicamentos que nunca deveriam estar em falta, de uso contínuo por muitos pacientes; mas mesmo estes, faltam. Mas devo dizer, depois que assumi esta gerência, nunca deixei de enviar as listas, a tempo e a hora. Eles atenderem direitinho é outra história.

– Dona Filomena. O banheiro das mulheres está com um vazamento há quinze dias e não há mais papel higiênico no estoque.

Filhos da mãe estes caras da manutenção! Essas cobranças devidas à irresponsabilidade de outras pessoas me arrepiam até os ossos. Sempre cuidei de preparar as listas de solicitações à Secretaria, a tempo e a hora, seja de medicamentos, produtos de limpeza ou serviços de manutenção. Nisso coloco a maior atenção, com pontualidade quase religiosa e mesmo assim, muitas vezes, vejo falhar o esquema. O problema é que tem uns funcionários que mandam para trabalhar aqui que, sinceramente, Deus me livre. Esta Fabiana, por exemplo, que encarreguei de fazer a lista mensal de pedidos, já houve ocasião de atrasar a tarefa, por ter esquecido, por inacreditáveis quinze 15 dias. Quinze!

– Filó, pelo amor de Deus: a lista de medicamentos de urgência é urgente!

Pronto, isso é a rotina. O pior é que só posso fazer alguma coisa depois do final de semana e do feriado de segunda, pois hoje é sexta feira e já são cinco horas da tarde. E olhe que hoje seria dia de folga para mim, licença para compensar horas extras da última campanha de vacinação, com trabalho em pleno domingo. Será que não tenho direito nem a isso? Ai, como estou cansada disso tudo… Já até marquei uma consulta com o psiquiatra do meu plano de saúde, pois tudo isso me faz ficar muito deprimida. Mas a espera que me anunciaram é muito grande. Meses…

– Filomena, o que você faz aqui não serve para você? Só para os outros? Por que marca consulta em plano de saúde e não na clínica de especialidades aqui da Secretaria?

Ora vai, só faltava essa. A pirralha aí só porque faz faculdade e estuda Sociologia se julga a dona da verdade e da consciência política geral. Mas estuda em escola particular… Por que não tenta numa Federal? Pois é, tudo numa sexta feira… Mas na segunda serei a primeira a chegar no serviço, disposta, até a raiz do cabelo, a esclarecer tudo. Mas não é que me lembrei que Fabiana foi liberada (por mim mesmo…) para compensar suas horas-extras e mais outros acertos e que só retorna ao trabalho dentro de uma semana? Caramba, falha minha, brutal. O jeito é tentar resolver isso pessoalmente. Irei eu mesma à Secretaria – e seja o que Deus quiser. Mas antes disso, outro contratempo: me lembrei que é dia de fechar alguns dos boletins do sistema de informação, coisa árdua, morosa, chata de fazer. O único computador disponível aqui no serviço tem pelo menos dez aninhos de uso e é tem uma memória de barata, além de estar muito sobrecarregado de dados. Vou ter que aguardar no mínimo mais dois dias para executar a providência, pois vejo que minha presença no serviço agora é fundamental, principalmente depois do noticiário depreciativo do tal Barra Pesada. Malditos!

Como se não bastasse – ai meu Deus! Me chega agora uma informação nova, trazida por uma funcionária da limpeza, a Adelaide, que parece confiar em mim e me pede total sigilo a respeito do assunto. Segundo ela, tudo o que aconteceu e foi parar na TV parece uma armação, pois uma mulher usuária, cujo nome ele não sabe, teria se desentendido com Fabiana e, na ocasião, algumas pessoas ouviram a mesma dizer que “um dia se vingaria”. Adelaide ainda vai além: o marido dessa dona, de nome Alcebíades, líder comunitário na região, vem se sentindo desgastado com os nossos serviços, e também com as pessoas que aqui trabalham. Mas eu, Filomena, já saquei a raiz da confusão: Alcebíades, conhecido aqui como Bidinho, está revoltado, na verdade, é com o não[1]aproveitamento de algumas pessoas indicadas por ele para vagas recentemente abertas de Agentes Comunitários de Saúde. E além do mais, tem fama de abusador sexual… Aqui tudo vai dar nisso: problemas pessoais mal resolvidos… E deve ser verdade mesmo… Essa Dona Maria, mulher do tal Bidinho, é dessas pessoas que frequentam aqui muito amiúde – demais da conta, para falar a verdade – e mesmo se dando bem com alguns funcionários, principalmente com os médicos – não poupa outros membros da equipe de suas investidas, às vezes até caluniosas.

Em outra ocasião, uma denúncia trazida por esta senhora eu pude perceber que era uma retaliação pessoal contra uma funcionária, vizinha dela, acusada por esta de “estar lhe paquerando o marido”. Mas volto aos boletins de informação. Só completei o serviço na quinta feira, não mais na quarta, como pretendia, pois uma pessoa que me ajudava faltou. E só então consegui ir à Secretaria resolver a pendência que me atormentava já havia quase uma semana.

Mas então eu nem sabia como os meus problemas ainda iam aumentar – e muito. Não só o tal do Barra Pesada, que havia denunciado o problema da falta de remédios, como outros programas sensacionalistas de rádio, agora não falavam de outra coisa, até acrescentando detalhes comprometedores e mentirosos. Por exemplo, que ocorriam também trocas de medicamentos no ato da entrega a pacientes, levando algumas pessoas a piorarem seus sintomas. Ai meu Deus: eu já estava, então, literalmente à beira de um ataque de nervos.

– Filomena, mande urgente a lista das pessoas que terão direito à bonificação de acordo com a Portaria 132, o Secretário pede que seja logo!

E fui à Secretaria, já com as pernas inteiramente bambas. Estava vendo a hora que ia fazer xixi nas calças. E ali vi minhas suspeitas se confirmarem: o medicamento que faltava, segundo a queixa divulgada nas rádios, realmente estava fora da lista encaminhada duas semanas antes. Eu até me ofereci para levá-lo pessoalmente à unidade, mas o responsável pelo almoxarifado me disse, em tom de advertência (ó céus!), que isso contrariava as regras, e que eu teria de esperar pela nova data de entrega prevista, dentro de dez dias aproximadamente. Lamentei muito, mas fazer o quê? Logo eu que, afinal de contas, sempre fui defensora intransigente de que “normas são normas”. Assim, tive que acatar a decisão da besta do almoxarife e aguardar pacientemente a normalização do atendimento.

Mais uma vez, infelizmente, meus problemas estavam longe de acabar… No dia seguinte, um Promotorzinho de Justiça entra na história, exigindo do Secretário uma explicação para a falta de medicamentos na unidade. Já cheguei no dia seguinte encontrando mais uma notificação urgente: – Filomena, por favor justifique, por escrito, o acontecido, em prazo máximo de 24 horas. Neste mesmo dia, fiquei sabendo depois, o Barra Pesada mandou um repórter à unidade para me entrevistar e não me encontrou, já que eu estava na Secretaria preparando o relatório que o chefe me pedira. O repórter ameaçou aprontar um escarcéu sobre a ausência da responsável, “em pleno horário de trabalho” Alguém me liga pelo celular, anonimamente, para dizer que existiria uma rixa entre Adelaide e dona Maria, que também eram vizinhas e tinham desavenças antigas, não sobre maridos, mas a respeito de demarcação dos respectivos terrenos… Para completar a confusão, Fabiana me aparece alegando que o tal medicamento não foi solicitado simplesmente porque havia quantidade suficiente em estoque, me mostrando provas disso. Portanto, segundo ela, o que deve ter ocorrido é algum desvio. Ato contínuo, o almoxarifado central se manifesta, pedindo que eu compareça para depor em uma comissão de inquérito visando esclarecer possível desvio de medicamentos na unidade.

Mas aí, então, até que enfim: – Sra. Filomena Dias, por favor entre em contato com a nossa Central de Marcação de Consultas. Fui para casa no último furo. Mas pelo menos, finalmente, tive a consulta marcada com o psiquiatra, ou psicólogo, sei lá, o Doutor J. Pinto Fernandes, que ainda não havia entrado na história. Mas fui obrigada a desmarcar a consulta, pois tinha que dar conta de todas aquelas pendências.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.