Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Escutei por esses dias na CBN o comentarista Ricardo Henriques (ver link ao final) falando sobre questões da liderança na Educação, especificamente sobre o importante papel dos diretores de escola no processo educativo. Há estudos mostrando que mesmo que os dirigentes não participem diretamente das atividades em sala de aula, as qualidades da gestão que praticam influenciam direta e positivamente nos indicadores escolares. Sempre achei que isso também se aplica perfeitamente ao caso da saúde e inclusive já escrevi aqui sobre isso. Tenho ainda presente na memória a importância que uma certa Dona Cecília teve em minha vida, diretora que era do Grupo Escolar Francisco Salles, em BH, onde conclui o que se chamava na época de curso primário. A comparação com a escola vizinha, Caetano Azeredo, era forçosa. De um lado reinava a ordem, do outro a esculhambação, com consequências previsíveis na vida de alunos e professores. O fato é que desde então me pergunto: o que faz as coisas serem assim tão diferentes em duas instituições públicas, situadas no mesmo bairro, destinadas à mesma classe média, com professores percebendo os mesmos salários? Henriques aponta uma série de fatores para explicar tais coisas , entre elas, a democratização do ambiente, a participação da comunidade, a capacitação dos diretores para as funções de gestão, a despolitização dos processos de escolha, entre outras. Mas acho que posso acrescentar alguma coisa, com aplicação direta ao campo da saúde, que é afinal aquele sobre o qual posso dizer que entendo alguma coisa.
Voltando a BH e aos anos 50, no caso da minha escola, o Francisco Salles, o segredo parecia estar na figura enérgica da diretora Dona Cecília, mas certamente haveria mais ingredientes na receita. Observando, hoje, a realidade dos serviços de saúde – e certamente da educação e de outras áreas que são ou deveriam ser de responsabilidade pública – creio que posso indicar alguns dos fatores que resultam em uma boa gestão no setor público.
Para começar, a boa condução e a boa liderança. Entre seus atributos, podem ser arrolados capacidade de tomada de decisões, boa comunicação, saber ouvir, carisma, criatividade, espírito empreendedor, embasamento ideológico, qualificação técnica, continuidade etc. Mas isso teria sido pouco se não estiver presente uma equipe técnica qualificada, em termos de conhecimentos e postura cidadã.
Boas práticas sociais também devem ter lugar de destaque, com sintonia entre as propostas oficiais de saúde (ou de educação) e as da sociedade, em torno de noções de responsabilidade pública, direitos, compromisso com resultados. De preferência dentro de um panorama mais amplo (até dos próprios governos) traduzido por práticas políticas e administrativas transparentes, efetivas e socialmente aceitáveis, tendo como substrato ideológico as noções de cidadania, direitos coletivos e responsabilidade pública.
Boa implementação programática é outro fator, correspondendo a padrões transparentes e cientificamente comprovados de atenção e de gestão, com possível neutralização da competição e do antagonismo dentro das instituições e superação dos preconceitos que enxergam nas inovações um risco de renúncia aos direitos sociais ou ao papel do Estado.
Isso implicaria, ainda, em de desenvolver articulação para fora da moldura institucional imediata, direcionada a interlocutores individuais ou institucionais que sejam capazes de oferecer respaldo técnico e cobertura política ao desenvolvimento dos projetos e programas que estiverem em jogo.
Há outras características de uma gestão que possa ser chamada de boa ou eficiente. Citaria, por exemplo, a abertura a inovações gerenciais ou assistenciais; a ousadia e o destemor frente às possibilidades de erro e reversão; a busca da sustentabilidade financeira, estrutural e processual, em planos ao mesmo tempo culturais, simbólicos ou políticos; a capacidade de se enraizar no imaginário da comunidade e dos tomadores e executores de decisão, como também dos usuários. Sem esquecer que uma boa liderança deve envolver a ainda o exercício inteligente da autoridade, coisa que não pode ser confundida, como infelizmente é comum entre nós, com o mero autoritarismo. As ditas escolas cívico-militares estão aí (ainda, infelizmente) para mostrar tudo o que não deve ser feito.
Não é demais lembrar, ainda, de certo efeito espelho, ou seja, a articulação e a difusão da experiência entre interlocutores externos, configurando o exercício de uma pedagogia do exemplo fundamental no processo de construção de políticas públicas.
Sobre a qualidade que Henriques destaca, relacionada às práticas democráticas no ambiente dos serviços, não posso deixar de concordar com ele, mas é bom lembrar que isso não resulta apenas de “votar e ser votado”. A eleição direta de chefias e diretorias tem seu lado negativo, também. Como diria Churchill, é um método precário de escolha, só perdendo para seu oposto mais evidente, a nomeação baseada em critérios ideológicos ou partidários. Dito isso, complemento com o que importa: este tipo de escolha, seja de cima para baixo ou de baixo para cima, deve ter como ponto de partida a definição de projetos de atuação, sejam administrativos ou pedagógicos. O voto é bom, mas deveria se afastar de um caráter personalista para avançar em direção a projetos de interesse geral. O grande problema do “elecionismo direto” que afeta as instituições de saúde, de educação, além de outras no Brasil, é que isso tende a focalizar mais as reivindicações corporativistas (nem todas ilegítimas…), em detrimento dos projetos que realmente melhorem a vida dos trabalhadores e das comunidades de usuários envolvidas.
Parece simples, mas não é… Isso tudo depende de muita luta, cujos ingredientes são a decisão política e o desenvolvimento da consciência de vida social, política e sanitária dos atores envolvidos. Ainda chegaremos lá… Dona Cecília, onde estiver, que nos ilumine o caminho! E nos proteja tanto do voluntarismo bolsonarista, como do corporativismo educacional e sanitário,.
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Conheça Ricardo Henriques
Ricardo Henriques é superintendente executivo do Instituto Unibanco. Foi Secretário Nacional de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) do Ministério da Educação e Secretário Executivo do Ministério de Desenvolvimento Social, quando coordenou o desenho e a implantação inicial do programa Bolsa Família. No Rio de Janeiro foi Secretário Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos e Presidente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP), quando desenvolveu e implantou o Programa UPP Social. Foi pesquisador e diretor adjunto da área social do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), assessor especial do presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e, durante 30 anos, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Presidiu o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro, a Conferência de Educação na 34ª Conferência Geral da UNESCO (2008) e a Rede de Vice-Ministros de Redução da Pobreza e Desenvolvimento Social do BID. Foi membro do Conselho de Administração do Internacional Institute for Education Planning (IIEP-UNESCO) e, atualmente, é membro dos Conselhos: Anistia Internacional (Brasil), Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades (CEERT), Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE-FGV), Cidade Rio, CIVI-CO, Fundação Itaú Educação e Cultura (FIEC), Frente Parlamentar Mista em Defesa da Renda Básica, Instituto Natura, Instituto Pensamentos e Ações para Defesa da Democracia (IPAD), Instituto República e Todos pela Educação (TPE).
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Sobre a gestão bem-sucedida na Educação também já fiz comentários aqui, no caso de Oeiras – PI. Veja: https://saudenodf.com.br/2021/08/25/o-segredo-de-oeiras/
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Voltarei ao assunto na próxima semana. Vai aqui um tira-gosto. Acesse:

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.