Dr. Flávio de Andrade Gpulart*

Acabo de tomar conhecimento do lançamento, pela Fiocruz, do livro Atenção primária à saúde em municípios rurais remotos no Brasil, organizado e escrito por um grupo de pesquisadores desta e de outras instituições. Segundo o portfolio que recebi, tal obra busca compreender as particularidades dos contextos rurais remotos brasileiros em relação à organização e provisão da Atenção Primária à Saúde (APS), alinhada aos princípios basilares do SUS. Cada um de seus 14 capítulos trata de temas relacionados ao acesso e na organização da APS em diferentes cenários, e dificuldades correspondentes. A pesquisa no campo contou com apoio financeiro do Ministério da Saúde e da do Programa de Políticas Públicas e Modelos de Atenção e Gestão de Saúde da mesma Fiocruz, reacendendo assim luzes necessárias, depois da treva de seis anos que se abateu sobre o país. Diz ainda o texto anunciativo: a obra estimula a reflexão e instiga o interesse investigativo acerca de realidades tão singulares, pouco exploradas, por vezes invisibilizadas e não dimensionadas no financiamento, no planejamento e na execução de políticas públicas. Alvíssaras, portanto! Não li ainda e o farei logo que a obra estiver ao meu alcance. Sem querer ser pessimista, contudo, eu adicionaria uma ponta de sombras sobre os resultados, pois temo que o que seja encontrado no campo talvez esteja um tanto distante daquilo que um dia sonhamos para uma Atenção Primária que realmente faça jus a tal nome e honre suas origens. Se não, vejamos a seguir algumas questões que espero sejam respondidas (e de forma afirmativa) no referido trabalho, a cuja íntegra – repito – espero ter acesso em breve. Espero que a pesquisa não abranja apenas aquilo predefinido como “experiência avançada” ou “bem sucedida”, coisas que todos sabemos ser parte apenas de uma minoria dos casos, mas sim que nos traga uma visão de conjunto.

RECURSOS HUMANOS

As equipes estão completas?

Há médico, enfermeiro e ACS em todas elas, nas quantidades recomendadas na PNAB?

Há processo de qualificação profissional desenvolvido ou em desenvolvimento, para cada uma das categorias profissionais?

Os médicos e enfermeiros, particularmente, têm formação em Atenção Primária?

Qual é o percentual de médicos aposentados, vindos de outras especialidades que não a Atenção Primária, nas equipes?

Há profissional encarregado da gerência e administração nas unidades?

Há alguma forma de supervisão e discussão entre equipes capitaneada por algum nível central?

ESTRUTURA DE ATENÇÃO

Qual a proporção de unidades que funciona em casas alugadas e adaptadas versus a proporção instalada em prédios próprios e construídos para tal finalidade?

Idem quanto à presença mínima de dois consultórios, local para reuniões com o público, mínimo de dois wc, sala de vacina, farmácia, sala de esterilização e sala de espera?

E quanto à presença de instrumentos essenciais na APS: aparelho de pressão, espéculos ginecológicos, balança (de adulto e pediátrica), maca ginecológica, otoscópio, esterilizador, coleta de Papanicolau, pequena cirurgia, curativos, mapas da área de cobertura?

Há instalações para guarda segura de medicamentos?

Estado geral das instalações: goteiras, rachaduras, pintura, segurança, entorno, jardim, acesso, iluminação, fornecimento de água, esgoto, drenagem etc?

Divulgação de informação sobre as atividades e direitos dos usuários: placas, cartazes, folhetos, folders e outros?

Uso de celular e apps de comunicação para contato com usuários?

Viatura de uso ocasional para visitas?

Escalas de atendimento noturno e de emergência?

Disponibilidade de prontuário eletrônico?

PROCESSOS DE TRABALHO

Visitas domiciliares como parte do trabalho regular da Unidade (ACS, enfermagem, médicos e outros)?

Realização regular e formalizada de consultas de enfermagem?

Categorização da população usuária em termos de protocolos de risco, inclusive para acesso ao atendimento cotidiano?

Coordenação e supervisão de atividades regularmente pela enfermagem?

Localização da clientela em mapas virtuais ou físicos?

Realização regular de abordagem em grupos de pacientes?

Programas regulares de: pré-natal, puericultura, idosos, hipertensos, diabéticos e outros?

Definição de áreas de risco através de mapas?

Linha aberta permanente de contato com serviços especializados e de maior complexidade?

MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO

Reuniões formais de equipe para planejamento e avaliação de atividades?

Idem com representantes da comunidade?

Uso de indicadores de saúde para avaliação de desempenho e alcance de metas?

Divulgação e compartilhamento de documentos relativos a tal processo?

Como vemos, apesar de termos aí três dezenas de quesitos, muitos outros aspectos mereceriam ser levantados. O que está disposto acima é apenas o básico, digamos. Mas o melhor seria se pelo menos 70 ou 80% as respostas fossem positivas. Nunca nos esqueçamos da famigerada APS padrão “5P”: para pobres, periféricos, precária, além de apenas preventiva…

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Viagem ao Brasil-real (eu também já fui lá!)

No século XIX foram marcantes as viagens de europeus pelo Brasil, estimulados pelo exotismo de nossa terra e pelas facilidades então abertas pela abertura do país às chamadas “nações amigas”. Na época, Saint-Hillaire, Langsdorff, Burton, Von Martius e muitos outros narraram aos seus compatriotas ávidos de informações suas observações sobre aquele mundo ignoto, em tons que variavam do maravilhado ao perplexo. A era das viagens ao Brasil, entretanto, não acabou. Eu mesmo tenho feito algumas, por Minas Gerais e também por Goiás, passando por lugares tão variados como Andrequicé, São João da Aliança, Serro, Niquelândia, São Gonçalo do Rio Preto, Vila Propício, Senador Modestino Gonçalves, Forte, Itamarandiba, Cavalcanti, Capelinha, Muquem, Araçuaí, Padre Bernardo, Itacambira, além de outras comarcas remotas e pouco conhecidas. Conto agora a vocês uma parte do que vi e senti, no que poderia chamar de autênticas viagens ao “Brasil-Real”.

Em primeiro lugar, as estradas. Ah, as estradas do Brasil-Real! Elas são simplesmente solúveis em água, de tal forma que, uma vez atacadas pela chuva persistente, fica difícil afirmar onde realmente se encontra aquilo que um dia foi chamado de “estrada”.

E o que faz o povo do Brasil-Real? De tudo um pouco para continuar sobrevivendo. Há poucos empregos fixos fora do setor público. As pessoas plantam suas rocinhas de subsistência, tiram carvão (quando sobra alguma árvore na paisagem), mantêm um gado vasqueiro, se empregam no agronegócio. Os mais jovens realizam um périplo anual a São Paulo e outros lugares, em busca de trabalho, na época do corte da cana de açúcar, por exemplo. Dinheiro mesmo, com o qual as famílias possam contar regularmente, só o do programa Bolsa Família e o dos aposentados – aliás, estes últimos, pessoas muito estimadas e valorizadas nas plagas do Brasil-Real.

A maioria dos brasileiros-reais é pobre, muito pobre. Uma pequena parte, porém, é rica, muito rica. Os políticos, quase sempre pertencentes ao segundo grupo, são mestres em auferir seus votos baseados em promessas que geralmente não podem ou não querem cumprir. Nada de novo, portanto.

No Brasil-Real, Dilma foi a “mulher do Lula”, se não de direito, pelo menos de fato. Borsonário agora é o mito e a Igreja Universal é a garantia da entrada no paraíso da prosperidade. De imposto de renda ninguém ouviu falar; o mais próximo que se conhece disso é o dízimo que as igrejas pentecostais (numerosíssimas, por sinal) costumam arrecadar, sabe-se lá a partir de que excedente monetário. Música apreciada ali é a dita “sertaneja”, que muitos acreditam fazer parte da cultura mais verdadeira e legítima daquelas paragens, ignorando o fato de que toda ela costuma ser produzida em estúdios da capital paulista, a partir da detecção de “nichos” de mercado, por especialistas em marketing, não necessariamente por pessoas com formação musical. As crianças são numerosas no Brasil-Real, sendo suas mães nada mais do que outras igualmente crianças! Já seus pais, nem sempre se sabe ao certo quem sejam. E por aí vai.

No país em questão, já não correm mais os tempos em que automóvel era algo que “ninguém sabe se é homem ou se é muié”, como dizia a cantiga de Patativa do Assaré (que ninguém ali sabe quem é), mas é certo que, quando não possuem um Corcelzinho ou um Opala dos velhos tempos, os brasileiros-reais consomem, como meio preferencial de transporte, em padrão quase chinês, as motocicletas. Onipresentes estas, melhores que os jumentos e éguas do passado, mas bastante hábeis em mandar seus ginetes para o hospital – quando não para o necrotério. É uma gente que aprecia, de fato, a modernidade: as ruas das cidades, mesmo pequenas e pobres, não deixam de ostentar lojas e mesmo bancas espalhadas pelas calçadas nas quais toda uma vasta gama de bugigangas eletrônicas, made in algum-lugar, pode ser adquirida: de despertadores a microtevês, de aparelhos digitais de medir pressão a raquetes eletrônicas de matar mosquito. Sem falar nos indefectíveis telefones celulares, cujas contas, onde existe acesso, certamente subtraem de seus proprietários a possibilidade de consumo de outras comodidades mais úteis, de mais proteínas para suas famílias, por exemplo.

Quando comparamos o Brasil-Real com o Brasil que as aparências nos revelam, principalmente a nós que residimos em regiões mais desenvolvidas do País, as diferenças parecem ser marcantes. Nossas estradas (em que pese os buracos) permitem trânsito o ano inteiro, nossa agricultura e nosso comércio fornecem empregos (embora menos do que o necessário), nossa renda média per capita é substancialmente melhor, nossos políticos têm reduzido, a cada eleição, sua capacidade de iludir o povo, principalmente porque este demonstra estar cada vez mais consciente de seus direitos – embora com algumas recaídas… Mas é claro que há recaídas…

E na saúde, como se arrumam os moradores do Brasil-Real? Há ali enormes dificuldades em se conseguir uma simples consulta, principalmente se for medianamente especializada. Apesar disso, a taxa de cesarianas é elevadíssima! As filas das unidades de atendimento dobram esquinas, já nas madrugadas. Os indicadores de saúde estão estacionados em patamar africano. Mas neste campo, creio que nós, os mais “desenvolvidos”, ainda estamos próximos do Brasil-Real. Mesmo entre nós, a “saúde para todos” vem sendo substituída pela “saúde para quem pode pagar”, modulada pela disponibilidade do mercado e não pelas necessidades gerais. Para encerrar, afirmo que o Brasil das aparências, pelo menos no campo da saúde, está muito próximo, lamentavelmente, do Brasil-Real…

Acesse também em https://veredasaude.com/2013/10/04/viagem-ao-brasil-real-2/

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.