Dr. Flávio de Andrade Goulart*

O tema que dá título a este post veio até a mim por ter lido na imprensa que se realizará dentro de poucos dias em Brasília um encontro nacional a ele dedicado (ver link ao final). Penso que o senso comum certamente o trataria de forma previsível (em que pese ser injusta): se tais doenças são tão raras, por que deveríamos nos ocupar disso? Mas fui ler para saber mais e descobri que não é bem assim. Em se tratando do famigerado senso comum, isso costuma ser mais regra do que exceção, ou seja, camuflar ou embaralhar mais do que clarear o que é real. Foi assim que me lembrei de um conto (ou novela) de Guimarães Rosa no qual, de certa forma, tal assunto aparece.
Falo de Cara de Bronze, incluído no livro No Urubuquaquá, no Pinhém, que compõe a sequência denominada originalmente pelo autor como Corpo de Baile. Ali, um cidadão que atende pelo significativo nome de Segisberto Saturnino Jéia, sobredito O Velho ou então Cara de Bronze, é um rico fazendeiro, recluso em permanente escuridão na sede de sua fazenda, por não querer (ou não poder) se expor ao sol. O roteiro da história, que tem estrutura cinematográfica e marcantes componentes psicanalíticos, se reporta à chegada de um emissário que dois anos antes Segisberto enviara a uma longa viagem, para que lhe relatasse, na volta, a essência, ou o quem, das coisas que porventura encontrasse em suas andanças, com forte ênfase nos bens da natureza. E Grivo, o tal emissário, não deixa por menos. Mas para saber das maravilhas que ele traz, cabe ler diretamente o texto de Rosa, para que sejam devidamente saboreadas – desde já convido os leitores que ainda não o conhecem a fazê-lo. Mas por que aquele homem viveria recluso? Ele tinha razões para tanto, por ter supostamente matado o próprio pai muitos anos antes. Mas isso não o obrigaria a passar todo o tempo na escuridão… Isso me faz pensar que ele sofresse de alguma doença rara, arrisco até um diagnóstico: porfiria, na qual dominam alterações cutâneas que poderiam justificar o apelido do personagem, resultantes de forte fotossensibilidade. A incidência não passa de menos de dois casos por 100 mil habitantes.
Até aqui é pura curiosidade literária, mas o tema realmente desperta reflexões.
Uma doença pode ser considerada rara, segundo a Organização Mundial de Saúde, quando afeta até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos, ou seja, 1,3 para cada 2 mil pessoas. No Brasil a estimativa é de que existam pelo menos 13 milhões de pessoas com doenças deste tipo. Elas são caracterizadas por uma ampla diversidade de sinais e sintomas que variam com cada pessoa acometida. Acredita-se que que existam de seis a oito mil tipos dentro de tal categoria. Entre seus portadores, 30% morrem antes dos cinco anos de idade; 75% são crianças e 80% têm origem genética. Algumas dessas doenças são desencadeadas a partir de infecções bacterianas ou virais, além de alérgicas e de fundo ambiental.
Podem correr sintomas relativamente comuns nesses casos, levando a diagnósticos equivocados e atrasando o tratamento. Tipicamente incapacitante, a qualidade de vida de uma pessoa que vive com uma doença rara é afetada pela falta ou perda de autonomia devido aos aspectos crônicos, progressivos, degenerativos e frequentemente fatais da doença. O fato de muitas vezes não existirem curas eficazes aumenta o elevado nível de dor e sofrimento dos pacientes e suas famílias, bem como afeta os amigos, os prestadores de cuidados e a sociedade como um todo.
Na União Europeia o tema é tratado com grande distinção, existindo mesmo uma entidade, Eurordis – Rare Diseases Europe, que representa mais de mil organizações de doentes em tal condição, em 74 países, com foco em trabalho conjunto para melhorar a vida das mais de 300 milhões de pessoas que vivem com uma doença rara em todo o mundo. Tal entidade tem como objetivo fazer com que tais pessoas atinjam todo o seu potencial humano, para tanto devendo ser reconhecidos como cidadãos iguais e com os seus direitos plenamente respeitados, além de serem diagnosticados em tempo hábil e com precisão; apoiados ou curados com cuidados médicos e sociais de última geração; incluídos na sociedade em todos os aspectos da vida e habilitados a viver de forma independente.
Lamentavelmente, porém, devido à baixa prevalência de cada doença, o conhecimento médico sobre elas costuma ser escasso, bem como a oferta de cuidados e a pesquisa. Pacientes com doenças raras são como verdadeiros órfãos dos sistemas de saúde, muitas vezes vendo negados ou reduzidos o seu diagnóstico, tratamento e benefícios da pesquisa.
Uma doença órfã não atrai muita atenção pública, pesquisa ou financiamento, normalmente porque é extremamente rara e mal divulgada, não chamando a atenção devido à baixa incidência de casos relatados. Doenças raras são muitas vezes também doenças órfãs, por afetar menos gente em termos proporcionais, de forma a não haver número suficiente de pacientes para tornar as pesquisas viáveis economicamente.
Muitas doenças órfãs são de natureza genética, o que pode torná-las ainda mais difíceis de estudar, quanto mais de tratar. Outras resultam de vírus extremamente raros, bactérias incomuns ou alergias peculiares, e podem demorar para serem diagnosticadas e descritas, escapando assim da visão da ciência por longo tempo, ou até que alguém comece a conectar várias incidências da mesma condição. Mesmo os epidemiologistas, que costumam estar mais em contato com doenças emergentes do que outros pesquisadores, não conseguem muitas vezes detectar doenças extremamente raras, para então conscientizar o público em geral sobre elas.
Do ponto de vista das empresas farmacêuticas, a pesquisa sobre doenças órfãs implica em investimento de tempo e energia para algo a ser vendido a um mercado muito limitado. A questão de tais doenças órfãs motivou a criação de uma entidade denominada Orphanet, reunindo informação e promovendo o conhecimento sobre as mesmas, de forma a melhorar o seu diagnóstico, cuidado e tratamento. Além disso recolhe e divulga dados sobre tais doenças, com elevados padrões de qualidade e garantia de igualdade de acesso. Tal entidade foi criada na França pelo INSERM (Instituto Nacional Francês para a Saúde e Investigação Médica) em 1997, constituindo também a semente de um esforço apoiado por subvenções da Comissão Europeia, formando um Consórcio de 40 países, na Europa e em todo o mundo.
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Feitas essas considerações gerais, voltemos ao nosso personagem Segisberto Saturnino. Ele era um homem muito rico; no momento em que é narrada sua história, estava vendendo e entregando várias centenas de cabeças de gado e havia pelo menos 40 vaqueiros a seu serviço. Aliás, é através desses homens que é dado conhecermos os múltiplos detalhes da vida do personagem. Mas apesar de rico, era portador de um sofrimento intenso, padecendo de um enorme complexo de culpa, por sentir-se como o assassino do próprio pai. Levava assim uma vida reclusa, não apenas por tal sentimento de remorso, mas também pelo sofrimento de não poder se expor à claridade da vida. Isso, para um homem do campo, envolvido na criação de gado – imagine-se – seria um fator extremamente limitante.
Assim como Jéia, ficamos sabendo, existem pelo menos 13 milhões no Brasil e mais de 300 milhões no mundo. Alguns não suportam a luz solar; outros não enxergam; muitos têm dificuldades de movimentação; mais outros dependem de oxigênio em balões por toda a vida; há os que dependem de assistência médica contínua; muitos morrem cedo, muito cedo.
É muita gente, muito sofrimento, sem dúvida.
Penso que não nos pode servir de consolo a expressão de que se tratam de casos raros. Acima de tudo são pessoas comuns, gente como a gente, que ama, estuda, sofre, possui família e amigos, tem expectativas e esperança. O fato de não passarem de um ou poucos casos em cada 100 mil pessoas, de representarem um percentual pequeno na clientela dos serviços de saúde, não pode resultar em abandono ou esquecimento deles por parte dos serviços de saúde ou da sociedade. O que é apenas raro em uma visão do senso comum significa, para esses indivíduos, um fator que lhes avassala a existência, que lhes afeta de maneira extrema, que muitas vezes aniquila sua vida social e causa enormes perdas materiais para suas famílias. Por mais que as cifras globais sejam pequenas, trata-se de uma situação que, em termos quantitativos individualizados, representa nada menos, nada mais, do que 100% de impacto na vida de cada uma das pessoas afetadas.
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O evento ao qual me referi no início deste texto é o V Congresso Iberamericano sobre Doenças Raras – Uma questão de atitude, que será realizado entre os dias 25 e 27 próximos aqui em Brasília, no Museu da República, por iniciativa da AMAVIRARAS – Associação Maria Vitória de Doenças Raras e Crônicas, com apoiadores nacionais e internacionais diversos. Para maiores informações sobre isso acesse: PROGRAMAÇÃO | V Congresso Iberoamericano de Doenças Raras (amaviraras.org)

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.