Antônio Pereira – Jornalista e escritor – Uberlândia – MG

A varicela ou catapora costuma pegar em crianças com menos de 15 anos. Parece com a varíola, porém é mais suave e não ataca o rosto das pessoas. Já a varíola mata. Quando o doente escapa, fica todo marcado, o rosto caroquento. Quando uma onda de varíola se abateu sobre a cidade, no comecinho do século passado, o Estado de Minas Gerais se negou a socorrer Uberabinha alegando que era varicela e deixaram a doença rolar até desaparecer por si, levando muito vidas de maneira terrível. Para nós, negaram, para Araguari deram e suspenderam.
A Câmara Municipal instalou quatro postos de vacinação e encarregou os médicos Oliveira Martins, Rafael Rinaldi e os farmacêuticos Rodrigues da Cunha (Joanico) e Leôncio Chaves para debelarem a doença.
Quem nos conta a tragédia que foi esta moléstia é o jornalista e empresário Pedro Salazar Pessoa Filho no Correio de Uberlândia de 9 de novembro de 1969.
Naquele tempo, as vacinas eram aplicadas raspando-se a pele do paciente com o caquinho de vidro da embalagem e pingando-se o medicamento em cima da raspagem. A vacina teria tido efeito se essa arranhadura virasse uma fistulazinha purulenta que coçava muito. Deixava eterna marca.
Foi a mãe do Salazar quem lhe aplicou a vacina quando ainda criança. Na coxa direita, logo acima do joelho.
A varíola que chegou era das brabas, a bexiga preta, que matou ou marcou muita gente. Era 1912. Com o avanço da doença, sem tratamento específico, as mortes seguidas, a cidade se aterrorizou e enfurnou-se em casa. Não havia casas de saúde, os médicos eram poucos.
A primeira coisa que os médicos fizeram foi afixar uma bandeirinha vermelha na porta das casas onde houvesse doentes com o objetivo de informar às pessoas que, naquela casa, tinha gente doente, era pra ninguém entrar, nem ficar ali por perto. No fim do primeiro dia, acabaram-se as bandeirinhas.
Salazar conta a tragédia de uma família pobre cujo chefe era um humilde carpinteiro chamado Binuto. Uma síntese do que aconteceu em muitos lares. Todos os dias havia casos como este. Salazar morava na avenida Afonso Pena, onde, anos depois, se construiu o Banco Hypotecário. Do outro lado da rua, onde, muito depois, foi o Bar da Mineira e o Cine Avenida, morava o carpinteiro. Na casa do jornalista, duas pessoas pegaram a doença. Binuto foi dos primeiros na cidade a se contaminar. No fim do dia, em que ela se manifestou, já dezenas e dezenas de pessoas tinha sido infectadas.
Binuto morava num barracão. Salazar cuidava dos doentes de sua casa quando o ouviu gritar:
– Me dê um copo de água, pelo amor de Deus!
Salazar chegou à janela e ficou observando se a mulher do Binuto ou outra pessoa qualquer lhe dava água. Mas o que ele percebeu foram novos gritos do doente. O auge da varíola provoca torturante sede. Salazar esperou mais um pouco olhando para o barracão e novamente o Binuto gritou desesperado. Salazar tomou de um litro, encheu e atravessou a rua correndo. O Binuto bebia, bebia, a água lhe escorria pelos cantos da boca, molhava-lhe o pescoço e o peito. Seu rosto estava cheio de dolorosas e horríveis pústulas. Parecia um pequeno monstro.
Quando Salazar ia saindo do barracão topou com o dr. Oliveira que subia a avenida com dois auxiliares. Admoestou-o severamente por expor-se podendo infectar-se também. Salazar simplesmente arregaçou a perna da calça até acima do joelho e mostrou ao médico a marca de sua vacina. Oliveira não comentou nada, mas disse-lhe suavemente: Você pode continuar a atender o Binuto, mas ele não passa desta noite.
No dia seguinte, pela manhã, Salazar viu chegar à porta do Binuto uma carroça, acompanhada de um soldado do destacamento, para levar seu corpo para o cemitério. Foi enrolado num lençol velho. A carroça foi pegando outros corpos antes de chegar ao cemitério. Era assim que eram levados os falecidos pela doença.
Muita gente foi enterrada sem caixão.

Fonte: Pedro Salazar Pessoa filho

Antônio Pereira
qua., 30 de ago., 15:54 (há 16 horas)

para mim

A EPIDEMIA DE VARÍOLA
A varicela ou catapora costuma pegar em crianças com menos de 15 anos. Parece com a varíola, porém é mais suave e não ataca o rosto das pessoas. Já a varíola mata. Quando o doente escapa, fica todo marcado, o rosto caroquento. Quando uma onda de varíola se abateu sobre a cidade, no comecinho do século passado, o Estado de Minas Gerais se negou a socorrer Uberabinha alegando que era varicela e deixaram a doença rolar até desaparecer por si, levando muito vidas de maneira terrível. Para nós, negaram, para Araguari deram e suspenderam.
A Câmara Municipal instalou quatro postos de vacinação e encarregou os médicos Oliveira Martins, Rafael Rinaldi e os farmacêuticos Rodrigues da Cunha (Joanico) e Leôncio Chaves para debelarem a doença.
Quem nos conta a tragédia que foi esta moléstia é o jornalista e empresário Pedro Salazar Pessoa Filho no Correio de Uberlândia de 9 de novembro de 1969.
Naquele tempo, as vacinas eram aplicadas raspando-se a pele do paciente com o caquinho de vidro da embalagem e pingando-se o medicamento em cima da raspagem. A vacina teria tido efeito se essa arranhadura virasse uma fistulazinha purulenta que coçava muito. Deixava eterna marca.
Foi a mãe do Salazar quem lhe aplicou a vacina quando ainda criança. Na coxa direita, logo acima do joelho.
A varíola que chegou era das brabas, a bexiga preta, que matou ou marcou muita gente. Era 1912. Com o avanço da doença, sem tratamento específico, as mortes seguidas, a cidade se aterrorizou e enfurnou-se em casa. Não havia casas de saúde, os médicos eram poucos.
A primeira coisa que os médicos fizeram foi afixar uma bandeirinha vermelha na porta das casas onde houvesse doentes com o objetivo de informar às pessoas que, naquela casa, tinha gente doente, era pra ninguém entrar, nem ficar ali por perto. No fim do primeiro dia, acabaram-se as bandeirinhas.
Salazar conta a tragédia de uma família pobre cujo chefe era um humilde carpinteiro chamado Binuto. Uma síntese do que aconteceu em muitos lares. Todos os dias havia casos como este. Salazar morava na avenida Afonso Pena, onde, anos depois, se construiu o Banco Hypotecário. Do outro lado da rua, onde, muito depois, foi o Bar da Mineira e o Cine Avenida, morava o carpinteiro. Na casa do jornalista, duas pessoas pegaram a doença. Binuto foi dos primeiros na cidade a se contaminar. No fim do dia, em que ela se manifestou, já dezenas e dezenas de pessoas tinha sido infectadas.
Binuto morava num barracão. Salazar cuidava dos doentes de sua casa quando o ouviu gritar:
– Me dê um copo de água, pelo amor de Deus!
Salazar chegou à janela e ficou observando se a mulher do Binuto ou outra pessoa qualquer lhe dava água. Mas o que ele percebeu foram novos gritos do doente. O auge da varíola provoca torturante sede. Salazar esperou mais um pouco olhando para o barracão e novamente o Binuto gritou desesperado. Salazar tomou de um litro, encheu e atravessou a rua correndo. O Binuto bebia, bebia, a água lhe escorria pelos cantos da boca, molhava-lhe o pescoço e o peito. Seu rosto estava cheio de dolorosas e horríveis pústulas. Parecia um pequeno monstro.
Quando Salazar ia saindo do barracão topou com o dr. Oliveira que subia a avenida com dois auxiliares. Admoestou-o severamente por expor-se podendo infectar-se também. Salazar simplesmente arregaçou a perna da calça até acima do joelho e mostrou ao médico a marca de sua vacina. Oliveira não comentou nada, mas disse-lhe suavemente: Você pode continuar a atender o Binuto, mas ele não passa desta noite.
No dia seguinte, pela manhã, Salazar viu chegar à porta do Binuto uma carroça, acompanhada de um soldado do destacamento, para levar seu corpo para o cemitério. Foi enrolado num lençol velho. A carroça foi pegando outros corpos antes de chegar ao cemitério. Era assim que eram levados os falecidos pela doença.
Muita gente foi enterrada sem caixão.

Fonte: Pedro Salazar Pessoa filho