Ana Maria Coelho Carvalho – Bióloga – Uberlândia – MG – anacoelhocarvalho@terra.com.br

De acordo com o dicionário Aurélio, “gota é a porção mínima de líquido suficientemente pesada para cair em forma de esfera ou pera”. Temos assim a gota de chuva, de orvalho, de suor, da lágrima.
Mas não vou escrever sobre nenhuma delas e sim sobre a doença gota, um tipo de artrite que ocorre quando o ácido úrico se acumula no sangue e causa inflamação das articulações. E dói, dói muito. Curiosamente, também é chamada “Doença dos Reis”, pois antigamente acometia as pessoas mais abastadas da sociedade que possuíam fartura na mesa (ou seja, os comilões). Uma das causas da gota é o alto consumo de carne bovina, que favorece a produção de ácido úrico no organismo.
E como o Zé, meu finado marido, já deveria ter comido uma centena de bois ao longo da sua vida, ele era uma pessoa gotosa – não confundir com gostosa. Sofria de gota crônica, que acometia o pé esquerdo, o pé direito, o joelho esquerdo, o joelho direito, ia variando. Ocorria inflamação, dor, inchaço, aumento de temperatura no local. E a articulação podia travar e ele não andava. Um calvário.
Acontece que o último ataque de gota que teve, na verdade, foi um massacre. Ele ficou tão mal do joelho esquerdo que os dois filhos médicos, que lhe davam total assistência, começaram a pensar em outras possibilidades. Pediram uma batelada de exames. E a perna só inchando e doendo. O Zé andando mancando. Depois pulando apoiado em mim. Depois comprei um par de muletas. Depois consegui uma cadeira de rodas emprestada, mas que na verdade era uma cadeira de usar no banheiro, difícil demais de empurrar. E ele imóvel, com a perna inchada e doendo, só pedindo pra mim:- traz água com gelo; preciso do óculos; cadê meu celular; põe minha perna pra cima; preciso ir no banheiro; tenho que escovar os dentes; põe meu celular pra carregar; está na hora de tomar os remédios; preciso de um travesseiro; fecha a cortina pra mim; pega o controle da TV, etc. Daí, no sétimo dia, eu disse pra ele: “-Zé, acho que vou te bater…” Quase fiz como a D. Esperança, uma antiga vizinha que eu tive. Ela era uma velhinha forte, de pele clara enrugada e bem brava. Cuidava do marido, um velho miudinho que de vez em quando surtava, pulava a janela e fugia. Ela o agarrava e dava-lhe umas boas palmadas. A meninada da vizinhança, que vivia solta pelas ruas, vinha correndo me contar e eu ia defender o velhinho. Quase apanhava também.
Bem, mas voltando para a gota, o Zé acabou sendo operado pelo filho ortopedista, fez uma artroscopia no joelho. Estava com o menisco lesionado, com cisto de Baker, acúmulo de líquido gotoso e umas coisinhas mais. Teve que aprender a usar as muletas, pois estava andando errado. Eu também aprendi, caso algum dia precise (foi o filho que ensinou). É assim: coloca-se as duas muletas para a frente, sem abrir muito o espaço entre elas. Depois puxa-se a perna lesionada para frente até emparelhar com as muletas. Apoia-se o pé no chão. Depois dá o passo com a perna sã. Começa tudo novamente e vai indo…
Dois dias depois da operação, o Zé deu os primeiros passinhos sem as muletas, até filmei. Os olhos dele ficaram marejados de lágrimas. Talvez estivesse pensando que nunca mais andaria. Lembrei-me daquele vídeo sobre um bebê, com cerca de quatro meses , que não escutava. Colocaram um aparelho auditivo nos seus ouvidos e foi emocionante a expressão do bebê quando ele ouviu a mãe conversando com ele. Ficou quietinho, prestando atenção, com uma carinha maravilhada e incrédula, piscando os olhos. Depois deu um sorrisinho torto.

Enfim, a vida é bonita, mesmo com suas dores. E cheia de emoções, como o primeiro som que um bebê ouve. Ou os primeiros passos de um bebê ou de um velhinho gotoso entrevado que recupera a liberdade.