Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Pobre SUS: alguns o ameaçam e o desacreditam como podem. Outros conferem a ele um caráter mítico, capaz de fazê-lo triunfar pelos seus méritos absolutos e inquestionáveis, como se o mesmo não tivesse problemas de sobra e como se os seus negacionistas não tivessem a força (e os argumentos) que realmente possuem e viessem a ser derrotados apenas pela luminosidade da verdade. Aquela verdade em que os tais triunfalistas acreditam, é bom lembrar. Exemplificando: li por estes dias (ver link) a entrevista de Tulio Franco, docente da UFF e emérito sanitarista ligado ao main-stream da esquerda sanitária nacional (não vai aí nenhum demérito). Disse ele a respeito das investidas do Centrão para a substituição da Ministra da Saúde Nisa Trindade: “Não senti uma ameaça por dois motivos: tem um novo sujeito coletivo em cena, que é o movimento social da saúde, de base social e ampla que a do sanitarismo tradicional e que inclui movimentos sociais de origens diversas e até externos à Saúde. Pela sua multiplicidade e base nacional, e por ter sido formado no período recente de luta pela reconstrução do país, é muito forte. Está ativo e vigilante, o que é percebido pelos atores políticos”. E prossegue: “Vencemos a eleição, participamos da transição, comemoramos a indicação da ministra Nísia e estamos em várias estruturas de participação social do governo. Isso também legitima o movimento e o ministério da forma como está constituído, sob forte compromisso com a construção do SUS e da democracia. Tudo isso forma uma base social forte e sólida, que protege a Saúde contra os arroubos fisiológicos”. Mas não é só ele. Sônia Fleury e Luiz Antônio Neves, dois sanitaristas do Rio de Janeiro, ligados à mesma corrente pró-SUS a que eu chamaria de triunfalista, em alto e bom som sobre o mesmo assunto afirmaram: “a sociedade já está mobilizada em apoio ao SUS e à gestão da Nísia Trindade no ministério da Saúde, e em defesa da democracia que vai muito além do sistema eleitoral e partidário, pois se concretiza no modo de vida cotidiano […] falta ainda [ao novo governo] o entendimento de que a saída do círculo de giz, no qual as forças reacionárias e conservadoras pretendem imobilizá-lo, encontra-se justamente na mobilização da sociedade que lhe assegura governabilidade”. Melhor do que isso só se fosse, se não a verdade pura, pelo menos ideias marcadas pelas evidências. Mas não o são… E digo os por-quês a seguir.
Já falei disso aqui antes, identificando o tal fenômeno triunfalista como dialética do exagero, que é mais ou menos a mesma situação daquela mãe que adverte que seu filho de que ele vai quebrar o pescoço se não descer do muro – mesmo que tal muro não tenha mais do meio metro de altura – na mais melhor e mais nobre das intenções, claro. Mas o fato é que devemos nos acautelar também para que tais arroubos de argumentação não venham turvar também a defesa de causas justas, por exemplo, a defesa do SUS que nós, pessoas realmente do bem, costumamos praticar. Penso que a melhor defesa que podemos fazer de alguma coisa em que acreditamos é argumentar com a verdade, sem exageros. Penso realmente que a defesa do SUS, ou especificamente da permanência da Ministra da Saúde, que eu também defendo com total radicalidade (assim como repudio o Centrão e sua práticas da mesma forma), requer exatidão e fidelidade à realidade.
Assim, não custa questionar: onde estas pessoas estão enxergando “um sujeito coletivo em cena”, a força potencial de uma “mobilização da sociedade que se concretiza no modo de vida cotidiano”, a relação entre tal mobilização e a governabilidade e que “ter vencido as eleições”, independentemente dos outros atores que também as “venceram” garanta alguma coisa, em termos da permanência da Ministra ou mesmo da possível sustentabilidade do SUS.
Vamos com calma e mais senso de realidade, pessoal! Tanta euforia pode fazer com que seus torpedos caiam n’água. O descrédito de tais argumentos militantes pode ser ainda pior do que a desinformação geral. É preciso cuidar para se cair nas armadilhas de tal pensamento desejoso ou de uma dialética do exagero.
Tudo bem, separemos as coisas: incidir em tais erros ainda é radicalmente diferente – e muito menos danoso – do que a propagação mal intencionada e mesmo criminosa de notícias falsas que a horda bolsonarista praticou e ainda pratica à luz do dia e ainda chama de liberdade de opinião.
Mas para os militantes do SUS, que em princípio são partidários de uma causa nobre, é preciso uma dose extra de coerência. No caso presente, a tal mobilização de sujeitos coletivos que ganharam as eleições é algo ainda a ser conquistado. Pior ainda: a esquerda progressista não ganhou, de fato, as tais eleições; apenas conseguiu, a duras penas e por pequena minoria, afastar, não se sabe até quando, o germe fascista. A luta está apenas começando…
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Saiba mais…
• https://outraspalavras.net/outrasaude/como-a-17a-conferencia-pode-defender-o-sus/
• https://saudenodf.com.br/2021/12/06/entre-o-pensamento-desejoso-e-a-dialetica-do-exagero/

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.