Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Em texto anterior aqui no blog (https://saudenodf.com.br/2023/03/20/a-formacao-medica-e-o-distrito-federal/#more-3785) comentei alguns dados sobre a formação médica no âmbito do DF, mostrando também que seus eventuais reflexos sobre a assistência à saúde em nossa cidade representariam apenas “mais do mesmo”, em termos de elitismo e concentração geográfica e tecnológica, além do reduzido impacto sobre os serviços prestados diretamente no sistema público. Com efeito, duvido muito que as seis faculdades de medicina que existem por aqui, com seus quase 500 formandos anuais, todas convergentes na lógica hospitalocêntrica e centrada na doença, tenham potencial para equacionar as dificuldades que a assistência médica exibe aqui no DF, entre as quais podem ser citadas: a escassez de médicos nas unidades mais periféricas do sistema; a crise permanente de oferta de algumas especialidades; a falta de ênfase na formação generalista, essencial em qualquer sistema de saúde; a ortodoxia das práticas pedagógicas nas escolas médicas. Além disso, o verdadeiro regime de laissez-faire na formação médica instalado aqui e em todo o país mostra que são os “mercados” e não as necessidades coletivas que ditam as diretrizes para a formação médica. Mas o que seria, afinal, uma “boa formação médica”, em termos de conteúdo e práticas pedagógicas? Acrescente-se a isso questões, digamos, mais filosóficas, que comporiam a resposta à pergunta que também formulei no texto anterior: a quem interessa o atual estatuto? Já até arrisquei uma resposta genérica no texto anterior: ao SUS é que não é… Vamos desenvolver o tema um pouco mais nas linhas seguintes. Hoje contando com o auxílio luxuoso da querida Henriqueta Camarotti.
Vamos então dar um giro por tal campo, aliás muito vasto em especulações, ao mesmo tempo que há algumas concordâncias entre os especialistas. No quadro seguinte, elaborado sob a forma de um decálogo, tentamos Henriqueta e eu sistematizar tais consensos, com ênfase nos princípios filosóficos, meios pedagógicos e implicações políticas, sociais e teleológicas, sem entrar no mérito de questões ligadas ao conteúdo biológico ou clínico de tal formação.
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ANTECIPAÇÃO DO CONTATO Contato com pacientes e com a própria realidade sanitária e social local: quanto mais cedo melhor. Não importa que os alunos ainda não tenham noção da fisiopatologia das doenças ou dos elementos para seu diagnóstico. O fato de poderem acompanhar atendimentos, de preferência na atenção básica de saúde, feitos por estudantes mais maduros, residentes ou professores, por si só, lhes trará subsídios importantes. Isso deve ser feito de forma curricular, não voluntária (sem desprezar que também o voluntariado possa ser incentivado) e há inúmeras atividades que os estudantes poderão cumprir, além de acompanhar de forma passiva o atendimento, como por exemplo: participar do acolhimento, inclusive quando realizado em grupos e em cenários diversos, comunitários por exemplo; organizar, consultar e pesquisar prontuários; realizar visitas domiciliares; acompanhar pacientes; aferir os sinais vitais etc. Tudo isso em interação com os diversos membros da equipe de saúde, em qualquer nível de complexidade, com ênfase em saúde preventiva e promoção à saúde. Isso pode acontecer já desde os primeiros meses da entrada dos estudantes nas faculdades de medicina.
UMA NOVA PEDAGOGIA Aulas expositivas em grandes anfiteatros, dissecções furiosas de cadáveres, bancadas de laboratório cheirando a fezes, sangue e urina, estudantes ávidos e afoitos apalpando pacientes humilhados, são coisas do século passado. Estudantes entram na faculdade querendo GENTE e lhes oferecem cadáveres, lâminas, microscópios, líquidos e secreções corporais, chapas de RX, além de professores intermediando o contato com os pacientes. Existem muitas técnicas de ensino novas no pedaço, como por exemplo: a antecipação de contato com pacientes citada acima; a não separação entre ciclo básico e profissional; o ensino integrado em blocos e não em tecidos e segmentos corporais; o foco em solução de problemas e não em patologias; as práticas inter e transdisciplinares, além de interprofissionais; a inclusão de diferentes profissionais n ensino; o uso de atores em simulações, são algumas das inovações que estão no cenário. Às vezes, nem tão novas assim, pois algumas já vêm sendo desenvolvidas em algumas partes do mundo civilizado há mais de 40 anos. A roda já não precisa ser inventada, portanto. Há exemplos de uma nova pedagogia abundando pelos quatro cantos do mundo e mesmo no Brasil.
INCLUSÃO DE DETERMINANTES SOCIAIS O modo tradicional de ensinar medicina, fixado desde a antiguidade e reforçado pela revolução dita “científica” do século 19 considera a origem das doenças simplesmente como resultado de um embate entre agentes patológicos diversos, sejam bactérias, vírus, parasitas ou mesmo genes alterados ou traumatismos e o corpo humano, até então sadio. Além disso, uma concepção reducionista e mecanicista que tenta comparar o corpo humano a uma máquina. Mas tal correlação é simplista demais. Os seres humanos sofrem, de fato, todas essas interações, mas fatores consideráveis do mundo que os rodeia podem ter papel mais importante ainda, como as relações sociais, os hábitos, os modos de vida, o próprio acesso, maior ou menor, aos serviços de saúde e sua eficácia. A essência da dualidade entre corpo e mente começo a ser explorada e expandida há mais de um século, com as ideias sobre o comportamento humano desenvolvidas por Jung, Freud e tantos outros estudiosos, que todavia ainda não estão de todo incorporadas ao conhecimento médico corrente. De acordo com a OMS, os determinantes sociais da saúde correspondem às condições em que uma pessoa vive e trabalha, ou seja, os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e fatores de risco, entre os quais moradia, alimentação, escolaridade, renda e emprego. Sobre isso há diferentes abordagens possíveis, com variações na compreensão dos mecanismos que acarretam em iniquidades de saúde, o que faz com que tais determinantes não podem ser avaliados somente pelas doenças geradas, ao influenciar também as variadas dimensões do processo de saúde das populações, seja do ponto de vista do indivíduo como da coletividade. Isso faz com que o ensino médico deva ter seu escopo ampliado a outras profissões e saberes, com abordagens adequadas, em tudo diferentes do limitado e limitante raciocínio biológico e clínico habitual.
AMPLIAÇÃO DE CENÁRIOS DE ENSINO E PRÁTICAS O ensino da medicina se dá tradicionalmente em três tipos de ambiente: laboratórios, ambulatórios e hospitais. Na fase clínica o ambiente hospitalar geralmente é o que domina o cenário. Na atual expansão que se verifica no Brasil, embora as três modalidades ainda prevaleçam, é questionável que elas sejam oferecidas em proporções e qualidade adequadas. Há inovações pedagógicas com relação a isso, já testadas em várias partes do mundo. Primeiro, a laboratório e a clínica não precisam estar dissociados: as propostas de ensino mediante blocos ou com base em problemas (PBL) podem fazer coalescer estes territórios, superando a tradição de separação temporal e instrumental que acabou sendo consagrada na formação medica, mesmo depois das reformas conduzidas nos EUA por Flexner e a Fundação Carnegie. A concentração hospitalar também precisa ser revista, já que o cotidiano da profissão, ainda mais dentro de uma visão preferencialmente mais generalista, se vincula também a outros focos de assistência. Tornam-se fundamentais, assim, mudanças no sentido de que grande parte das atividades de ensino se concentrem nas práticas ambulatoriais, principalmente na atenção primária ou básica à saúde, o que também é um espaço ainda pouco valorizado na maioria dos cursos de medicina. Mas além dos ambulatórios clássicos, mesmo aqueles situados nas comunidades e não diretamente no terreno dos hospitais de clínicas (outro viés presente na formação médica habitual), é preciso atentar para outras possibilidades de cenários de práticas. Por exemplo, os domicílios, as creches, as escolas, as instituições de proteção social, os consultórios de rua, além de outros. Mas isso não deveria ter um caráter de visita apenas esporádica de estudantes, sem compromisso maior ou em modo passivo de interação. Ao contrário, deve fazer parte de programas bem estruturados, com assistência docente (não apenas de docentes médicos, diga-se de passagem), além de compulsoriedade e responsabilidades definidas, para docentes, discentes e membros do serviço.
INTERPROFISSIONALIDADE As dificuldades de interação entre os diversos profissionais da área da saúde são notórias, aí entrando questões de poder, de linguagem, de domínio técnico. Quando eu (Flavio) era docente da UnB muitas vezes pedia aos alunos das várias profissões de saúde que tinham aula comigo para se apresentarem. Aí era possível observar que formavam porções imiscíveis de (futuro(a)s) médico(a)s, enfermeiro(a)s, dentistas, farmacêutico(a)s, etc. E era assim fora da sala de aula também: cada grupo em canto, corredor, enfermaria, professor(a) totalmente separados entre si (e do mundo). Moral da história: perde-se um tempo precioso na graduação sem de alguma forma tentar uma aproximação interativa que teria importância ao longo de toda vida profissional. Grande parte das disciplinas do ciclo básico e muitas também do ciclo profissional poderiam ser ministradas sob a forma de aulas conjuntas, tanto em grandes sessões para discussão de casos como em grupos de trabalho e mesmo seminários específicos. Não conheço nenhum lugar onde isso é feito. A noção de enfermeira(o)s como agentes “para” médicos, em uma acepção que vem de “paralelismo”, deveria ser substituída pela de trabalho complementar ou conjunto, e até mesmo liderança daqueles em determinadas situações. Penso que é perfeitamente possível fazer isso acontecer, é claro que mediante planejamento pedagógico adequado, além de vontade em fazer e romper barreiras. Não seria o caso de se fazer mundo começar a girar de novo, ressuscitar Claude Bernard ou Florence Nightingale, por exemplo…
RACIOCÍNIO EPIDEMIOLÓGICO Epidemiologia significa ver e entender as doenças no conjunto na população, não apenas em termos individuais, que é uma prerrogativa da Clínica. A Epidemiologia moderna de há muito transcendeu seus conceitos históricos, de prevalência e incidência, letalidade e mortalidade, por exemplo, para adentrar em novos campos como: fatores de risco, carga de doenças, anos perdidos por incapacidade, mortes evitáveis por fatores específicos, internações sensíveis a condições determinadas, ajustes estatísticos por sexo, idade, geografia – além de muitos outros. A formação médica não precisa formar epidemiologistas verdadeiros, mas deve se preocupar em fornecer aos futuros profissionais uma visão EPI, ou seja, de conjunto, ou de base populacional sobre os fatores que levam os indivíduos e as populações respectivas a adoecerem, longe, entretanto, de algum enfoque teorizante, mas acima de tudo vinculada aos aspectos clínicos. Exemplificando, de maneira singela: não bastaria ao Doutor “X” ter consciência que seus dez, vinte (ou quantos sejam) pacientes hipertensos estejam todos bem tratados. Ele precisa conhecer também a realidade mais abrangente de sua área de atuação, na qual, digamos, existiria um número bem maior de pacientes, de acordo com a estimativa epidemiológica. Os médicos e as equipes de saúde devem estar preocupados, enfim, em não só tratar adequadamente, do ponto de vista técnico e humano aqueles “n” pacientes que lá estão por demanda espontânea, mas também desenvolver esforços para alcançar números cada vez maiores em relação à incidência estimada. Enfim, além dos termômetros, aparelhos de pressão e outros instrumentos, é preciso incorporar aos arsenais médicos os mapas físicos e on-line e os dados estatísticos da sua área de atuação, além das calculadoras e dos aplicativos de geoprocessamento. São os novos tempos, nos quais não há mais lugar apenas para “práticas atrás do balcão”.
TECNOLOGIAS Quando se fala de tecnologia, isso implica não só os artefatos ou as drogas que a indústria lança a cada dia, seja para minorar o sofrimento das pessoas, ou para incrementar seus lucros. Neste aspecto, a formação médica deve se concentrar em apurar o senso crítico dos estudantes e também de ajudar os futuros doutores a não se converterem em uma espécie engravatada de balconistas de farmácia e peça importante dos departamentos marketing da big-farma. É preciso ir além. Questão adicional e muito atual, por exemplo, é a das tecnologias de comunicação e informação, que exercem também ações “de dois gumes” no cenário, seja para facilitar o acesso à informação aos pacientes e aos próprios médicos, seja para difundir mitos, falsidades e meias verdades. Aqui volta a questão de se trabalhar com um indispensável fomento ao senso crítico na formação. Aspecto que adquiriu especial relevância nessa discussão é a da telemedicina, sobre a qual não deve ser por acaso que os conselhos e outras entidades médicas, do alto de seu conservadorismo, tenham relutado e ainda relutam em aceitar. Mas já não é possível pensar no futuro sem elas. O colóquio singular da relação entre médico e paciente continua sendo fundamental, mas as ferramentas de interação remota hoje disponíveis, se contornam, por um lado, a existência de um contato próximo, por outro abrem novas possibilidades de ampliação do acesso, democratizando a relação dos serviços de saúde com seus usuários. É preciso lembrar, ainda, que os futuros médicos terão muitas novas oportunidades de se informarem, não mais apenas nos livros e revistas tradicionais. Mas aos pacientes também estará sendo dada tal oportunidade e os médicos deverão ser preparados para travar de diálogos produtivos e respeitosos com eles, ajudando-os a compreender e afastar os aspectos negativos da divulgação. Isso inclui também a necessidade de acolher as informações que os clientes certamente serão capazes de aportar ao cenário do tal colóquio singular. Em resumo, seria essencial que em diversas disciplinas do currículo médico houvesse maior ênfase, por exemplo, na avaliação da eficácia das tecnologias médicas, no fortalecimento da relação médico paciente, na promoção da informação aos pacientes para torná-los mais participativos, além da utilização mais eficaz e consciente de mecanismos de autonomia dos pacientes. Isso é o que o futuro próximo certamente imporá à profissão – se é que já não impõe – e tentar fugir disso significará marginalização, tanto do ponto de vista técnico como social.
CAPACITAÇÃO DOCENTE Interprofissionalidade, visão epidemiológica e sistêmica, pedagogias inovadoras, ampliação de cenários etc. Tudo isso é essencial na formação médica e aqueles que ainda não se deram conta disso deveriam se atualizar, com urgência. Aliás, o problema está exatamente aí: muitos docentes das escolas médicas atuais – se não a maioria – foram moldados no modo antigo de formação, que remonta a pelo menos um século e meio de história. Mas os tempos agora são outros e é preciso que essa gente seja atualizada (na melhor das hipóteses) ou, com toda certeza, moldada na compreensão do conjunto de inovações que o ensino médico qualificado atual carrega. A explosão das escolas médicas verificada no país nos últimos dez ou quinze anos com certeza não se ateve a tal preocupação. Até aí, seria normal, mas o que se vê é pouca ou nenhuma preocupação com tal questão. Quando se cria uma nova faculdade de medicina nos rincões do Brasil, a preocupação principal é a presença de médicos e de hospitais no cenário, além de clientes que passam pagar as mensalidades, é claro. Mas isso não é o bastante. A presença de médicos locais, mesmo que bem-sucedidos, além de alguma infraestrutura sanitária, por si só não constituem fatores que garantam qualidade ao ensino da medicina. Seria mais ou menos a mesma coisa que alguém adquirir um telefone móvel de última geração e instalá-lo em algum lugar onde não haja sinal. Todo o investimento estará perdido. Ou melhor, no caso da medicina, esses cursos improvisados estarão servindo tão somente para que seus egressos peguem logo o diploma que lhes é oferecido para finalmente irem aprender medicina verdadeira em outra parte, muitas vezes às custas de incautos pacientes. Capacitação docente já! E que ela leve em conta minimamente os diversos aspectos apontados nessas despretensiosas anotações.
IMERSÃO NO SUS REAL O verdadeiro SUS não pode estar presente apenas de forma superficial e remota nas aulas em alguma disciplina ou estágio. Ele pulsa nas unidades básicas de atenção primaria, nos ambulatórios de especialidades, nos setores de medicina do trabalho, na vigilância sanitária, nas emergências, nas UPA e hospitais, além de outros locais, variados e inúmeros, por sinal. Como desdobramentos, isso atingiria também a necessária mudança da lógica dos binômios consagrados pelo pensamento tradicional em saúde, como aqueles que dicotomizam saúde e doença, corpo e mente, submissão versus pró-atividade individual e comunitária. A utilização de tais espaços por parte das escolas de medicina é de baixa intensidade e frequência, além de mal programada. É claro que ao lado da falta decisão, no caso das escolas, são escassos também os incentivos, em relação ao outro lado. Além disso, alunos de ciências da saúde muitas vezes são tratados como um estorvo dentro dos serviços de saúde e não há dúvida que sua presença mal planejada e mal supervisionada pode trazer reais transtornos ao funcionamento dos mesmos. Além disso, a delegação pura e simples de tarefas docentes ao pessoal dos serviços, já por natureza sobrecarregado, merece aprofundamento, tanto em termos éticos como trabalhistas. Cumpre ainda, dentro do espírito epidemiológico citado acima, incluir na formação médica algum tipo de contato com os espaços de gestão do SUS, por exemplo, nas instâncias de regulação, na vigilância em saúde, controle de agravos, zoonoses etc. Sem esquecer que os hospitais universitários costumam se colocar (ou serem tratados) como unidades em paralelo com o SUS real, em relação às quais a pergunta “se forem fechados provocarão algum impacto no sistema?” talvez seja respondida de forma negativa. Como diretriz fundamental de tal imersão deve ser lembrado que é fundamental fazer os alunos de medicina não só conhecerem o SUS de forma adequada, como respeitá-lo em sua dinâmica e importância social, como uma solução que ainda mostra problemas (a serem resolvidos) e não como um problema sem solução. Pressuposto a ser considerado é a imagem que os estudantes (e os próprios docentes, muitas vezes) trazem sobre o SUS, como um sistema de saúde pobre, de escassa tecnologia e precário, ao qual, por assim dizer, estão “condenados” os mais pobres. O contrário do SUS não é nenhuma terra da promissão financiada a pré-pagamentos, mas sim uma autêntica barbárie sanitária.
ENFRENTAMENTO DE UM PANORAMA MUTANTE Tudo passa, nada permanece, como já diziam os Gregos antigos. No campo da saúde, seja em relação às tecnologias clínicas ou de gestão, para não falar dos aspectos culturais, isso é regra geral e inescapável. Assim, não basta preparar profissionais apenas na base de acumulação de conhecimentos e saberes, como quem dá sucessivas demãos de pintura em uma parede. Ensinar medicina e ciências da saúde (e muitas outras) é muito mais do que isso, envolvendo o desenvolvimento de espírito crítico, a capacidade de perscrutar permanentemente a realidade e assim fazer escolhas. Mais importante do que colecionar livros e assinar periódicos técnicos, o que realmente importa no panorama atual é saber acompanhar e selecionar, de forma crítica e em tempo real, os fluxos acelerados de descobertas e conhecimentos que surgem a cada momento, muitos deles caducando em um tempo seguinte. Bons alunos e bons profissionais deixam de ser aqueles que apenas acumulam saber, mas sim aqueles capazes de transitar com agilidade e criticismo nos caminhos que se abrem a todo momento. Faz grande diferença, também, o exercício da criatividade; a observação criteriosa da realidade através de uma mente aberta e curiosa; a busca e o aproveitamento da intuição; a real e sincera sintonia com o sofrimento das pessoas; a compreensão filosófica da condição humana, além de uma certa inquietação intelectual, ou seja, uma mente que se revela insatisfeita com a realidade tal e qual ela se apresenta e insiste em despertar mudanças, fatores para os quais também é possível oferecer apoio e treinamento.
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Sobre inovações curriculares em Medicina
Artigo da professora Lucia Bulcão, da UnigranRio – ver link abaixo – se detém sobre o mesmo assunto deste post, com grande concordância em relação às ideias que defendo. Vai uma síntese a seguir.
Inovações? Nem tanto. Isso já é falado há décadas, porém é uma agenda que não foi cumprida satisfatoriamente, consistindo em mais teoria do que propriamente prática. A relação com os órgãos de gestão da saúde precisa ser construída, para além do discurso formal. Compartilhamento de responsabilidades é fundamental, mas deve respeitar diretrizes, normas e rotinas dos serviços, ou seja, as orientações pertinentes ao espaço compartilhado. Torna-se essencial incorporar aos currículos a presença dos estudantes e professores em diferentes cenários do que o hospitalar, de forma articulada com a rede pública de serviços de saúde e mesmo comunidades, sendo uma questão de “sobrevivência institucional”. As relações intersubjetivas (entre os diversos agentes, sejam alunos, professores, profissionais de saúde e usuários) devem ser consideradas, em relação à diversidade de comportamentos, crenças e culturas individuais, coletivas e institucionais, tomando-se premente a inserção destas questões no currículo médico, com a necessária construção de relações baseadas numa ética que considere diferenças sociais, culturais e comportamentais entre os atores envolvidos na relação docente-estudante- outros profissionais de saúde-paciente. Cabe trabalhar a questão da resistência, por exemplo, em relação às atividades extramuros, que toca o cerne do sistema de valores da profissão médica, particularmente nas propostas de deslocamento do eixo hospital/atenção individual/ especialização, na medida que atingem o status profissional e a representação perante si e a sociedade, sendo consideradas menos prestigiosas. Atividades extramuros, tanto na comunidade como na rede de saúde, devem ser inseridas desde os períodos iniciais, de forma a contestar certos valores tradicionais próprios da profissão médica – os quais acirram resistências por parte dos estudantes e que são adquiridos no decorrer do curso. É preciso também refutar a falácia da hegemonia do modelo biomédico e a visão anátomo-fisio-patológica do processo saúde-doença, substituindo e o superando através do desenvolvimento de ações do âmbito da promoção da saúde e prevenção de doenças. Devem ser valorizados os projetos já existentes de extensão universitária em diferentes cenários para atuação dos estudantes, o que muitas vezes faz parte do desejo dos mesmos. Deve ser dada atenção também para o chamado currículo paralelo que faz parte da vida estudantil real, antepondo-se a um currículo oficial único e homogêneo, porém nem sempre satisfatório em atender às especificidades e anseios dos estudantes; a partir de tal compreensão, as escolas médicas poderiam melhor explorar espaços que ofereçam aos estudantes oportunidades de estarem atuando em atividades práticas, extramuros, mediante supervisão adequada e programação definida.
Leia um resumo do texto acima ou acesse o link para o mesmo aqui. https://www.scielo.br/j/rbem/a/8dzVwWcVzDwmZw89z4KDggz/?lang=pt#
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A formação médica e seus enormes desafios (por Henriqueta Camarotti)
Temos que ser bem enfáticos, realmente, em relação à necessidade de mudanças da atenção à saúde, mudando o foco de ser apenas “sobre” as pessoas para um maior reforço ao autocuidado – não qualquer um, mas essencialmente bem-informado. Isso, é claro, implica em transformação substancial e real das concepções tradicionais sobre o processo saúde-doença.
Tomemos, por exemplo, o quadro sanitário da “modernidade”, com as tendências familiares ou genéticas de hipertensão, obesidade, diabetes, frente às quais a postura e os cuidados pessoais e alimentares são fundamentais para mudar o rumo das condições de saúde individuais e da comunidade. Definitivamente isso implica em mudança radical de paradigma e em tal quesito tanto os estudantes de medicina como os médicos em geral têm um conceito introjetado de que os pacientes são agentes passivos, os quais, de forma independente de sua participação nas questões preventivas, não podem interferir sobre o aparecimento ou a evolução de suas doenças.
E indago: por que seria tão difícil mudar comportamentos, seja de um grupo social ou de pessoas? Me lembro aqui de uma conversa recente com Luiz Carlos Prata, um médico e ex-Secretário de Saúde de uma cidade de cerca de 50 mil habitantes (Manhuaçu-MG). A população de tal cidade, ameaçada pela dengue, não conseguia reconhecer e aceitar as práticas essenciais para impedir a multiplicação do mosquito. Seria só por causa da pobreza? Ou mais do que isso, um problema do conjunto da sociedade, inclusive dos médicos, que não acreditavam verdadeiramente na prevenção de doenças e nas práticas de promoção de saúde? Luiz não teve dúvidas, atacou o problema por todos os lados. Convocou a população através de uma campanha de esclarecimento maciço, mas foi também atrás de cada um dos outros atores sociais influentes na cidade, ou seja, médicos, promotores, policiais, juízes, dirigentes comerciais e de entidades sociais, envolvendo e responsabilizando todos na luta contra a doença, que teve como ponto de partida uma ampla coleta de lixo e detritos no ribeirão que banha a cidade. E a partir daí a história da dengue foi outra naquela cidade.
Pego outro exemplo: por que seria que os pediatras não investem na orientação alimentar saudável das crianças que atendem, para reduzir as inflamações intestinais, as diarreias, bronquites de repetição e as alergias? Será que eles realmente não “acreditam” nisso ou simplesmente se recusam a mudar o paradigma de sua prática? Será que os médicos não se sentiriam parte da promoção de hábitos saudáveis, preferindo se concentrar em passar antibióticos e paliativos, sem entrar fundo na causalidade?
Isso tem a ver com o ensino médico, sem dúvida, que deveria ter resposta para a seguinte pergunta: como mudar verdadeiramente tais visões omissas ou preconceituosas dos futuros médicos?
Penso que outro problema fundamental da formação médica, que tem consequências importantes no processo de atenção à saúde é a baixa capacidade de escuta, em relação aos pacientes, à sociedade, aos outros profissionais. Neste aspecto, pude ajudar a disseminar com a tecnologia da Terapia Comunitária Integrativa (TCI), com suas rodas ou grupos de escuta, que representam meios eficientes de abordagem comunitária, capaz de desenvolver nas pessoas sentimentos de fazerem parte ativa em um processo de superação de dores, angústias e carências diversas. Acredito que uma coisa assim teria também implicações na relação médico-paciente, tornando estes últimos mais bem informados e participativos, com utilização mais eficaz e consciente de mecanismos de ajuda mútua e autocura. Grupos de fala, de escuta e de construção de redes solidárias, de trocas e ajuda mútua, no meu entendimento, fazem parte do que o futuro próximo imporá à profissão. Em suma, trata-se de promover grupos de diálogo e reflexões voltados para o autoconhecimento e crescimento, seja para pacientes ou profissionais do cuidado, de forma a enfatizar o trabalho em equipe multi e transdisciplinar, investindo no respeito interprofissional, nas práticas horizontalizadas e complementares entre as diversas profissões da saúde.
Há mais questões que não querem calar, por exemplo: será que o estudante de medicina de fato amadurece como pessoa e em termos de visão de mundo ao longo dos seis anos de curso? Será que este conseguiria perceber além do seu umbigo, mesmo tendo participado de tantas situações críticas nos atendimentos? Ele seria capaz de perceber o que significam os contextos de sofrimento trazidos pelos pacientes? Por exemplo, no caso de uma criança que chega ao setor de queimados por ter ficado em casa sendo “cuidada” por irmão de seis anos, será que a equipe discutiria sobre as causas que subjazem no sofrimento das pessoas que acorrem aos serviços?
Existe, assim uma Arte de Cuidar, que a meu ver não está inserida como tema em nenhum momento na formação do médico. Haveria muitas formas de trabalhar isso, não necessariamente como uma disciplina isolada, mas como conteúdos “transversais” que ao longo de todo o processo de formação, como atividades complementares ou inseridas diretamente nas disciplinas curriculares.
Em suma, penso que deveria haver mecanismos para transformar os futuros médicos em pessoas mais humanizadas, na mais ampla acepção desta palavra.
Finalizando, um tema que me é particularmente caro é o das residências multiprofissionais, tendo eu coordenado um projeto como este na SES-DF há alguns anos atrás. Isso permitiria diluir um pouco o “saber” e o “poder” dos médicos sobre as decisões e encaminhamentos associados ao cuidado à saúde, incluindo no processo de atenção não só médicos e enfermeiros, mas também assistentes sociais, psicólogos, terapeutas ocupacionais e outros profissionais, através de uma parceria verdadeira e horizontalizada.
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Governo conservador emana decreto que ameaça o sistema público de saúde na Itália
De nosso amigo Renato Tasca recebemos o seguinte alerta sobre mudanças (para pior…) no sistema de saúde italiano (o qual, aliás, é uma das inspirações do nosso SUS).
O governo conservador da Itália deu luz verde ao Decreto “autonomia diferenciada”. Seus efeitos serão bom para os cidadãos do centro-norte, melhor ainda para os ricos, enquanto as populações das regiões do sul do país, mais pobres e atrasadas, serão diretamente afetados com limitações de acesso e menor qualidade dos serviços públicos de saúde. Um relatório da Fundação Gimbe, uma das mais prestigiadas think-tank da Itália na área da saúde pública, mostra que a aplicação desta medida ampliará as brechas entre as regiões, fazendo com que aquelas mais pobres e menos organizadas terão cada vez menos recursos para requalificar seus serviços, se tornando “clientes” dos serviços produzidos pelas ricas regiões do norte. Nas regiões mais penalizadas, para a realização de muitos procedimentos mediante o sistema público, as pessoas terão que se deslocar para outra região. De acordo ao decreto, as regiões poderão gerir de forma independente os salários dos médicos, os contratos de trabalho do pessoal de saúde, o acesso às escolas especializadas… Logo, as regiões mais ricas vão atrair profissionais de saúde de outras regiões, esvaziando os hospitais e as estruturas públicas de saúde do Centro-Sul. E poderão meter boca nos registros de medicamentos, remover as restrições de gastos, em suma, fazer o que quiser, transformando o Sistema Nacional de Saúde em 21 pequenos estados autônomos, cancelando todos os mecanismos de solidariedade construídos nos quarenta anos do sistema público de saúde italiano, e que tampouco foram suficientes para reduzir as diferenças regionais. Não só isso: o Decreto proporciona autonomia para criação e gestão de fundos de saúde suplementar, privilegiando aqueles que podem pagar um plano de saúde, empurrando, por sua vez, a privatização dos serviços. Tudo dedutíveis de impostos, resultando em uma renda menor para a tributação geral. Mais assistência privada significa menos dinheiro para a assistência pública. Então, na Itália vamos rumo um sistema parecido com o dos Estados Unidos, que é o mais ineficiente do mundo. O relatório do Gimbe sobre “regionalismo diferenciado” pode ser solicitado no link: https://lnkd.in/dXcx73DX
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.

Afinal, o que seria uma “boa formação médica”?
Em texto anterior aqui no blog (https://saudenodf.com.br/2023/03/20/a-formacao-medica-e-o-distrito-federal/#more-3785) comentei alguns dados sobre a formação médica no âmbito do DF, mostrando também que seus eventuais reflexos sobre a assistência à saúde em nossa cidade representariam apenas “mais do mesmo”, em termos de elitismo e concentração geográfica e tecnológica, além do reduzido impacto sobre os serviços prestados diretamente no sistema público. Com efeito, duvido muito que as seis faculdades de medicina que existem por aqui, com seus quase 500 formandos anuais, todas convergentes na lógica hospitalocêntrica e centrada na doença, tenham potencial para equacionar as dificuldades que a assistência médica exibe aqui no DF, entre as quais podem ser citadas: a escassez de médicos nas unidades mais periféricas do sistema; a crise permanente de oferta de algumas especialidades; a falta de ênfase na formação generalista, essencial em qualquer sistema de saúde; a ortodoxia das práticas pedagógicas nas escolas médicas. Além disso, o verdadeiro regime de laissez-faire na formação médica instalado aqui e em todo o país mostra que são os “mercados” e não as necessidades coletivas que ditam as diretrizes para a formação médica. Mas o que seria, afinal, uma “boa formação médica”, em termos de conteúdo e práticas pedagógicas? Acrescente-se a isso questões, digamos, mais filosóficas, que comporiam a resposta à pergunta que também formulei no texto anterior: a quem interessa o atual estatuto? Já até arrisquei uma resposta genérica no texto anterior: ao SUS é que não é… Vamos desenvolver o tema um pouco mais nas linhas seguintes. Hoje contando com o auxílio luxuoso da querida Henriqueta Camarotti.
Vamos então dar um giro por tal campo, aliás muito vasto em especulações, ao mesmo tempo que há algumas concordâncias entre os especialistas. No quadro seguinte, elaborado sob a forma de um decálogo, tentamos Henriqueta e eu sistematizar tais consensos, com ênfase nos princípios filosóficos, meios pedagógicos e implicações políticas, sociais e teleológicas, sem entrar no mérito de questões ligadas ao conteúdo biológico ou clínico de tal formação.
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ANTECIPAÇÃO DO CONTATO Contato com pacientes e com a própria realidade sanitária e social local: quanto mais cedo melhor. Não importa que os alunos ainda não tenham noção da fisiopatologia das doenças ou dos elementos para seu diagnóstico. O fato de poderem acompanhar atendimentos, de preferência na atenção básica de saúde, feitos por estudantes mais maduros, residentes ou professores, por si só, lhes trará subsídios importantes. Isso deve ser feito de forma curricular, não voluntária (sem desprezar que também o voluntariado possa ser incentivado) e há inúmeras atividades que os estudantes poderão cumprir, além de acompanhar de forma passiva o atendimento, como por exemplo: participar do acolhimento, inclusive quando realizado em grupos e em cenários diversos, comunitários por exemplo; organizar, consultar e pesquisar prontuários; realizar visitas domiciliares; acompanhar pacientes; aferir os sinais vitais etc. Tudo isso em interação com os diversos membros da equipe de saúde, em qualquer nível de complexidade, com ênfase em saúde preventiva e promoção à saúde. Isso pode acontecer já desde os primeiros meses da entrada dos estudantes nas faculdades de medicina.
UMA NOVA PEDAGOGIA Aulas expositivas em grandes anfiteatros, dissecções furiosas de cadáveres, bancadas de laboratório cheirando a fezes, sangue e urina, estudantes ávidos e afoitos apalpando pacientes humilhados, são coisas do século passado. Estudantes entram na faculdade querendo GENTE e lhes oferecem cadáveres, lâminas, microscópios, líquidos e secreções corporais, chapas de RX, além de professores intermediando o contato com os pacientes. Existem muitas técnicas de ensino novas no pedaço, como por exemplo: a antecipação de contato com pacientes citada acima; a não separação entre ciclo básico e profissional; o ensino integrado em blocos e não em tecidos e segmentos corporais; o foco em solução de problemas e não em patologias; as práticas inter e transdisciplinares, além de interprofissionais; a inclusão de diferentes profissionais n ensino; o uso de atores em simulações, são algumas das inovações que estão no cenário. Às vezes, nem tão novas assim, pois algumas já vêm sendo desenvolvidas em algumas partes do mundo civilizado há mais de 40 anos. A roda já não precisa ser inventada, portanto. Há exemplos de uma nova pedagogia abundando pelos quatro cantos do mundo e mesmo no Brasil.
INCLUSÃO DE DETERMINANTES SOCIAIS O modo tradicional de ensinar medicina, fixado desde a antiguidade e reforçado pela revolução dita “científica” do século 19 considera a origem das doenças simplesmente como resultado de um embate entre agentes patológicos diversos, sejam bactérias, vírus, parasitas ou mesmo genes alterados ou traumatismos e o corpo humano, até então sadio. Além disso, uma concepção reducionista e mecanicista que tenta comparar o corpo humano a uma máquina. Mas tal correlação é simplista demais. Os seres humanos sofrem, de fato, todas essas interações, mas fatores consideráveis do mundo que os rodeia podem ter papel mais importante ainda, como as relações sociais, os hábitos, os modos de vida, o próprio acesso, maior ou menor, aos serviços de saúde e sua eficácia. A essência da dualidade entre corpo e mente começo a ser explorada e expandida há mais de um século, com as ideias sobre o comportamento humano desenvolvidas por Jung, Freud e tantos outros estudiosos, que todavia ainda não estão de todo incorporadas ao conhecimento médico corrente. De acordo com a OMS, os determinantes sociais da saúde correspondem às condições em que uma pessoa vive e trabalha, ou seja, os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e fatores de risco, entre os quais moradia, alimentação, escolaridade, renda e emprego. Sobre isso há diferentes abordagens possíveis, com variações na compreensão dos mecanismos que acarretam em iniquidades de saúde, o que faz com que tais determinantes não podem ser avaliados somente pelas doenças geradas, ao influenciar também as variadas dimensões do processo de saúde das populações, seja do ponto de vista do indivíduo como da coletividade. Isso faz com que o ensino médico deva ter seu escopo ampliado a outras profissões e saberes, com abordagens adequadas, em tudo diferentes do limitado e limitante raciocínio biológico e clínico habitual.
AMPLIAÇÃO DE CENÁRIOS DE ENSINO E PRÁTICAS O ensino da medicina se dá tradicionalmente em três tipos de ambiente: laboratórios, ambulatórios e hospitais. Na fase clínica o ambiente hospitalar geralmente é o que domina o cenário. Na atual expansão que se verifica no Brasil, embora as três modalidades ainda prevaleçam, é questionável que elas sejam oferecidas em proporções e qualidade adequadas. Há inovações pedagógicas com relação a isso, já testadas em várias partes do mundo. Primeiro, a laboratório e a clínica não precisam estar dissociados: as propostas de ensino mediante blocos ou com base em problemas (PBL) podem fazer coalescer estes territórios, superando a tradição de separação temporal e instrumental que acabou sendo consagrada na formação medica, mesmo depois das reformas conduzidas nos EUA por Flexner e a Fundação Carnegie. A concentração hospitalar também precisa ser revista, já que o cotidiano da profissão, ainda mais dentro de uma visão preferencialmente mais generalista, se vincula também a outros focos de assistência. Tornam-se fundamentais, assim, mudanças no sentido de que grande parte das atividades de ensino se concentrem nas práticas ambulatoriais, principalmente na atenção primária ou básica à saúde, o que também é um espaço ainda pouco valorizado na maioria dos cursos de medicina. Mas além dos ambulatórios clássicos, mesmo aqueles situados nas comunidades e não diretamente no terreno dos hospitais de clínicas (outro viés presente na formação médica habitual), é preciso atentar para outras possibilidades de cenários de práticas. Por exemplo, os domicílios, as creches, as escolas, as instituições de proteção social, os consultórios de rua, além de outros. Mas isso não deveria ter um caráter de visita apenas esporádica de estudantes, sem compromisso maior ou em modo passivo de interação. Ao contrário, deve fazer parte de programas bem estruturados, com assistência docente (não apenas de docentes médicos, diga-se de passagem), além de compulsoriedade e responsabilidades definidas, para docentes, discentes e membros do serviço.
INTERPROFISSIONALIDADE As dificuldades de interação entre os diversos profissionais da área da saúde são notórias, aí entrando questões de poder, de linguagem, de domínio técnico. Quando eu (Flavio) era docente da UnB muitas vezes pedia aos alunos das várias profissões de saúde que tinham aula comigo para se apresentarem. Aí era possível observar que formavam porções imiscíveis de (futuro(a)s) médico(a)s, enfermeiro(a)s, dentistas, farmacêutico(a)s, etc. E era assim fora da sala de aula também: cada grupo em canto, corredor, enfermaria, professor(a) totalmente separados entre si (e do mundo). Moral da história: perde-se um tempo precioso na graduação sem de alguma forma tentar uma aproximação interativa que teria importância ao longo de toda vida profissional. Grande parte das disciplinas do ciclo básico e muitas também do ciclo profissional poderiam ser ministradas sob a forma de aulas conjuntas, tanto em grandes sessões para discussão de casos como em grupos de trabalho e mesmo seminários específicos. Não conheço nenhum lugar onde isso é feito. A noção de enfermeira(o)s como agentes “para” médicos, em uma acepção que vem de “paralelismo”, deveria ser substituída pela de trabalho complementar ou conjunto, e até mesmo liderança daqueles em determinadas situações. Penso que é perfeitamente possível fazer isso acontecer, é claro que mediante planejamento pedagógico adequado, além de vontade em fazer e romper barreiras. Não seria o caso de se fazer mundo começar a girar de novo, ressuscitar Claude Bernard ou Florence Nightingale, por exemplo…
RACIOCÍNIO EPIDEMIOLÓGICO Epidemiologia significa ver e entender as doenças no conjunto na população, não apenas em termos individuais, que é uma prerrogativa da Clínica. A Epidemiologia moderna de há muito transcendeu seus conceitos históricos, de prevalência e incidência, letalidade e mortalidade, por exemplo, para adentrar em novos campos como: fatores de risco, carga de doenças, anos perdidos por incapacidade, mortes evitáveis por fatores específicos, internações sensíveis a condições determinadas, ajustes estatísticos por sexo, idade, geografia – além de muitos outros. A formação médica não precisa formar epidemiologistas verdadeiros, mas deve se preocupar em fornecer aos futuros profissionais uma visão EPI, ou seja, de conjunto, ou de base populacional sobre os fatores que levam os indivíduos e as populações respectivas a adoecerem, longe, entretanto, de algum enfoque teorizante, mas acima de tudo vinculada aos aspectos clínicos. Exemplificando, de maneira singela: não bastaria ao Doutor “X” ter consciência que seus dez, vinte (ou quantos sejam) pacientes hipertensos estejam todos bem tratados. Ele precisa conhecer também a realidade mais abrangente de sua área de atuação, na qual, digamos, existiria um número bem maior de pacientes, de acordo com a estimativa epidemiológica. Os médicos e as equipes de saúde devem estar preocupados, enfim, em não só tratar adequadamente, do ponto de vista técnico e humano aqueles “n” pacientes que lá estão por demanda espontânea, mas também desenvolver esforços para alcançar números cada vez maiores em relação à incidência estimada. Enfim, além dos termômetros, aparelhos de pressão e outros instrumentos, é preciso incorporar aos arsenais médicos os mapas físicos e on-line e os dados estatísticos da sua área de atuação, além das calculadoras e dos aplicativos de geoprocessamento. São os novos tempos, nos quais não há mais lugar apenas para “práticas atrás do balcão”.
TECNOLOGIAS Quando se fala de tecnologia, isso implica não só os artefatos ou as drogas que a indústria lança a cada dia, seja para minorar o sofrimento das pessoas, ou para incrementar seus lucros. Neste aspecto, a formação médica deve se concentrar em apurar o senso crítico dos estudantes e também de ajudar os futuros doutores a não se converterem em uma espécie engravatada de balconistas de farmácia e peça importante dos departamentos marketing da big-farma. É preciso ir além. Questão adicional e muito atual, por exemplo, é a das tecnologias de comunicação e informação, que exercem também ações “de dois gumes” no cenário, seja para facilitar o acesso à informação aos pacientes e aos próprios médicos, seja para difundir mitos, falsidades e meias verdades. Aqui volta a questão de se trabalhar com um indispensável fomento ao senso crítico na formação. Aspecto que adquiriu especial relevância nessa discussão é a da telemedicina, sobre a qual não deve ser por acaso que os conselhos e outras entidades médicas, do alto de seu conservadorismo, tenham relutado e ainda relutam em aceitar. Mas já não é possível pensar no futuro sem elas. O colóquio singular da relação entre médico e paciente continua sendo fundamental, mas as ferramentas de interação remota hoje disponíveis, se contornam, por um lado, a existência de um contato próximo, por outro abrem novas possibilidades de ampliação do acesso, democratizando a relação dos serviços de saúde com seus usuários. É preciso lembrar, ainda, que os futuros médicos terão muitas novas oportunidades de se informarem, não mais apenas nos livros e revistas tradicionais. Mas aos pacientes também estará sendo dada tal oportunidade e os médicos deverão ser preparados para travar de diálogos produtivos e respeitosos com eles, ajudando-os a compreender e afastar os aspectos negativos da divulgação. Isso inclui também a necessidade de acolher as informações que os clientes certamente serão capazes de aportar ao cenário do tal colóquio singular. Em resumo, seria essencial que em diversas disciplinas do currículo médico houvesse maior ênfase, por exemplo, na avaliação da eficácia das tecnologias médicas, no fortalecimento da relação médico paciente, na promoção da informação aos pacientes para torná-los mais participativos, além da utilização mais eficaz e consciente de mecanismos de autonomia dos pacientes. Isso é o que o futuro próximo certamente imporá à profissão – se é que já não impõe – e tentar fugir disso significará marginalização, tanto do ponto de vista técnico como social.
CAPACITAÇÃO DOCENTE Interprofissionalidade, visão epidemiológica e sistêmica, pedagogias inovadoras, ampliação de cenários etc. Tudo isso é essencial na formação médica e aqueles que ainda não se deram conta disso deveriam se atualizar, com urgência. Aliás, o problema está exatamente aí: muitos docentes das escolas médicas atuais – se não a maioria – foram moldados no modo antigo de formação, que remonta a pelo menos um século e meio de história. Mas os tempos agora são outros e é preciso que essa gente seja atualizada (na melhor das hipóteses) ou, com toda certeza, moldada na compreensão do conjunto de inovações que o ensino médico qualificado atual carrega. A explosão das escolas médicas verificada no país nos últimos dez ou quinze anos com certeza não se ateve a tal preocupação. Até aí, seria normal, mas o que se vê é pouca ou nenhuma preocupação com tal questão. Quando se cria uma nova faculdade de medicina nos rincões do Brasil, a preocupação principal é a presença de médicos e de hospitais no cenário, além de clientes que passam pagar as mensalidades, é claro. Mas isso não é o bastante. A presença de médicos locais, mesmo que bem-sucedidos, além de alguma infraestrutura sanitária, por si só não constituem fatores que garantam qualidade ao ensino da medicina. Seria mais ou menos a mesma coisa que alguém adquirir um telefone móvel de última geração e instalá-lo em algum lugar onde não haja sinal. Todo o investimento estará perdido. Ou melhor, no caso da medicina, esses cursos improvisados estarão servindo tão somente para que seus egressos peguem logo o diploma que lhes é oferecido para finalmente irem aprender medicina verdadeira em outra parte, muitas vezes às custas de incautos pacientes. Capacitação docente já! E que ela leve em conta minimamente os diversos aspectos apontados nessas despretensiosas anotações.
IMERSÃO NO SUS REAL O verdadeiro SUS não pode estar presente apenas de forma superficial e remota nas aulas em alguma disciplina ou estágio. Ele pulsa nas unidades básicas de atenção primaria, nos ambulatórios de especialidades, nos setores de medicina do trabalho, na vigilância sanitária, nas emergências, nas UPA e hospitais, além de outros locais, variados e inúmeros, por sinal. Como desdobramentos, isso atingiria também a necessária mudança da lógica dos binômios consagrados pelo pensamento tradicional em saúde, como aqueles que dicotomizam saúde e doença, corpo e mente, submissão versus pró-atividade individual e comunitária. A utilização de tais espaços por parte das escolas de medicina é de baixa intensidade e frequência, além de mal programada. É claro que ao lado da falta decisão, no caso das escolas, são escassos também os incentivos, em relação ao outro lado. Além disso, alunos de ciências da saúde muitas vezes são tratados como um estorvo dentro dos serviços de saúde e não há dúvida que sua presença mal planejada e mal supervisionada pode trazer reais transtornos ao funcionamento dos mesmos. Além disso, a delegação pura e simples de tarefas docentes ao pessoal dos serviços, já por natureza sobrecarregado, merece aprofundamento, tanto em termos éticos como trabalhistas. Cumpre ainda, dentro do espírito epidemiológico citado acima, incluir na formação médica algum tipo de contato com os espaços de gestão do SUS, por exemplo, nas instâncias de regulação, na vigilância em saúde, controle de agravos, zoonoses etc. Sem esquecer que os hospitais universitários costumam se colocar (ou serem tratados) como unidades em paralelo com o SUS real, em relação às quais a pergunta “se forem fechados provocarão algum impacto no sistema?” talvez seja respondida de forma negativa. Como diretriz fundamental de tal imersão deve ser lembrado que é fundamental fazer os alunos de medicina não só conhecerem o SUS de forma adequada, como respeitá-lo em sua dinâmica e importância social, como uma solução que ainda mostra problemas (a serem resolvidos) e não como um problema sem solução. Pressuposto a ser considerado é a imagem que os estudantes (e os próprios docentes, muitas vezes) trazem sobre o SUS, como um sistema de saúde pobre, de escassa tecnologia e precário, ao qual, por assim dizer, estão “condenados” os mais pobres. O contrário do SUS não é nenhuma terra da promissão financiada a pré-pagamentos, mas sim uma autêntica barbárie sanitária.
ENFRENTAMENTO DE UM PANORAMA MUTANTE Tudo passa, nada permanece, como já diziam os Gregos antigos. No campo da saúde, seja em relação às tecnologias clínicas ou de gestão, para não falar dos aspectos culturais, isso é regra geral e inescapável. Assim, não basta preparar profissionais apenas na base de acumulação de conhecimentos e saberes, como quem dá sucessivas demãos de pintura em uma parede. Ensinar medicina e ciências da saúde (e muitas outras) é muito mais do que isso, envolvendo o desenvolvimento de espírito crítico, a capacidade de perscrutar permanentemente a realidade e assim fazer escolhas. Mais importante do que colecionar livros e assinar periódicos técnicos, o que realmente importa no panorama atual é saber acompanhar e selecionar, de forma crítica e em tempo real, os fluxos acelerados de descobertas e conhecimentos que surgem a cada momento, muitos deles caducando em um tempo seguinte. Bons alunos e bons profissionais deixam de ser aqueles que apenas acumulam saber, mas sim aqueles capazes de transitar com agilidade e criticismo nos caminhos que se abrem a todo momento. Faz grande diferença, também, o exercício da criatividade; a observação criteriosa da realidade através de uma mente aberta e curiosa; a busca e o aproveitamento da intuição; a real e sincera sintonia com o sofrimento das pessoas; a compreensão filosófica da condição humana, além de uma certa inquietação intelectual, ou seja, uma mente que se revela insatisfeita com a realidade tal e qual ela se apresenta e insiste em despertar mudanças, fatores para os quais também é possível oferecer apoio e treinamento.
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Sobre inovações curriculares em Medicina
Artigo da professora Lucia Bulcão, da UnigranRio – ver link abaixo – se detém sobre o mesmo assunto deste post, com grande concordância em relação às ideias que defendo. Vai uma síntese a seguir.
Inovações? Nem tanto. Isso já é falado há décadas, porém é uma agenda que não foi cumprida satisfatoriamente, consistindo em mais teoria do que propriamente prática. A relação com os órgãos de gestão da saúde precisa ser construída, para além do discurso formal. Compartilhamento de responsabilidades é fundamental, mas deve respeitar diretrizes, normas e rotinas dos serviços, ou seja, as orientações pertinentes ao espaço compartilhado. Torna-se essencial incorporar aos currículos a presença dos estudantes e professores em diferentes cenários do que o hospitalar, de forma articulada com a rede pública de serviços de saúde e mesmo comunidades, sendo uma questão de “sobrevivência institucional”. As relações intersubjetivas (entre os diversos agentes, sejam alunos, professores, profissionais de saúde e usuários) devem ser consideradas, em relação à diversidade de comportamentos, crenças e culturas individuais, coletivas e institucionais, tomando-se premente a inserção destas questões no currículo médico, com a necessária construção de relações baseadas numa ética que considere diferenças sociais, culturais e comportamentais entre os atores envolvidos na relação docente-estudante- outros profissionais de saúde-paciente. Cabe trabalhar a questão da resistência, por exemplo, em relação às atividades extramuros, que toca o cerne do sistema de valores da profissão médica, particularmente nas propostas de deslocamento do eixo hospital/atenção individual/ especialização, na medida que atingem o status profissional e a representação perante si e a sociedade, sendo consideradas menos prestigiosas. Atividades extramuros, tanto na comunidade como na rede de saúde, devem ser inseridas desde os períodos iniciais, de forma a contestar certos valores tradicionais próprios da profissão médica – os quais acirram resistências por parte dos estudantes e que são adquiridos no decorrer do curso. É preciso também refutar a falácia da hegemonia do modelo biomédico e a visão anátomo-fisio-patológica do processo saúde-doença, substituindo e o superando através do desenvolvimento de ações do âmbito da promoção da saúde e prevenção de doenças. Devem ser valorizados os projetos já existentes de extensão universitária em diferentes cenários para atuação dos estudantes, o que muitas vezes faz parte do desejo dos mesmos. Deve ser dada atenção também para o chamado currículo paralelo que faz parte da vida estudantil real, antepondo-se a um currículo oficial único e homogêneo, porém nem sempre satisfatório em atender às especificidades e anseios dos estudantes; a partir de tal compreensão, as escolas médicas poderiam melhor explorar espaços que ofereçam aos estudantes oportunidades de estarem atuando em atividades práticas, extramuros, mediante supervisão adequada e programação definida.
Leia um resumo do texto acima ou acesse o link para o mesmo aqui. https://www.scielo.br/j/rbem/a/8dzVwWcVzDwmZw89z4KDggz/?lang=pt#
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A formação médica e seus enormes desafios (por Henriqueta Camarotti)
Temos que ser bem enfáticos, realmente, em relação à necessidade de mudanças da atenção à saúde, mudando o foco de ser apenas “sobre” as pessoas para um maior reforço ao autocuidado – não qualquer um, mas essencialmente bem-informado. Isso, é claro, implica em transformação substancial e real das concepções tradicionais sobre o processo saúde-doença.
Tomemos, por exemplo, o quadro sanitário da “modernidade”, com as tendências familiares ou genéticas de hipertensão, obesidade, diabetes, frente às quais a postura e os cuidados pessoais e alimentares são fundamentais para mudar o rumo das condições de saúde individuais e da comunidade. Definitivamente isso implica em mudança radical de paradigma e em tal quesito tanto os estudantes de medicina como os médicos em geral têm um conceito introjetado de que os pacientes são agentes passivos, os quais, de forma independente de sua participação nas questões preventivas, não podem interferir sobre o aparecimento ou a evolução de suas doenças.
E indago: por que seria tão difícil mudar comportamentos, seja de um grupo social ou de pessoas? Me lembro aqui de uma conversa recente com Luiz Carlos Prata, um médico e ex-Secretário de Saúde de uma cidade de cerca de 50 mil habitantes (Manhuaçu-MG). A população de tal cidade, ameaçada pela dengue, não conseguia reconhecer e aceitar as práticas essenciais para impedir a multiplicação do mosquito. Seria só por causa da pobreza? Ou mais do que isso, um problema do conjunto da sociedade, inclusive dos médicos, que não acreditavam verdadeiramente na prevenção de doenças e nas práticas de promoção de saúde? Luiz não teve dúvidas, atacou o problema por todos os lados. Convocou a população através de uma campanha de esclarecimento maciço, mas foi também atrás de cada um dos outros atores sociais influentes na cidade, ou seja, médicos, promotores, policiais, juízes, dirigentes comerciais e de entidades sociais, envolvendo e responsabilizando todos na luta contra a doença, que teve como ponto de partida uma ampla coleta de lixo e detritos no ribeirão que banha a cidade. E a partir daí a história da dengue foi outra naquela cidade.
Pego outro exemplo: por que seria que os pediatras não investem na orientação alimentar saudável das crianças que atendem, para reduzir as inflamações intestinais, as diarreias, bronquites de repetição e as alergias? Será que eles realmente não “acreditam” nisso ou simplesmente se recusam a mudar o paradigma de sua prática? Será que os médicos não se sentiriam parte da promoção de hábitos saudáveis, preferindo se concentrar em passar antibióticos e paliativos, sem entrar fundo na causalidade?
Isso tem a ver com o ensino médico, sem dúvida, que deveria ter resposta para a seguinte pergunta: como mudar verdadeiramente tais visões omissas ou preconceituosas dos futuros médicos?
Penso que outro problema fundamental da formação médica, que tem consequências importantes no processo de atenção à saúde é a baixa capacidade de escuta, em relação aos pacientes, à sociedade, aos outros profissionais. Neste aspecto, pude ajudar a disseminar com a tecnologia da Terapia Comunitária Integrativa (TCI), com suas rodas ou grupos de escuta, que representam meios eficientes de abordagem comunitária, capaz de desenvolver nas pessoas sentimentos de fazerem parte ativa em um processo de superação de dores, angústias e carências diversas. Acredito que uma coisa assim teria também implicações na relação médico-paciente, tornando estes últimos mais bem informados e participativos, com utilização mais eficaz e consciente de mecanismos de ajuda mútua e autocura. Grupos de fala, de escuta e de construção de redes solidárias, de trocas e ajuda mútua, no meu entendimento, fazem parte do que o futuro próximo imporá à profissão. Em suma, trata-se de promover grupos de diálogo e reflexões voltados para o autoconhecimento e crescimento, seja para pacientes ou profissionais do cuidado, de forma a enfatizar o trabalho em equipe multi e transdisciplinar, investindo no respeito interprofissional, nas práticas horizontalizadas e complementares entre as diversas profissões da saúde.
Há mais questões que não querem calar, por exemplo: será que o estudante de medicina de fato amadurece como pessoa e em termos de visão de mundo ao longo dos seis anos de curso? Será que este conseguiria perceber além do seu umbigo, mesmo tendo participado de tantas situações críticas nos atendimentos? Ele seria capaz de perceber o que significam os contextos de sofrimento trazidos pelos pacientes? Por exemplo, no caso de uma criança que chega ao setor de queimados por ter ficado em casa sendo “cuidada” por irmão de seis anos, será que a equipe discutiria sobre as causas que subjazem no sofrimento das pessoas que acorrem aos serviços?
Existe, assim uma Arte de Cuidar, que a meu ver não está inserida como tema em nenhum momento na formação do médico. Haveria muitas formas de trabalhar isso, não necessariamente como uma disciplina isolada, mas como conteúdos “transversais” que ao longo de todo o processo de formação, como atividades complementares ou inseridas diretamente nas disciplinas curriculares.
Em suma, penso que deveria haver mecanismos para transformar os futuros médicos em pessoas mais humanizadas, na mais ampla acepção desta palavra.
Finalizando, um tema que me é particularmente caro é o das residências multiprofissionais, tendo eu coordenado um projeto como este na SES-DF há alguns anos atrás. Isso permitiria diluir um pouco o “saber” e o “poder” dos médicos sobre as decisões e encaminhamentos associados ao cuidado à saúde, incluindo no processo de atenção não só médicos e enfermeiros, mas também assistentes sociais, psicólogos, terapeutas ocupacionais e outros profissionais, através de uma parceria verdadeira e horizontalizada.
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Governo conservador emana decreto que ameaça o sistema público de saúde na Itália
De nosso amigo Renato Tasca recebemos o seguinte alerta sobre mudanças (para pior…) no sistema de saúde italiano (o qual, aliás, é uma das inspirações do nosso SUS).
O governo conservador da Itália deu luz verde ao Decreto “autonomia diferenciada”. Seus efeitos serão bom para os cidadãos do centro-norte, melhor ainda para os ricos, enquanto as populações das regiões do sul do país, mais pobres e atrasadas, serão diretamente afetados com limitações de acesso e menor qualidade dos serviços públicos de saúde. Um relatório da Fundação Gimbe, uma das mais prestigiadas think-tank da Itália na área da saúde pública, mostra que a aplicação desta medida ampliará as brechas entre as regiões, fazendo com que aquelas mais pobres e menos organizadas terão cada vez menos recursos para requalificar seus serviços, se tornando “clientes” dos serviços produzidos pelas ricas regiões do norte. Nas regiões mais penalizadas, para a realização de muitos procedimentos mediante o sistema público, as pessoas terão que se deslocar para outra região. De acordo ao decreto, as regiões poderão gerir de forma independente os salários dos médicos, os contratos de trabalho do pessoal de saúde, o acesso às escolas especializadas… Logo, as regiões mais ricas vão atrair profissionais de saúde de outras regiões, esvaziando os hospitais e as estruturas públicas de saúde do Centro-Sul. E poderão meter boca nos registros de medicamentos, remover as restrições de gastos, em suma, fazer o que quiser, transformando o Sistema Nacional de Saúde em 21 pequenos estados autônomos, cancelando todos os mecanismos de solidariedade construídos nos quarenta anos do sistema público de saúde italiano, e que tampouco foram suficientes para reduzir as diferenças regionais. Não só isso: o Decreto proporciona autonomia para criação e gestão de fundos de saúde suplementar, privilegiando aqueles que podem pagar um plano de saúde, empurrando, por sua vez, a privatização dos serviços. Tudo dedutíveis de impostos, resultando em uma renda menor para a tributação geral. Mais assistência privada significa menos dinheiro para a assistência pública. Então, na Itália vamos rumo um sistema parecido com o dos Estados Unidos, que é o mais ineficiente do mundo. O relatório do Gimbe sobre “regionalismo diferenciado” pode ser solicitado no link: https://lnkd.in/dXcx73DX

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.