José C. Martelli*

O Papa não hesita em afirmar que a dominação imposta pelo dinheiro estabelece uma “ditadura sutil”, um “elo invisível que une cada uma das exclusões”. Francisco não usa meias palavras ao se referir ao “poder anônimo do ídolo dinheiro” ou à “tirania do ídolo dinheiro”. É o poder do dinheiro o elemento ordenador e, ao mesmo tempo, desagregador da vida social. Se o dinheiro é o “elo invisível” que comanda as exclusões e a predação da natureza, a “destruição” e domesticação das mentes fica a cargo dos meios de comunicação, também eles submetidos à lógica monetária: “a concentração monopolista dos meios de comunicação social” ao “impor padrões alienantes de consumo e certa uniformidade cultural” esvazia a capacidade crítica dos homens.
José C. Martelli*

Segundo o romancista e jornalista Leonardo Paduro, “fazer hoje um jornalismo honesto, comprometido com a verdade e a sociedade, é uma postura que está se tornando cada vez menos comum ao redor do mundo3.” Paduro refere-se aos “poderes visíveis e invisíveis, mas sempre castradores” que convertem o jornalismo em “um meio a mais para exercer e validar o domínio dos verdadeiramente poderosos: os políticos e os donos do dinheiro em todas as partes do mundo.” É impossível negar esta constatação: a “concentração monopolista dos meios de comunicação”, a que faz referência o Papa, é parte decisiva e integrante se um sistema de dominação em cuja cúspide se encontram – em derradeiras contas – os “donos do dinheiro”. O espaço para o exercício do “jornalismo honesto” é cada vez mais restrito.
As consequências dessa dominação não são triviais. A “uniformidade cultural” mencionada por Francisco, significa, na verdade, o esmagamento da razão. Ao definir os conteúdos (temas, problemas, questões) e comportamentos, os meios de comunicação representam uma poderosíssima ferramenta de conformação (e deformação) dos espíritos. A reiteração continuada de proposições simplistas e banais transforma os homens em autômatos idiotizados repetidores de clichês baratos. A visão que os homens têm da economia (a exaltação da austeridade, por exemplo), da política (a demonização da esquerda, por exemplo), das relações internacionais (a condenação sumária das ações de Putin, por exemplo), da justiça (o desejo irracional de punição e vingança, por exemplo) é – entre tantas dimensões – fortemente condicionada pela estratégia dos grandes meios de comunicação. Aqui, também, se trata de uma “ditadura sutil” já que os conteúdos são veiculados sob o manto de uma suposta neutralidade e de um duvidoso “dever de informar”.
Hoje, o “bom jornalista”, assim como o “bom político”, “o bom economista”, ou o “bom artista” não é aquele que é fiel a seus princípios e a seu talento, mas aquele que se ajusta docilmente às diretrizes previamente estabelecidas pela direção dos grandes meios de comunicação.
Não, o Papa não contrário à liberdade de imprensa. O Papa é contrário, sim, à “concentração monopolista dos meios de comunicação social”.
Será o Papa um inimigo da austeridade?
O “colonialismo ideológico” imposto pelos meios de comunicação proclama, entre tantas banalidades, as virtudes da “austeridade”. Já para o Papa, não resta dúvida que “a imposição de medidas de austeridade (…) sempre aperta o cinto dos trabalhadores e dos pobres”.
Preliminarmente, convém esclarecer alguns pontos:
A exaltação da “austeridade” tem raiz na recorrente confusão entre a lógica da economia doméstica e a lógica da economia capitalista. Uma família, desde logo, não deve gastar mais do que ganha, caso contrário as consequências certamente serão desastrosas. Já no que diz respeito ao conjunto da economia, quão maior for o gasto, maior será a renda: quanto mais se investir e se consumir, maior será a renda. Assim, enquanto para as famílias parte-se da renda para se determinar o gasto, para o conjunto da economia parte-se do gasto para se determinar a renda. O economista polonês Michal Kalecki e Keynes sempre insistiram neste ponto: na economia capitalista são as decisões de gasto que comandam a formação da renda, e não o contrário.
Em relação às contas públicas, o comportamento da receita é eminentemente pró-cíclico: quando se expande a renda da comunidade também cresce a receita pública. Inversamente, quando cai a renda comunidade cai também a receita pública. É por essa razão que nas conjunturas de recessão o déficit público tende a aumentar: não só as receitas deixam de crescer como, ademais, as despesas tendem a se elevar.
Pois bem, propor a “austeridade” em uma conjuntura recessiva é um suicídio: cortar os gastos públicos em um contexto de queda do nível de atividades significa apenas dar mais alento à recessão. O exemplo clássico é o de Brüning, na Alemanha (março de 1930 a maio de 1932), que através de uma política draconiana de cortes, transformou uma recessão preocupante em uma depressão selvagem, o que facilitou a ascensão dos nazistas ao poder. O economista sueco Gunnar Myrdal e Keynes sugeriram – corretamente – que nas conjunturas de alta os governos deveriam buscar o superávit em suas contas (de modo a moderar o impacto da expansão), ao passo que nas conjunturas de baixa deveriam permitir e até induzir o déficit público (de modo a moderar o impacto da recessão). Em poucas palavras, ao contrário do que ocorre com as famílias, na recessão os governos devem ampliar, e não cortar os gastos.
A banalidade difundida pelos meios de comunicação insiste em associar o gasto público ao desperdício, ao nepotismo e à corrupção. É verdade: existe o desperdício, existe o nepotismo, existe a corrupção, e esses males devem ser sistematicamente combatidos. Esses males não são exclusivos do setor público (eles também existem no setor privado) e não é em virtude de sua existência que se deve advogar a permanente redução do dispêndio público. Como melhorar a educação, a saúde e a segurança, como proteger o meio ambiente, como ampliar a infraestrutura, como ampliar a oferta de habitações populares sem, ao mesmo tempo aumentar o gasto público? A cruzada conservadora contra o gasto público simplesmente desconsidera estas questões. A qualidade do gasto público deve ser permanentemente aprimorada através da atualização e modernização dos mecanismos de gestão e controle de produtividade. Esta necessidade em nada se confunde com a apologia simplista dos cortes indiscriminados.
Na verdade, a discussão sobre o superávit primário tem como suposto a necessidade de gerar recursos para o pagamento dos encargos da dívida pública. A despesa pública se decompõe, grosso modo, em quatro grandes itens: pessoal, custeio, investimento e dívida. As propostas de “austeridade” sempre visam a contenção ou redução dos três primeiros itens em favor do quarto: os gastos com pessoal, custeio e investimento devem ser limitados, de modo a liberar recursos para o pagamento dos encargos da dívida. Estes últimos serão tão maiores quão maior for a taxa de juros. É um esforço inglório – e injusto! – buscar conter os “gastos primários” (pessoal, custeio e investimento) quando, ao mesmo tempo, se elevam as taxas de juros. A correta gestão dos orçamentos públicos pressupõe a busca da eficácia na arrecadação e na administração da despesa, o que não significa a adesão irrefletida aos programas de “austeridade”.
O Papa é, sim, contrário à “austeridade” enquanto norma cega da política fiscal: são os “trabalhadores e os pobres” as suas principais vítimas!

*Advogado e professor – Espírito Santo do Pinhal – SP