Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Escutando e lendo notícias sobre o andamento da vacinação anti-covid no DF percebo algo que me desafia a vontade de especular. Há lugares em que a vacinação ocorre sem maiores transtornos, com esperas de meia hora ou menos e outros em que o atraso é de horas, com filas atravessando quadras inteiras e até mesmo movimentos de revolta por parte dos que esperam sua vez, além de informação zero. Como é que pode? De um lado, há unidades que organizam até brincadeiras e música para acolher os vacinantes; de outro, há aqueles que até nove ou dez horas da manhã ainda não abriram as portas, à espera sabe-se lá de que. Não estamos, afinal, na mesma cidade, teoricamente submetidos às mesmas normas, com o mesmo órgão gestor a coordenar os trabalhos, distribuir as vacinas, estabelecer regras relativas a horários e compromissos de servidores e gerentes? Até parece que não é bem assim, dado o mosaico de situações que aparecem no noticiário, muitas delas totalmente negativas. Isso me remete a reflexões antigas. Vamos a elas…
Na minha infância em Belo Horizonte, nos anos 1950, tive a chance de estudar em uma daquelas escolas-modelo. Pública, como convinha e ainda convém. Ali, cantávamos o Hino Nacional uma vez por semana, nossos uniformes eram fiscalizados até quanto à cor das meias (obrigatoriamente brancas!) e o polimento dos sapatos Vulcabrás. Qualquer deslize com os professores e colegas fazia com que fôssemos remetidos, de imediato, para a temida antessala de Dona Cecília, a diretora. Chamava-se o estabelecimento Grupo Escolar Francisco Salles e creio que ele ainda exista, na rua Guajajaras, no Barro Preto. Alguns hoje a desdenhariam como meramente uma escola autoritária. Mas se ali tudo funcionava com ordem e progresso, ao lado, morava o pecado… Com efeito, vizinha aos nossos muros havia outra escola estadual, a Caetano Azeredo, na qual as coisas pareciam correr no sentido inverso, fosse na disciplina dos alunos, no estado de seus uniformes, na frouxidão das normas vigentes. Só para comparar: os alunos do Chico Salles saíam da aula ordeiramente pela rua Guajajaras a fora; os do Caetano pareciam uma horda de hunos em disparada.
Desde então me pergunto: o que faz as coisas serem assim tão diferentes em duas instituições públicas, situadas no mesmo bairro, destinadas à mesma classe média, com professores percebendo os mesmos salários? Isso me parece ser bem o caso das discrepâncias de ritmo e qualidade da vacinação que ora transcorre no DF. No caso de minha infância, o segredo pareia estar na figura enérgica da diretora, Dona Cecília, mas certamente haveria mais ingredientes na receita.
Observando, hoje, a realidade dos serviços de saúde – e certamente da educação e de outras áreas que são ou deveriam ser de responsabilidade pública – creio que posso acrescentar alguns elementos para dar uma resposta à indagação acima, pelo menos no sentido de indicar alguns dos componentes da boa gestão.
Para começar, a boa condução, traduzida pela presença marcante de Dona Cecília, certamente é muito importante e, entre seus atributos, podem ser arrolados capacidade de tomada de decisões, liderança, carisma. Poderíamos acrescentar também espírito empreendedor, embasamento ideológico, além de qualificação técnica e continuidade. Mas isso teria sido pouco se a nossa diretora não contasse com uma boa equipe de professoras, qualificadas não só em termos de conhecimentos, mas também de postura e, acima de tudo, adesão a uma causa. Poderia não haver militância, nos termos que a concebemos hoje, mas certamente havia sintonia com o projeto político da escola e aceitação da liderança.
Focalizando os tempos atuais e a saúde, em especial, as boas práticas sociais também devem ter um lugar de destaque, ou seja, sintonia entre as propostas de participação oficiais e as da sociedade, com associação sinérgica entre as noções de responsabilidade pública e de direitos das pessoas, bem como compromisso com os resultados concretos da ação institucional.
Tudo isso se associaria a padrões efetivamente responsáveis de atenção e de gestão, buscando a neutralização da competição e do antagonismo, bem como a superação dos preconceitos que enxergam em toda inovação um perigo que ameaçaria os direitos sociais ou ao papel do Estado, seja na educação, na saúde ou em outras ações sociais.
Há outras características de uma gestão em saúde que podem fazer com que seja chamada, sem maiores ressalvas, de boa, ou eficiente. Ela seria aberta ao desenvolvimento de inovações, seja do ponto de vista gerencial ou assistencial, diferenciando-as das meras novidades, mas tendo como diretriz norteadora a ousadia e o destemor frente às possibilidades de erro e reversão. A busca da sustentabilidade, não só em termos financeiros, de estrutura e de processos de gestão, mas também nos planos cultural, simbólico e político, resultando no necessário enraizamento das experiências no imaginário da comunidade e dos tomadores e executores de decisão, como também dos usuários.
E nunca é demais lembrar de certo efeito espelho, ou seja, a articulação e a difusão da experiência entre interlocutores externos, configurando o exercício de uma pedagogia do exemplo fundamental no processo de construção de políticas públicas.
Não sei se Dona Cecília naqueles tempos – ou o pessoal que está na chefia das Unidades de Saúde que oferecem serviços tão díspares á população do DF, hoje – estava ou estão pensando nessas coisas. Pode ser que minha diretora tenha agido apenas na base da pura intuição, ou pela bagagem que recebera de sua formação ou de herança familiar. Trago aqui informações de teorias gerenciais contemporâneas, mas são coisas sobre as quais sempre vale a pena refletir, traduzidas por uma questão simples: liderança é um ingrediente essencial da gestão de coisas e pessoas, na saúde e em qualquer outra área, seja no passado ou mesmo na atualidade, tão repleta de novidades tecnológicas. Certamente é necessário tentar compreender e valorizar isso. E que não se confunda a necessária autoridade de um líder verdadeiro, com autoritarismo de tantos bolsominions por aí. E quando falo de liderança não me refiro apenas ao Governador, ao Secretário ou algum Superintendente. Falo também de quem chefia uma unidade, ou mesmo um setor dela. Estes, de fato, podem fazer a diferença
Parece fácil? Não, não é… Isso tudo depende de muita luta, cujos ingredientes são a decisão política e o desenvolvimento da consciência de vida social, política e sanitária dos atores envolvidos. Ainda chegaremos lá… Dona Cecília, onde estiver, que nos ilumine o caminho!
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Partiu Tarcísio Meira…

Ela era um grande ator brasileiro, mas sua morte não tem nada a ver com o tema deste blog, Saúde no DF, salvo o fato de ter sido mais uma vítima do Covid. Mas de toda forma, para homenagear sua trajetória como artista, relembro aqui uma cena que assisti com a presença dele. Há uns 20 anos atrás, voltava eu de Manaus num daqueles aviões DC-10, enormes. Eis que ele entra, na classe turística mesmo, acompanhado de uma criança, provavelmente sua neta. Um “oh” geral acompanhou sua passagem pelo corredor. O lugar que lhe era destinado ficava na traseira do avião, numa poltrona central daquela terrível fileira do meio. Eu estava ali perto e vi tudo. Antes da partida, uma das comissárias foi até ele e lhe ofereceu um lugar mais à frente, talvez na primeira classe. Ele simplesmente recusou, dizendo estar bem ali mesmo. Um pequeno gesto, mas que por si só fala da grandeza de uma pessoa. Salve Tarcísio! Quantos iguais a ele no Brasil de hoje?

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.