Dr. Flávio de Andrade Goulart*
Não dá para passar batido: até ontem, dia em que se comemora a abolição (?) da escravatura no Brasil, 432.628 pessoas haviam morrido de Covid no país; só no DF, 8275. Estamos longe de ficar “libertos” de tal praga, pelo visto. A atual pandemia representa, com efeito, um desafio dramático na atualidade, criando em muitos locais uma crise ao mesmo tempo de saúde pública, econômica e política, com números espantosos de incidência e mortalidade, além de medidas impactantes sobre a vida das pessoas. Daí derivam situações expressivas e polêmicas, tais como restrições de mobilidade, consequências econômicas no desemprego ou nos gastos do setor público. Assim economias inteiras foram colocadas em verdadeiro “coma induzido”, com duras medidas de saúde pública e sistemas de saúde e estados sendo submetidos a testes severos e inéditos. Menos mal, a atual situação oferece também a chance de ser explicada dentro de diferentes territórios disciplinares, ajudando assim a compreender as atuais decisões de saúde pública, bem como as políticas globais de saúde no futuro, facultando entender melhor tanto a política como os políticos. Trabalho realizado por pesquisadores das Universidades de Michigan e Washington (EUA), além da FGV (SP) procurou identificar e explicar os fatores mais importantes na abordagem da Covid-19 entre e dentro de regiões e países, buscando abordagens multidisciplinares para aprofundar algumas ideias sobre o significado e as lições dessa doença para a política de saúde e a saúde global. E isso nos interessa de perto, seja em relação à atual situação do Brasil ou mesmo do DF. Aliás, no referido trabalho, existem menções especiais à atual situação no Brasil, nada lisonjeiras, por sinal.
Assim, com base em domínios de ciência política e de política de saúde, foram identificados quatro grandes campos nas respostas políticas ao Covid-19, ou seja: (1) Política social e econômica; (2) Tipo de regime político; (3) Perfil das instituições políticas formais; (3) Capacidade do Estado.
A política social é importante para a gestão de crises, assim como para a recuperação econômica. Medidas de saúde pública relativamente autoritárias (como distanciamento físico ou paralisações econômicas temporárias) dependem da conformidade de cada sociedade, mesmo em regimes autoritários. Tal conformidade requer boa comunicação e confiança, associadas a uma economia política que permita às pessoas ficar em casa sem morrer de fome. Assim, as políticas sociais pré-existentes país, bem como aquelas específicas para responder ao desafio da atual pandemia, definirão o grau de cumprimento das medidas de saúde pública, bem como a vida após a situação de crise.
O tipo de regime político importa, significando o conjunto básico de instituições em um determinado Estado, mais do que qualquer tipo de política, por exemplo, democracia, monarquia ou autoritarismo. O foco aqui é posto no autoritarismo comparativo, demonstrando que regimes considerados autoritários falham em manter fluxos internos e externos de informações, sendo apenas alguns adequados na execução em ações vigorosas. Assim, por exemplo, na China e na Rússia tais fluxos inibiram informações cruciais, embora a China tenha escolhido e implementado ações realmente eficazes. Nos regimes democráticos pode ser mais complicado executar medidas enérgicas apropriadas, embora possam se beneficiar de melhores fluxos de informações e de conquistar a confiança do público. Verifica-se, também, que líderes autoritários em países democráticos prejudicam o fluxo de informações e as consequentes respostas eficazes, como é o caso de Trump e Bolsonaro.
Das instituições políticas formais destacam-se o federalismo e o presidencialismo. No primeiro caso, estão governos eleitos que moldam a política, como são os casos de Argentina, Austrália, Brasil, Alemanha, Índia, Rússia, África do Sul e Estados Unidos, entre outros. Tais estados federais são freqüentemente criticados por apresentarem problemas de coordenação e mesmo de se esquivarem de suas responsabilidades, forçando os governos subnacionais a assumir papéis de liderança,como é bemo caso brasileiro. Já em relação aos partidos políticos no poder, as evidências de sua influência são menos claras, não ocorrendo um padrão claro de influência dos mesmos entre os países durante a primeira onda, embora se possa supor um desempenho ruim por parte de políticos da direita radical populista. Alguns efeitos disso se fortalecem ao longo do tempo, por exemplo, em termos de decisões claramente redistributivas na política social com reposição de renda versus o privilegiamento de interesses restritos. Em suma, partidos políticos importam cada vez mais à medida que o tempo passa e os governos tomam decisões que moldam os resultados sociais e de saúde, por exemplo, na proposição de austeridade ou no investimento social. Já no presidencialismo os países tendem a ser menos estáveis e propensos a ações autoritárias e impasses, como são claramente os casos dos Estados Unidos e do Brasil. Cita-se como exemplo a relação de Bolsonaro com o Ministério da Saúde, que foi tensa e politicamente vertiginosa, com as diversas trocas de titulares e a nomeação de um ministro por um militar próximo de suas preferências (“um manda outro obedece”) com a decorrente propaganda da hidroxicloroquina como ‘cura’ e manobras para reduzir a liderança de prefeitos e governadores.
A capacidade do Estado, incluindo o controle sobre os sistemas de saúde e também sobre a administração pública é importante por moldar o que os formuladores de políticas percebem como opções disponíveis. A presente pesquisa mostra que mesmo Estados de renda média e baixa, como Mongólia, Montenegro e Vietnã, implementaram respostas de saúde pública mais eficazes do que alguns países de renda mais alta. A capacidade do Estado em prestar serviços e fazer cumprir as regras é importante, mesmo que muitas vezes desafiem determinados aconselhamentos externos. Todavia, tal capacidade robusta não significa que ela será bem utilizada (são citados os casos de EUA e UK), mas sem dúvida a forte ou fraca capacidade dos estados muda substancialmente as opções de políticas disponíveis. Embora seja cedo para identificar profundamente o efeito das decisões políticas no curso da pandemia em curso, é cabível tentar entender por que os governos tomam as decisões que tomam.
E o Brasil, como fica?
Se analisarmos os quatro tópicos explicitados no presente estudo, pelo menos à primeira vista, o Brasil não deveria figurar de forma especialmente negativa na maioria deles. Nossa política social, particularmente após a Constituição de 1988, na qual está inserido o SUS, é considerada abrangente e sintonizada com os determinantes dos estados de bem-estar social mais avançados. O SUS, por sua vez, pode ser considerado verdadeiramente exemplar nestes termos. Nosso regime político é democrático, dentro das limitações que tal conceito comporta. Mas neste ponto não somos muito diferentes de outras nações, pois pelo menos temos eleições em todos os níveis e elas são periódicas; temos um Judiciário até certo ponto independente; um Legislativo eleito livremente, embora com forte influência econômica, de tendência conservadora e fisiológica, bastante operante neste sentido; uma imprensa relativamente livre com liberdade de expressão regularmente preservada, embora com ameaças recentes. Nossa capacidade estatal, pelo menos na saúde, tem sido capaz de feitos notáveis, como por exemplo a construção de um sistema unificado e de aceso universal e o controle de uma série de agravos e doenças.
Nossas instituições políticas, todavia, têm se mostrado frágeis em demasia, por termos aqui a vigência de um presidencialismo de coalisão, com todos os seus percalços. Tal regime, na definição de Sergio Abranches, implica em uma coalizão multipartidária, que aqui não é eventual, mas sim imperativa e que tem sido requisito imprescindível para a governabilidade, com alto custo político. Na prática brasileira, presidentes que minam sua base aliada e se isolam politicamente não conseguiram terminar seus mandatos, como foi o caso de Collor e de Dilma, tendo como foco de desgaste a atuação do chamado Centrão, grupo político que forma e rompe tais coalisões baseado apenas em interesses imediatos, advindo daí práticas bizarras e escândalos de corrupção. A relação de causalidade entre tais coalizões e o aumento da corrupção não seria automático, já que as mesmas poderiam ser feitas de maneira republicana, legal e transparente. Mas este certamente não é o caso brasileiro e o atual governo, particularmente diante do quadro de liquefação em que se meteu, agravado pela gravidade da pandemia de covid, não tem feito outra coisa senão avançar sobre a institucionalidade vigente e solapar as bases da democracia no país. O resultado não poderia ser outro, o estrondoso fracasso brasileiro no controle da presente pandemia e das políticas sociais em geral.
Sem dúvida, a situação atual de mortandade no Brasil não deixa de ser mais um resultado das formas pouco republicanas de ação política que vimos assistindo no país, nas quais o atual governo, acolitado por seus agentes do Centrão, têm especial responsabilidade. Sem esquecer, é claro, da psicopatia genocida, obtusa e destrutiva da qual padece o Presidente da República (e mais ainda padecemos todos nós). Isso precisa ser interrompido!
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.