Dr. Flávio de Andrade Goulart*

O político francês Georges Clemenceau teria dito, certa vez, que a guerra seria um assunto demasiadamente sério para ser entregue aos militares. Ele devia entender do assunto, pois foi membro de vários gabinetes franceses e inclusive dirigiu o país, como Primeiro Ministro, em inúmeras refregas com a arquirrival Alemanha, inclusive durante toda a Primeira Grande Guerra. Hoje, em nosso pobre país, à falta de inimigos externos que não sejam apenas fictícios, múltiplos setores da administração pública têm sido entregues a militares, desde simples tenentes até generais estrelados. Um dos apaniguados do governo, este consanguíneo, por sinal, já até declarou que com apenas “um soldado e um cabo”, montados num jipe, seria possível fechar o STF… Isso ainda não se concretizou, felizmente, mas sem dúvida há quem continue querendo algo assim, fazendo até manifestações públicas a propósito. Assim é que no Ministério (agora chamado “milistério”) da Saúde, montou-se uma verdadeira caserna, com “elementos” que receitam, formulam pareceres médicos, se arvoram de sanitaristas – só não assinam nada… Nem na ditadura militar tal coisa aconteceu. Aliás, mesmo os ministros mais xucros na ocasião, todos civis, nunca deixaram de serem assessorados por gente de gabarito, com formação sanitária inconteste. O último ministro da ditadura, Waldir Arcoverde, foi, aliás, um técnico dos mais competentes – e realizou uma boa gestão, assessorado por gente ilustrada, recrutada nas universidades e nas instituições de pesquisa. Mas vamos ao que interessa: esta decantada eficiência dos militares na gestão da coisa pública seria algo de fato comprovado empiricamente?

Tenho sérias dúvidas  quanto a isso…

Militares, mesmo na variedade “profissional”, não necessariamente “aventureiro-golpista”, são treinados dentro de uma lógica que guarda pouca semelhança com aquela necessária à gestão das demais instituições humanas, seja em períodos de paz ou de guerra.

Militares têm inimigos a combater. Quando falam em alcance de metas pensam em amontoados de corpos ou de prisioneiros. Na melhor das hipóteses, em léguas de territórios conquistados. É assim que medem o sucesso de suas ações. Uma gente que conta vítimas, não pessoas salvas.

Militares trabalham em sistemas de rígida hierarquia, em cadeias de comando que, caso contrariadas, levam o recalcitrante à “cadeia”. Não há diálogo e convencimento mútuo, mas sim obediência a ordens. Imaginem algo assim numa repartição pública civil ou numa empresa de qualquer natureza. Não daria certo, nem no Brasil nem em nenhum lugar do mundo. Ou, quem sabe, na Coreia do Norte?

(Uma história entre parênteses. Christian Barnard, o cirurgião sul africano da era do apartheid, autor do primeiro transplante cardíaco do mundo, tinha como auxiliar direto um sujeito chamado Hamilton Naki.  Este, um negro pobre e marginalizado como a maioria da população do país, tinha habilidade especial no manuseio do bisturi, das tesouras, das pinças e das agulhas de sutura. A ele o eminente cirurgião branco recorria e muito confiava, sendo comum entre eles a troca de informações, com Barnard se colocando às vezes como simples discípulo.)

Seria possível imaginar algo assim no meio militar? Um general consultando um soldado raso sobre determinado procedimento, seja na guerra ou na paz, mesmo que a expertise do subalterno em tal assunto fosse unanimemente reconhecida? Difícil, se não impossível, constatar algo assim nos quartéis. Talvez algum sargento, exímio na produção de churrascos, servindo ao general como ordenança nos finais de semana, pudesse ser ouvido – mas apenas neste assunto específico.

Militares pensam em guerra, em tropas que devem avançar contra outras tropas, em posições predefinidas ou inspiradas por manuais de estratégia geralmente concebidos no século XVIII, quando a “logística” (palavra que voltou à moda com a militarização atual da saúde no Brasil), tinha como elementos componentes os fuzis de repetição, as baionetas, os canhões móveis, os “infantes”, os cavalos e coisas deste tipo. Hoje, com a guerra tecnológica, baseada em decisões tomadas mediante algoritmos, com forte presença de computadores, drones, gadgets eletrônicos diversos e que-tais, aqueles manuais não servem para mais nada. E nas empresas e nas instituições públicas atuais as decisões são tomadas baseadas em analises estratégicas, sobre cenários movediços onde se situam e se agitam clientes, fornecedores, apoiadores, adversários, além de simples interessados, que mesmo tendo ideias divergentes não devem ser tratados como inimigos. O consenso é o que importa.

A noção de “usuário” ou “sujeito”, ou seja, aquele que tem direitos, nos termos constitucionais, não faz parte do vocabulário ou do universo militar. Isso, é claro, tem importância central na saúde. Mas no campo militar o mundo é dividido entre “nós”, os que juram à bandeira e prometem dar suas vidas à pátria (?) versus “os outros”, os “paisanos”, a quem cabe defender, mesmo que seja ao arrepio de sua vontade. Paisanos teriam o sagrado direito de serem defendidos pelos fardados, nada mais.

Endossar uma mania perpetrada pelos superiores, como é o caso da atual febre de cloroquina, mesmo que parta de tenentes fracassados na carreira militar, embora ungidos pelo uso da faixa verde-amarela que lhes dá nada mais do que o falacioso “comando supremo das Forças Armadas”, no meio militar é missão a ser cumprida, não a ser questionada. Custe o que custar! E em clima de guerra, como se instaurou no país, os resultados devem ser apresentados, nem que seja em número de mortos e feridos. Se alguma coisa der errado não seria, certamente, pela bizarrice do que foi ordenado, mas sim por alguma falha na cadeia de transmissão, para a qual se encontrará fatalmente um culpado, nem que seja no seu último elo, ou seja, o pobre e desavisado usuário, que entre outros defeitos, não há de primar pela obediência ou pelo acatamento das demandas que lhes caem “de cima” e muito mesmo reconhecer o que se intenta fazer em seu “benefício”.

Foi graças ao comando totalmente civil da Saúde que o Brasil derrotou a varíola, o sarampo, a poliomielite. Não sobrou nada para os militares em tais vitórias. Eles bem que tentaram, seja através do emprego de seus métodos e mesmo de suas forças físicas, em episódio que ficou conhecido como Revolta da Vacina, ocorrido há pouco mais de um século, marcado por violência, destruição e muitas mortes – mas não pelo controle da doença.

E na ação militar propriamente dita, nossos fardados têm sido bem sucedidos? No meu entendimento, tirando sua participação na Segunda Guerra Mundial (na qual, aliás, foram chefiados e supridos pelos americanos), o saldo é amplamente negativo. Cito como exemplos – e nem precisa mais – o massacre de Canudos e as várias quarteladas, às vezes contra inimigos construídos, como em 1935, ou mesmo contra a própria sociedade, em 1964. Ah, mas teve aquela gloriosa missão de paz no Haiti! Nem ali… O que consta é que o orgulhoso General Heleno, de pendores golpistas, teve sua retirada pedida pela própria ONU, por acrescentar à lambança local ingredientes brasileiros. É ruim, não é?

O velho Clemenceau tinha razão. Não dá para deixar em tais mãos coisas tão importantes como a saúde. Nem mesmo a prescrição da famigerada cloroquina.

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Submeti este texto ao meu eminente amigo Mauro Marcio de Oliveira, com quem tenho quase 60 anos de grande afinidade e assim foi possível construir com ele o seguinte bate-bola:

MMO: Sobre a fase atribuída a Clemenceau, há infinitas variações dessa afirmação, como ‘a economia não deveria ser assunto dos economistas’, ‘a política não deveria ser entregue aos políticos’, etc. tenho a impressão de que ela, no fundo, chama a atenção para o risco da especialização.

FG: A questão fica ainda mais complicada nesta era de redes “sociais”. A gente lê textos vulgares e primários atribuídos a Drummond, Bandeira, Borges e outros. É bom desconfiar até mesmo de algumas alocuções célebres, como: “Independência ou morte”; “Perdoai-os porque não sabem o que fazem”; ”O Estado sou eu” e “Por que não comem brioches?” De toda forma, tenho ouvido também coisas como “a saúde é assunto muito sério para ficar nas mãos dos médicos” – e não posso negar que isso tenha um fundo de verdade. Realmente, para pessoas treinadas como foco em indivíduos, doentes, hospitais, diagnóstico e terapêutica, como são os médicos, expressões como “coletivo”, “social”, “comunitário”, “saúde”, “política”, “público”, “epidemiologia”, podem não ser muito familiares e menos ainda compreendidas como estratégias de ação.

MMO: A administração castrense é uma caixinha, uma especialização. Nada me indica que sejam melhores que os civis. Eles têm êxitos extraordinários, é verdade, como a Embraer e o Ita (Aeronáutica).

FG: Sem dúvida, mas para mim são apenas as exceções que confirmam a regra. Se você um dia se deparar com os famosos “Batalhões de Engenharia” do Exército tocando obras públicas, particularmente estradas, confirmará o que eu digo. Meses e meses, verões e invernos seguidos, com um monte de gente fardada circulando em volta de máquinas, fazendo day-off nas quartas e sextas feiras….

MMO: Sobre amontoado de corpos e léguas de territórios: hoje, os militares estão na dianteira do conhecimento em alguns ramos pelo menos nos EUA com suas armas virtuais, seus sistemas de defesa com satélite, os novos materiais, etc. Ou seja, há um segmento muito tecnificado. Não podemos uniformizar nossa visão.

FG: É preciso colocar os pingos no “ii”. Os americanos não só se arvoram de gendarmes do mundo, como têm inimigos reais em todos os continentes, inclusive em sua própria casa. Têm que estar armados até na cabeceira da cama mesmo. Já o Brasil… Qual é a chance real de entrar em combate com alguém? Bem que o B. provoca a Venezuela, mas daquele mato não sairá nada. Ah, e os argentinos? Los Hermanos querem é bons negócios. Sendo assim…

MMO: Os civis desmoralizam tanto a política com a corrupção e a apropriação do público em favor do privado que ajudaram a criar/sustentar essa ‘superioridade dos militares’. Por isso, ela estaria no campo da ética: entre eles poucos são os corruptos.

FG: Aí você tocou num ponto chave. Sua afirmativa é verdadeira quanto à desmoralização da política que assistimos hoje em dia, que é fruto principalmente dos civis. Aliás, B. é um derivado direto disso, não de uma pretensa “moralização” de tal atividade. Agora, quanto à não corrupção dos militares, tenho minhas dúvidas. A era da ditadura foi pródiga em salafragens… Falam hoje muito da espoliação da Petrobrás pelo PT, mas nos idos de 64 era notória a colonização dos postos chave da empresa por coronéis que entendiam de tudo, menos de petróleo ou comércio exterior. Tinha que dar um limpa geral mesmo, mas dentro dos limites da democracia, não é?

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Meu amigo Mauro ainda me brinda com uma tréplica. Vejam a seguir.

<<Considerando que estava interagindo com um texto de blog, curto e atual, resumi minhas considerações. Mas, com suas observações, vejo que preciso voltar ao tema por ter sido mal interpretado. Vamos lá:

[1] Sobre a frase de Clemenceau. Citando falsidades atribuídas a Drummond, Bandeira e outros, você me responde colocando o foco na discussão da autoria. Eu não pensei nisso. Dei por boa a fonte. Mesmo porque isso não muda o argumento. O que fiz foi tentar interpretar o sentido da frase. A classe à qual pertence a frase vincula um TEMA ao PROFISSIONAL que cuida dele. Todas as espécies possíveis da frase (como exemplos: a POLÍTICA e os POLÍTICOS; a GUERRA e os MILITARES; a ECONOMIA e os ECONOMISTAS) fazem uso da mesma lógica construtiva. Nesse sentido, meu comentário foi o de entender que essa CLASSE de frases expressa a inconveniência de entregar assuntos importantes a especialista. Assim, assuntos importantes devem contar com profissionais diferentes.

[2] Sobre a administração castrense. Acho que concordamos com o fato de que eles não são nem melhores nem piores. Porém, como não conheço o tema como você, não me reconheço credenciado para defender ou atacar o trabalho deles. Falei o que sabia (ITA e EMBRAER). Se é uma exceção também não sei. A partir de sua resposta vejo que sei muito pouco do tema. Antigamente, médicos eram muito bons administradores de fazendas, engenheiros davam aula de economia (Mário Henrique Simonsen) e agrônomos faziam e tocavam música (Novos Baianos e Quinteto Violado). Hoje, há historiadores administrando empresas de perfume, matemáticos cuidando de empresas de propaganda, filósofos na direção de empresas de refrigerantes.

[3] A ‘falta de inimigos externos’, dita por você, não afeta só o Brasil ou o Brasil em especial. Tiradas as guerras ou refregas atuais (Arábia Saudita x Irã, Índia x Paquistão, lsrael x Palestina, Síria), ‘faltam inimigos externos’ para mais de 150 países. E todos eles têm forças militares. Assim, o que fazer com militares está mais para a regra do que para a exceção nos tempos de paz. Com os parcos conhecimentos de Economia, endosso o que Malthus falou sobre o capitalismo: toda economia nacional precisa dispor de um setor ABSOLUTAMENTE IMPRODUTIVO. Ele não deve produzir nada; só deve consumir. Keynes pegou esse pensamento clássico e o atualizou para o século XX, dizendo que com isso se sustenta a DEMANDA AGREGADA MACROECONÔMICA. Chamo à colação tais autores para dizer que para mim, os militares cumprem esse papel: serem improdutivos, mas consumirem para reforçar a demanda agregada. Se você dispensar a inutilidade de batalhões, comandos, construções militares, máquinas e equipamentos, soldos, etc. o PIB vai cair bem uns 5%! Em alguns casos, EUA e China, uns 10%. Em outros, Israel, uns 20%!

[4] Sobre honestidade dos militares. Este é um terreno que pisamos em ovos. Eu, como você, herdei essa impressão dos tempos da malfadada ‘revolução’ na Petrobrás. Nesse caso, tive a maior decepção com a japonesada, que passa a impressão de povo sério. Shigeaki Ueki, colocado na presidência da Petrobrás pelo germânico Geisel, roubou até não poder mais. Está tudo na Flórida.

[5] Você fica indignado com os militares no Ministério da Saúde. Você tem razão. Eu também acho o fim da picada. Mas os milicos não estão lá por causa da eficiência, mas da obediência. Indignação maior devemos ter com o que você chama de B. No meu caso, eu me indignaria com um general no Ministério da Agricultura. De qualquer jeito é um retrocesso brutal, especialmente nessa hora. Mas, MESMO COM CIVÍS, veja como estão destruindo na Educação, no Meio Ambiente, na Cultura. E não são militares; são civis.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.