O Zé, meu marido, é uma pessoa muito simples, a começar pelo nome (dizem que, de bobo, ele só tem a cara e o jeito de andar). Durante muitos anos, só andou de botina, de preferência bem surrada. Pra todo lado e em qualquer ocasião. Também adorava camisa quadriculada, com quadrados “beem” grandes (atualmente está mais discreto). Quando viajamos para a Europa pela primeira vez, ele queria levar as botinas velhas de qualquer maneira. Achei um ultraje levar as botinas, sabia que ele andaria com elas o tempo todo. Elas ficaram. Uma tarde, sentados num barzinho em Amsterdam, olhávamos as pessoas que passavam pela rua: cabelos azuis, piercings na testa e no queixo, roupas estranhas e mirabolantes. Passou um homem alto, bem negro, forte, vestido com um macacão apertado vermelho berrante, calçando galochas vermelhas e luzidias. Pedalava feliz e devagar uma bicicleta com bandeiras coloridas. O Zé não se conteve e falou em tom magoado: “tá” vendo, e você não me deixou trazer as minhas botinas…”
Certa vez, querendo embelezá-lo, entrei em uma loja sofisticada e cara. Escolhi uma camisa de manga comprida, estampada de marrom claro e escuro, bem “fashion” (na época, ele era reitor na UFU e precisava andar arrumadinho). Levou-a para participar do encontro de reitores em Manaus e desfilou com ela por lá. Depois, num belo dia, estava ele andando no Campus Santa Mônica com a camisa. Encontrou uma velha amiga nossa, que disse espantada: “Zé, você está muito pra frente, andando de camisa estampada com mulher pelada!” Ele ficou horrorizado, contou que era um presente meu, a amiga ficou mais escandalizada ainda. Chegou bravo em casa e jogou a camisa fora. Olhei-a com atenção, de diversos ângulos, e, surpresa! Tinha mesmo uma mulher nua estampada em toda a frente, com três flores em locais estratégicos e a gente nem tinha visto! E pior, tinha uma nas costas também. Desisti de embelezá-lo.
De outra feita, fomos a um baile no Praia Clube. O cantor era filho do Altemar Dutra, aquele cantor famoso que possui um vozeirão. O Zé comentou, após ouvir as primeiras músicas: -“Coitado, não chega nem aos pés do pai dele”. Música vai, música vem, no meio da festa, já no clima, o Zé falou: -“Sabe, esse cantor não é tão ruim assim”. No final da festa, depois de um bom vinho e muitas músicas, arrematou: -“Esse cantor é muito melhor que o pai dele”. É isso aí, na vida a gente se acostuma com tudo. É só uma questão de tempo.
E assim, vamos envelhecendo juntos. Esperando as rugas e as dentaduras. Como em uma propaganda de chocolate que assisti, onde dois velhinhos demonstravam grande amor um pelo outro. O velhinho comia com satisfação a barra de chocolate e a velhinha olhava, com vontade de comer o chocolate também. O velhinho passou metade da barra para ela, que fez uma cara de tristeza. Ele entendeu, tirou sua dentadura e emprestou para a velhinha, que escancarou um maravilhoso sorriso desdentado. Há quase cinquenta anos, o Zé e eu vamos caminhando pela vida de mãos dadas. A estrada é longa, cheia de percalços, mas temos conseguido permanecer com os pés na mesma estrada. Dividindo e compartilhando (mas não quero dividir minha futura dentadura com o Zé, de jeito nenhum), até que a morte nos separe.
*Bióloga – anacoelhocarvalho@terra.com.br