Roberto Bueno*

A todo momento recebemos a mesma mensagem de diversas fontes: a democracia está assentada entre nós e a prova é que as instituições estão funcionando, ou seja, os tribunais estão julgando, a polícia está na rua, o Congresso está aberto e a imprensa é livre. Não será possível retomar cada uma destas vertentes, senão algumas delas e ensaiar a dúvida: será mesmo que estas instituições estão funcionando? Importa responder, pois se elas não estiverem funcionando, no mínimo, podemos nutrir sérias dúvidas sobre se vivemos sob um sistema político classificável como democracia. Vejamos alguns breves exemplos para que possamos refletir sobre qual é esta “normalidade institucional” sobre a qual realmente estamos a viver. Citarei três casos.
Caso 1. Recentemente foi noticiado que a esposa do ex-Prefeito do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, Adriana Ancelmo, teve revogada a sua prisão preventiva que durou 11 dias em face do argumento de que seus dois filhos menores deveriam ter respeitado o direito de receber os cuidados de seus pais e que considerando a prisão de Cabral, então, o juiz Marcelo Bretas da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, que seria revertida em grau recursal. A pergunta impossível de ser respondida pelos critérios do juiz Bretas: e as mil marias que habitam o mesmo pútrido cárcere nacional e que igualmente tem filhos, mas que, sem embargo, continuam presas? São dois pesos e duas medidas?
Também recentemente foi noticiada a prisão de um homem maduro de seus 37 anos, Breno Borges, acusado de tráfico de drogas, portando mais de 130 quilos de maconha e também com centenas de munições de fuzil e uma pistola nove milímetros. Conheceu a prisão por dentro durante 3 meses na cidade mineira de Três Lagoas, situação que lamentavelmente tem inundado a realidade de muitas famílias brasileiras, entre consumidores e aqueles que se dedicam a venda da droga como último recurso para sustentar o próprio vício. Mas este não era, com certeza, o caso deste privilegiado homem. Borges não preenche o perfil do consumidor ordinário e nem de um empobrecido e deserdado personagem carente de recursos para sustentar o vício. Borges é filho de uma desembargadora, Tânia Garcia, atualmente na presidência do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), ademais de membro do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJ-MS), figura que desfruta de nababesca condição de vida. Foi solto por colega de Garcia, desembargador membro do mesmo TJ-MS, Ruy Celso Barbosa Florence, que acatou o argumento de advogado de que o homem sofre da síndrome de bordeline. Na alegação da defesa se trataria de moléstia que impediria Borges de discernir as suas ações, mas que encontra contradita em profissionais da área psiquiátrica, que sustentam que o borderline não tem impedida as suas funções psíquicas de acesso ao mundo real e a capacidade de discernimento sobre as suas ações sobre ele.
O teor da decisão de Florence autorizou a transferência de Borges do presídio para uma clínica psiquiátrica de Campo Grande (MS) onde permanece internado. Mas isto não é tudo. Borges já havia sido preso por porte de armas e responde judicialmente por isto, mas também, e mais grave, já era alvo de investigação por parte da Polícia Federal por supostamente ter participado da confecção de um plano de fuga de um chefe do tráfico de drogas. Mas por qual motivo Borges foi levado a uma clínica em Campo Grande quando a prisão na qual estava tinha recursos para o tratamento de sua moléstia? Não há explicação plausível. Quantos traficantes pobres, negros e sem dinheiro para constituir bons advogados continuam atrás das grades brasileiras empilhados como pacotes justamente por porte de droga e armas? Consideremos este quadro com o da massa de presidiários brasileiros que possuem moléstias as mais diversas, em muitos casos em prisões que não dispõe de recursos hospitalares. São dois pesos e duas medidas?
Caso 2. Já desde há quase um ano observamos a eclosão imparável da “moda jurídica” de autoridades públicas que ordenam a condução coercitiva, forma jurídica de conduzir cidadãos à sua presença, sejam elas policiais ou judiciárias, mesmo contra as suas vontades, mas antes mesmo de que tenham negado o comparecimento. Teoricamente, tal medida apenas poderia ser tomada em caso de prévia negativa do cidadão a comparecer ante a autoridade pública, pois o artigo 218 do Código de Processo Penal (CPC) estabelece com clareza ímpar que: “Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública”, devendo também ser combinado com os artigos 201 e 260 do mesmo CPC: “§ 1º Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade”. O fato é que o instrumento legal está sendo utilizado sem a prévia negativa das testemunhas, prática autoritária que vem invadindo, desconstruindo e usurpando as garantias típicas do Estado democrático de direito. Mas acaso todos os indivíduos envolvidos em casos rumorosos e/ou de corrupção desde há cerca de um ano vem sofrendo esta medida? Com toda a certeza recordaremos casos de muitíssimas figuras que sofreram estas medidas, mas será um desafio mnemônico invencível identificar algum político tucano sob tal medida. Dois pesos e duas medidas?
O que há em comum em todos estes casos citados é a flagrante aplicação de dois pesos e duas medidas, sempre tomando a decisão mais favorável possível para os poderosos pertencentes à oligarquia, em favor dos mais bem aquinhoados economicamente, enquanto que as decisões mais desfavoráveis são reservadas para os mais pobres. Acaso esta é uma novidade no comportamento da oligarquia brasileira? Como se sabe, o Brasil foi forjado por uma massa colonial que permeou sua cultura com o elogio ao privilégio, com certa ojeriza a ética do trabalho, com história e prática avessa a cultura transplantada da centralidade filosófica europeia e norte-americana. A história brasileira mostra como a desigualdade de tratamento está plasmada há muito no ordenamento jurídico, sobre o que nota Schwartz: “Esses índios que buscavam a proteção de funcionários judiciários sentiam que as balanças da justiça pesavam contra eles. O testemunho de um português, por exemplo, valia pelo de três ou quatro índios”. (SCHWARTZ, 2011, p. 47). Esta é uma descrição típica da cultura política e jurídica que foi enraizada no Brasil e permanece com a utilização de dois pesos e duas medidas, com o peso do testemunho do português valendo pelo de “três ou quatro índios”.
A cultura do privilégio é notória no Brasil e todavia sendo ilegalmente aplicada, tal como exemplificado nos casos acima. Insuficiente o esforço por justificar como milhares de traficantes jovens, pobres e negros não recebem o mesmo favor judicial da concessão do direito a tratamento em clínicas à semelhança do filho da desembargadora Garcia. Inviável sustentar como uma democracia pode subsistir quando a força do direito não alcança mais do que a alguns grupos, mas nunca a alguns deles, tal como no caso brasileiro aos tucanos, contra quem não pratica qualquer abuso legal como ocorre contra os demais atores da cena pública.
O fato da aplicação do direito de forma seletiva constitui grave problema para as pretensões de uma sociedade democrática. Na dimensão técnico-jurídica o problema é que, em sua essência, a teoria do direito típica das democracias ocidentais encontra um de seus pilares na igualdade perante a lei, vale dizer, em que todos os cidadãos devem receber idêntico tratamento. O espaço jurídico-político em que certos grupos recebem tratamento privilegiado do Poder Judiciário e do Ministério Público desconstitui os elementos básicos do estágio civilizacional alcançado ao longo da história.
Em um cenário como este é imperioso questionar sobre o lugar em que vivemos, pensar sobre qual é mesmo a sua real constituição, para além daquilo que nos transmite a grande mídia, para além daquilo que todos os dias ela repete, repete e repete ainda mil e uma vezes. Pode mesmo ser uma democracia um arranjo social em que a lei não é aplicada pelo Poder Judiciário da mesma forma contra todos? É possível classificar como democracia um lugar em que o Ministério Público sente-se à vontade para promover ações que deixariam Kafka corado? É possível aceitar a avalanche discursiva que tenta persuadir que vivemos em uma democracia plena quando a legislação se aplica ferreamente – ou até contra os seus princípios – aos “inimigos” do establishment e nunca em desfavor dos amigos e parceiros fiéis? É possível classificar como democracia um sistema político em que o crime de “pedalada” e de “pedalinho” é gravíssimo e sofre punições severíssimas, mas que se desinteressa pelo acúmulo comprovado de muitos milhões (de reais e de dólares) no exterior? Mensalão é uma classe de ilícito a ser perseguido apenas se for na esfera federal durante governos de um determinado partido político, mas nunca nas Minas Gerais sobre o governo de um outro. Afinal, quem pode acreditar que vivemos sob um sistema estabilizado em parâmetros democráticos quando o Presidente da República e seus acólitos se orgulham publicamente de governar tomando medidas com quase 100% de rejeição da população? Onde pode subsistir a democracia neste sistema? Já não são bem visíveis os seus coveiros?
Afirmamos a nefasta sobrevivência de uma tradição que provém desde o Brasil colonial, ideia sustentada por Schwartz ao descrever que “A inaptidão judiciária contribuía para criar condições de turbulência no Brasil, mas na raiz desse estado de coisas estavam as muitas oportunidades de desvios e excessos” (SCHWARTZ, 2011, p. 47). Os favores e excessos são claríssimos e operam em favor da oligarquia. Como você se sentiria ao saber que recolhe honesta e corretamente os seus tributos e que o grande empresariado nacional não recolhe e depois tem as suas dívidas perdoadas? Dois pesos e duas medidas?
Por diversas vias todavia permanece a cultura da concessão de privilégios à casta componente das forças oligárquicas. Florestan Fernandes observa esta configuração já em sua manifestação colonial. Então, como hoje, era força marcada pelostatus senhorial, pela dominação patrimonialista e pelas funções políticas da aristocracia agrária (FERNANDES, 2005, p. 130), que sempre a reclama e da qual se apropria sem abrir mão. Hoje, como ontem, a oligarquia pretende manter-se em posição de que a força da lei não lhes atinja, sequer quando se dediquem à prática da escravidão, planejamento de homicídios, fuga à céu aberto com sacos ou malas de dinheiro de corrupção ou mesmo quando confessa de própria voz a comissão de crimes contra a administração pública. Esta oligarquia que encontra braços nos mais altos atores togados pretende manter-se em lugar de isolamento e privilégio que nem mesmo um modesto conceito de República poderia aceitar. Esta oligarquia pretende permanecer intocável, inacessível à força da lei. Já bem sabemos que, por exemplo, ser tesoureiro de partidos políticos pode ser uma atividade altamente perigosa, exceto se for plumado-tucana, ou acaso alguém terá ouvido falar de que algum de seus tesoureiros tenha sido alvo de condução coercitiva?
O que hoje está em curso no Brasil é uma genuína revolução conservadora que emprega os mais densos esforços e mobiliza as mais altas quantias de capital para promover a velha tradição autoritária nacional que é, e sempre foi, sinônimo de atentado visceral aos projetos democratizante-populares, que historicamente constituíram projetos logo tomados como desejáveis alvos de golpes de Estado. Podemos voltar os nossos olhos para o espaço que quisermos, tergiversar e sumir o verbo nos ares mas, indiscutivelmente, a realidade é mesmo esta.
Todo este cenário, acaso, pode ser descrito como uma democracia ou apenas como um simulacro? É isto uma República? É isto, realmente, um Estado democrático de direito? É todo este espaço jurídico-político algo qualificável como um perfeito e adequado funcionamento das instituições? Alguém pode dizer que uma democracia funciona normalmente quando trata aos seus cidadãos com dois pesos e duas medidas?

Professor universitário. E-mail: rbueno_@hotmail.com