Roberto Bueno *

No dia 10 de novembro de 1938 Adorno firmou carta em Nova Iorque e a endereçou a Walter Benjamin, e a certa altura fazia referência a que “Sólo hay en el nombre de Dios una única verdad”. A possibilidade da pluralidade de narrativas de mundo inexiste neste cenário, e apenas se descortina quando Deus morre, pois até então era ele o protagonista e referência última sobre o bem, o justo, o virtuoso e o belo. As narrativas plurais carregam em seu âmago a inspiração contrária, a saber, a discrepância sobre as descrições essenciais da vida. A teologia não pode ocupar o centro da vida civil e nem muito menos tutelar a interpretação e aplicação das leis. A sua versão é apenas uma única versão perfeita e acabada, pois a teologia é incapaz de construir e admitir versões paralelas e competitivas à sua sobre o bem e o justo, o virtuoso e o belo. Onde localizar estes valores é uma incansável busca humana. O bem-estar, ou a felicidade, como propõe Robert Spaemann, não seria localizável nem em nós e nem fora de nós, e se é assim propomos que pode estar posicionado de forma oscilante justamente em algum lugar intermediário entre ambos, e aos quais temos acesso de forma temporária em meio a este eterno movimento pendular, dinâmica que a teologia não abarca e a pluralidade compreende.
A construção das condições da liberdade está ancorada na possibilidade de que os diversos atores sociais expressem as suas narrativas de mundo, que exponham as suas cores, as suas dores e os seus rancores nos tons e sons que lhe são próprios e façam sentido. Não se (re)constrói o pluralismo que serve de base ao mundo libertário democrático sob um referencial teórico salvacionista que elabora uma exclusiva visão do bem e da virtude. Passagem deste gênero supõe que as instituições também sejam aculturadas ao novo momento em que os valores estarão em conflito e, por conseguinte, a esfera judicial será transformada em um espaço de disputa continuada entre diversas visões de mundo de quem será demandada mais do que uma resposta cristalizada sobre o bem e o mal. Em tal cenário, como diz Noam Chomsky, será necessário compreender a justiça em termos de justiça social, e as instituições precisarão estar adaptadas a este novo cenário cultural de operações.
As condições de nossa liberdade futura estão conectadas às nossas ações no momento presente em diálogo e compreensão com o passado, que em nenhum caso será objeto de revisão senão através de duas vias possíveis. Admite-se o sonho da realização de avanços para além dos limites estreitos da teologia adentrando no território da vida política, mas sob diferentes marcos conceituais. Enquanto a redenção opera no campo da teologia para revisitar o passado no presente para transformar o ser no futuro, o seu equivalente no campo político é o conceito de revolução. O pretenso redentor apresenta-se com o projeto de redimir a alma humana, e já o revolucionário, à concreção das relações humanas, incluindo a sua dimensão material. Menos do que isto será insuficiente, e mais, temerário e comprometedor. Risco e desejo.
A aplicação do conceito de redenção pressupõe um messias, um enviado dos céus para cumprir o desiderato salvacionista, destruidor de todos os males do mundo, seja com a espada ou com códigos em mãos. Ao ser aplicado o conceito de revolução ao mundo político pressupõe-se outro ator que não o heroico messias, e esta é a condição para reconfigurar o futuro destituidor do status negativo do passado e de todo o mal do momento presente. Trata-se da apropriação coletiva da função revolucionária que toca a cada geração, enquanto o que a teologia propõe como redenção a revolução propõe em termos de autolibertação, que é compreendida em seu caráter positivo mesmo por figuras do conservadorismo católico como Spaemann, para quem “Una vida lograda parece inseparable de la autarquía, de la autodeterminación y el autodesarrollo”. Mas a autolibertação não pode ocorrer enquanto movimento solitário, egoísta e isolado, senão carregando e revisando as condições do pretérito sofrimento coletivo, pois de não articular deste modo o passado continuará a comprometer o futuro em seu momento feito presente.
O Estado pode ser ilegítimo ainda quando legal, o Estado pode estar baseado na legalidade e não dispor de um sistema de justiça legítimo, embora tal sistema atue sob o manto protetor da legalidade. O Estado pode colocar as condições de sua própria ilegitimidade quando os homens e mulheres sejam tornados meros apêndices dos tortuosos fins visados pelos governantes que operem tão somente em seu próprio benefício. Este é o Estado hipócrita, descosturado das condições essenciais de liberdade, bem-estar e participação popular. É nesta encruzilhada que a mudança dos paradigmas e das estruturas mais profundas do Estado se torna legítima em face de sua peculiaridade transgressora de sua promessa fundadora em substituição à divindade.
O Estado substitui a divindade e passa a exigir em seu lugar a obediência às leis em troca da ordem assim como a divindade prometia o paraíso aos seus fiéis. Em troca da obediência o Estado oferece proteção e limitação dos prejuízos causados pela vida em sociedade e consequências nefastas das interações sob a lógica expansiva do livre mercado capitalista. Quando o Estado descumpre a sua promessa fundadora se põe o cenário afinado com a descrição de Chomsky sobre a condição legitimadora para a rebelião, ou seja, que cabe “[…] agir contra as instituições legais de determinada sociedade se, ao fazê-lo, você estivesse golpeando as fontes de poder e opressão dessa sociedade”. Esta é a precisa posição assumida pelo Estado ao colocar homens e mulheres em segundo plano e o capital em primeiro.
A revolução não muda as entranhas do mundo, mas outorga aos seus atores através desta passagem secreta, e unicamente a eles, o poder de construir um novo mundo, que é condição para a concretização das premissas libertárias. Este desassujeitamento ocorre através de atos apropriatórios da vida e dos destinos do mundo político, horizonte em que o fazer cruza com a liberdade de homens e mulheres, que já não se contentam com o destino das ondas, que, malgrado a sua potente energia, e de tudo poder mover, sem embargo, se esvaem ao chegar às praias, e nada mudam no curso da história. O alargamento dos atos apropriatórios dotam os atores sociais de musculatura suficiente para ocupar o protagonismo social.
A revolução propõe o cenário da transformação no presente ao operar o futuro sobre as condições do passado de forma efetiva, pois é bem sabido que é a força que estabelece o poder (e o mantém) – recurso violento admitido por Foucault –, e que é a força que cria (e mantém) o direito, e não este a si próprio sob estruturas formais e abstratas. Sob este cenário homens e mulheres atuam sob o sol que lhes ilumina hoje projetando o brilho do amanhã: Brüder, zu Sonne, zur Freiheit! Ao sol, à liberdade! Esta revolução não trata do Estado ideal ou utópico que István Mészáros não entende que possa ser vislumbrado sob a urgência do tempo, senão, cremos, sob a urgência da tarefa de crueza sisífica. Não existe desfrute do paraíso no singular. A construção da pluralidade está conectada com a função revolucionária, mas nunca com a função redencionista que faça da terra o novo berço abençoado de Deus. Campos diversos, atores distintos, mas forte potencial de transformação.
Como bem recorda Edmund Wilson, “Os homens de ação fazem a história, mas os espectadores escrevem a maioria das histórias, e estas podem influenciar a ação”. Em tempos ordinários precisamos de ambos atores, mas em tempos extraordinários precisamos de ambos em uma só e decidida encarnação. O espaço foi invadido, há que retomá-lo. Brüder, zu Sonne, zur Freiheit!

Faculdade de Direito. UnB (CT).