Roberto Bueno*

Tormentosos são os dias que a nação vive, arriscadíssimos quanto ao desfecho que não permite antecipação. Perigosos são os dias, muito embora não esteja claro para grande parte da população quais são exatamente as consequências do processo de desconstitucionalização e erradicação dos direitos dos trabalhadores, nem qualquer identificação de quem sejam os seus reais perpetradores e menos ainda quem seja o chefe desta genuína quadrilha.
Hoje a Presidência da República não tem um ocupante, mas um personagem cuja imagem é autoexplicativa de seu definhamento em todas as dimensões imagináveis. É uma figura que transformou o respeitável espaço-símbolo de poder republicano em uma caverna, um mero bunker, habitado frequentemente por advogados vários lançando mão de armas de defesa para acusações provadas nada menos do que pela voz do acusado. Em face da inaudita crise, resta à esquerda resistir com todas as forças e empenhar-se pela restituição do Estado democrático de direito. É embate necessário se quisermos ter algum amanhã e para isto conhecer e fortalecer as opções e caminhos para os dias que virão. Para pensar à esquerda hoje é preciso estar atento à nova chave histórica nos termos impostos por uma também renovada sociedade brasileira emergente de uma gravíssima crise política provocada por celerados violadores da Constituição.
Pensar à esquerda hoje em face das consequências de dias tão duros e negativamente impactantes exclusivamente sobre o povo implica priorizar a análise desta sobrecarga e projetar os instrumentos para desconstruir o projeto do poder financeiro ora em curso e que alimentou o golpe de Estado de 2016. Estas são forças que desprezam a fome ou a dor de quem não dispõe de meios para evitá-las. Querem beber as liberdades do povo, querem deglutir os seus corpos e digerir os seus direitos. São demônios que inspiram vingança, pois à semeadura da injustiça, cedo ou tarde, sucede a colheita do ódio, e são os irresponsáveis que o fazem que desconhecerão as amargas consequências de seu legado.
Nesta encruzilhada o pensamento progressista deve intervir visando constituir projeto político humanizador das relações sociais em todas as esferas, das políticas públicas a elaboração dos critérios da gestão econômica. A esquerda pulsa justamente ali onde aos homens e mulheres são impostas a injustiça, a agressão e a indignidade. A mais intensa capacidade de obtenção de legitimidade e de consolidação discursiva da esquerda pode ser obtida justamente ao fazer honra a sua tradição e enfrentar os desafios que os novos tempos apresentam.
À esquerda não marca a omissão em face da injustiça, mas a irresignação em face do silenciar das vozes dos depauperados, sobre aqueles em quem recai a chuva de bombas, que sofrem com trovões e mil raios sobre os seus corpos, que têm as suas vidas humildes entorpecidas por poderosos com os seus mil fuzis em ação. A esquerda se (re)constrói e reconhece através da insubordinação contra o establishment, e este é um dos elementos últimos unificadores do seu pensar e projeção de suas ações.
A esquerda precisa pautar os atos de resistência democrática não apenas através de uma posição ideológico-filosófica típica de seu campo político, mas alargando-a, visualizar e propor o compromisso do cidadão em face do Estado e da defesa dos valores de sua Constituição. O que está em causa nas atividades de resistência democrática é o dever de defender as instituições da democracia das ações dos subversivos que tomam o Estado de assalto para inverter as premissas da democracia que ouve a voz popular (e não da elite de burocratas administradores) e dos direitos dos trabalhadores. Hoje os subversivos é que estão no poder e a derrocada deste regime de abusos é dever claro descrito pela teoria constitucionalista democrática moderna.
À esquerda deve preocupar a regeneração dos valores democrático-populares tão duramente atacados pelo autoritarismo e que foram sendo recepcionados por parte da população brasileira através de massiva campanha midiática. A perspectiva da reconstrução do Estado a partir da centralidade dos seres humanos em sua organização é que servirá como ponto de ancoragem para que ele possa ser uma vez mais o grande prestador dos serviços tão necessários para a população carente. Neste quadro teórico à esquerda resta claro que o outro é subjetividade, e que enquanto tal precisa de reconhecimento por parte da comunidade, pois apenas assim ela própria poderá reconhecer-se legitimamente.
Tão típico dos regimes oligárquicos, o desprezo da alteridade é o princípio da sucumbência do eu-mesmo-aqui, mas também de algum possível eu-mesmo situado em algum lugar do presente e do futuro mas, certamente, também da própria comunidade. Este projeto que concebe o humano como centro das atenções em detrimento do fazer econômico encontrará profunda resistência da oligarquia financeira e industrial que desconhece e despreza tudo quanto não seja o retorno de lucro para os seus cofres, a qualquer preço. Obteve êxito até aqui calçado na sofisticada narrativa midiática rotinizador da dor alheia, instrumentalizor do direito e naturalizor da vida exposta às intempéries e violências que Hobbes desejou evitar e que hoje os maganos querem reinstaurar.
Dentre as ingentes tarefas da esquerda está a dupla e paralela reconstrução do mundo dos direitos e das instituições. Para fazê-lo será necessário vencer a resistência da oligarquia em pagar os seus tributos, (re)criar e melhor equipar os órgãos públicos capazes de impedir as diversas formas de evasão fiscal. Não menos importante será elaborar instrumentos que democratizem o acesso às casas legislativas, popularizando e pluralizando os seus atores, e com isto produzindo o efeito necessário de impedir que empresários sejam praticamente os únicos legisladores, pouco interessados em estruturar uma nova sociedade mas simplesmente preocupados com redigir favores e perdões fiscais para as suas empresas, tal como hoje ocorre no Congresso brasileiro.
À esquerda cabe investir na reimplementação de políticas públicas que privilegiem a igualdade de tratamento em todas as esferas em paralelo com as políticas de cotas que visam reequilibrar de algum modo o acesso às oportunidades, empregos e às riquezas do país. O esforço progressista também precisa abranger a reconstrução do deteriorado mundo jurídico, recuperando as instituições hoje abaladas pelo absoluto desprezo de diversos de seus atores que decidem em tribunais como se estivessem em casas políticas na defesa dos interesses de seu partido, articulando até mesmo as maiorias parlamentares em projetos legislativos em curso. Há exemplos notáveis disto, e Gilmar Mendes é talvez aquele que mais se destaca, flagrado que foi em gravação reveladora de alta intimidade com o Senador Aécio Neves sobre quem pesam nada menos do que nove denúncias no STF, o que não serviu como elemento dissuasório para os contatos de Mendes. Qual a conduta que Mendes precisará praticar para, enfim, ser impedido de exercer a magistratura?
Em face do presente descalabro o que caberá à esquerda é empreender esforços de refundação institucional da função judicial através, primeiramente, da criação de órgãos realmente capazes de punir os magistrados e demais atores, tais como membros do Ministério Público. Manifestamente insuficiente por corporativas, as Corregedorias precisam ser substituídas por órgãos com algum grau de acessibilidade popular, cuja transparência constranja atos de inaceitável corporativismo quando as denúncias tenham por objeto condutas de autoridades judiciais que manifestamente exacerbem no exercício de suas funções. Hoje a realidade é que se encontram, rigorosamente, atuando como potentados, libertos de praticamente responsabilização por qualquer crime que venham a cometer, encontrando a máxima punição na aposentadoria com vencimentos mesmo quando flagrados fugindo com malas cheias de dinheiro em alguma alfândega do país. Acaso isto pode ser entendido como um sistema democrático e republicano?
Hoje o homem e a mulher progressista se sentem no exílio, mas é um exílio diferente, pois trata-se de exílio dentro de seu próprio chão, amarrado às suas origens e feito prisioneiro dentro de sua própria casa, como se a houvessem invadido e manietado, da boca (Poder Judiciário) à mente (mídia), dos pés (Ministério Público) às mãos (poder financeiro). Intervém nesta ação conjunta um bloco de poderes que concretiza uma orquestra sem-fim de ações judiciais falsificadas com fins persecutórios sobre o campo político progressista a altíssimos custos econômicos, mas também políticos e de imagem pública.
É preciso que a esquerda republicana e popular esteja atenta a estes autênticos inimigos da democracia travestidos de protetores, e esta será uma de suas tarefas prioritárias quando de seu regresso ao poder sob pena de que a persecução da opção política popular seja uma vez mais alvo de criminalização. É preciso que a esquerda, então, esteja livre e bem disposta para depor a elite encrustada na administração pública que se pretende infensa à responsabilização de qualquer tipo, gestante e gestora de verdadeira casa grande de sangue azul, casta de marajás que infesta e domina os mais altos postos da administração pública brasileira e dá de ombros para a proteção dos interesses populares e da democracia sob os mais portentosos argumentos pseudo-jurídicos (neutralidade à frente), que ostenta anéis e recovecos verbais e gramaticais que desonraria até mesmo as mais absolutistas cortes reais em que os súditos mereciam o respeito daqueles que sobre eles pairavam.
É preciso eliminar os postos da administração pública em que já não há condições de que encontremos servidores em face das condições financeiras majestáticas. Autodeclarados potentados e proprietários dos desígnios do poder público, já não são executores de políticas públicas determinadas por aqueles democraticamente eleitos, mas os seus titulares. Os novos nobres togados reputam que o seu sangue azul adquirido por concurso público os colocou em posição de superioridade aos mortais cidadãos a quem deveriam servir. Perderam o respeito pela democracia quando passaram a desconhecer que o seu dever-mor é o de prestar obediência às normas e às autoridades democraticamente eleitas e aos princípios da República cuja inteligência não lhes cabe atribuir, mas apenas declarar.
Homens e mulheres que vivem como uma casta de intocáveis não se encontram em posição democrático-republicana de servir, mas tão somente de subverter a ordem para manter os seus altíssimos e descabidos privilégios de todo o tipo tal como auxílio-moradia para proprietários de imóveis, ou auxílio-paletó para quem já ganha às burras, e ainda mil outros auxílios que deixam uma grave dúvida no ar: afinal, para qual a finalidade é pago um salário a eles? Se trata de homens e mulheres cujos ganhos mensais alcançam astronômicas cifras que o Estado brasileiro não poderia pagar, tal como cem, cento e cinquenta, duzentos, duzentos e cinquenta mil reais. Isto se dá à custa de recortes de muitos direitos, dentre os quais, às prestações de saúde e a previdência pública, projetos cuja legalidade é garantida por esta mesma casta de togados que recebem estes benefícios que nenhuma sociedade aceitaria quando houvesse um sistema realmente dotado de mínimo peso democrático cuja operacionalidade ecoasse o querer popular. Qual a legitimidade que estes atores jurídicos possuem para decidir sobre a prisão de um homem que furta um pão ou o remédio para o seu filho? Abordar este problema será missão urgente para um governo popular e democrático à esquerda, pois enquanto existir uma casta de intocáveis a República e a democracia serão apenas uma quimera, e enquanto a desconfiança reina nada se constrói.
Enquanto a tantos afoga o pranto a estas castas aguarda em festas mais refinadas o tilintar das taças mais finas de cristais adornados com líquidos inebriantes desconhecidos daqueles que o pagam e a quem mesmo água potável diária ou saneamento básico são recursos indisponíveis. O achaque, a agressividade, é tanta e tão feroz que a poesia não compreende ou expressa, a desfaçatez é tamanha que nada mais se impõe do que resistir e agir. Bate à porta o tempo em que dizer chega de barbárie já não é mais suficiente, bate à porta o único signo do dia, assim como em desespero pensaram os dois incansáveis jovens que ao adentrar na esfera privativa do poder em Brasília expressaram a indignação de milhões de pessoas nesta última semana de junho de 2017. Os nobres não ouvem e teimam em não ouvir os ruídos na Bastilha.
Em diversas latitudes do Brasil começam a ter lugar os atos de desespero daqueles corpos lacrimosos que ainda respeitosos às leis, lamentam supor não dispor de forças para reverter a violência coordenada desde a malta ocupante da torre planaltina e seu projeto mal-acabado de ditado. Figura canhestra em sua voracidade de abocanhar milhões e impor grilhões, mesmo quando os seus dias estejam a findar a olhos vistos e à história esteja por entrar nada mais do que como vilão de última categoria infraposto ao último cão que acompanha o cavalo do pior bandido do filme “c”.
Hoje muitos começam a deplorar, embora a sós, e já cheios de nostalgia, a realidade que até dias muito recentes chegamos a conhecer. Contudo, revigorar a nossa história e reerguê-la é a condição presente, e de ninguém mais depende senão do emprego de nossas melhores forças para que realizemos o único projeto que impõe algum sentido às nossas vidas: legar bem-estar, justiça social e melhores dias para as gerações vindouras. Precisamente isto é o que uma mente obtusa e criminosa assim apontada pela Procuradoria-Geral da República nunca foi capaz de ver ao longo de sua improdutiva vida pública.
Sem embargo, sim, há esperança e esta reside na reação popular. Há, sim, via de esperança concreta para reavivar a política em sua versão democrática conceitual mais elementar, vale dizer, a tomada do poder pelo povo quando ele é vítima de abusos de todos os gêneros. Não nos enganemos quanto ao que isto significa, e que não se recorra sequer à criminalização do pensamento progressista, pois do que se trata aqui é de que até mesmo as versões mais pobres do liberalismo reconhecem que a usurpação do poder ou o abuso do que foi concedido ao governante o tornaria objeto de lícito movimento de rebelião, algo tão presente quanto claro na filosofia política liberal de John Locke.
A reinstauração da ordem democrática em desfavor dos subversivos hoje no poder precisa colocar a esquerda em posição de aprofundar as políticas de distribuição de riqueza interrompidas à força pelo projeto golpista oligárquico que nestas paragens todavia mira o ideal senhorial rural, apreciador da existência de servos mas nunca de cidadãos com os quais compartilhar o bem-estar. Aqui deparamos com uma disfuncionalidade do campo ideológico à direita, qual seja, de que, no limite, não compreende que os indivíduos necessitam de reconhecimento enquanto seres humanos, mas centraliza a sua atenção exclusivamente em sua função de detentor de riquezas e de consumidor, resumindo o seu ser no reconhecimento que das grifes que ostenta ao redor do corpo.
O eixo reflexivo da nova esquerda que precisa emergir da crise contemporânea passa pelo alargamento de seu contato com a sociedade, visando reconfigurar o seu papel de protagonista mas já não como mera consumidora, mas como lugar para o desenvolvimento do ser humano. O seu movimento precisa ser compreensivo da necessidade de inverter a lógica atual do poder, ou seja, realizar o urgente movimento de sobrepor a política à economia, de sobrepor o espaço de determinação dos fins humanos ao daquele encarregado de alocar recursos para cumpri-los.
Recordemos o Riobaldo, de Guimarães Rosa, que expõe a possível natureza de muitos homens ao dizer: “O senhor não duvide – tem gente, nesse aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta…”. Atualizemos e já veremos o conjunto canalha que falsamente administra um país mas que se compraz com fazer verter sangue e dor, sofrimento e pavor, impondo batalhões e fuzis a quem reluta e resiste em resposta à indignidade de que é vítima. É gente que mata e esfola ou consente tão só para ver a cara de quem sofre já em agonia, indiferentes a tudo o mais.
A lamentar, e com muita profundidade, mas estes são os momentos em que nem Buber ou Habermas tem o que dizer, pois o diálogo sempre pressupõe reconhecimento, o valor e a dignidade do outro. Hoje o estágio civilizacional foi regredido à força pelos capitães sem patente de um golpismo desconstitucionalizante patético. Hoje, portanto, o rumo é outro e bem firme, e nunca alternativo a reunir, levantar, armar, resistir, enfrentar. Por isto tem razão o poeta anônimo ao dizer que nestes dias inglórios em que a violência é feita recair sobre o povo “É a espada forjada em aço fundida / Que tanto ao mal como ao crime conduz / Mas é a sua lâmina fria que rebenta / E também ela que à liberdade seduz”. A história desconhece o avanço das liberdades sem a resistência e a sua defesa sem medo por parte daqueles que delas carecem e nem tem direitos reconhecidos. Aos cidadãos cabe decidir o seu destino e lançar a pedra. (fim)

Prof. Pós-Doutor. Faculdade de Direito. UnB (Col. Téc.).