Roberto Bueno *

Quando estamos em meio à tempestade é preciso saber sobrevivê-la, vencer a aguda adversidade, pois é a prioridade das prioridades. Mas também é preciso alimentar a fornalha que fornece a energia para resisti-la, é preciso deixar-se habitar pela esperança no amanhã que constitui a força do querer vital sob a tempestade, a fonte da energia para enfrentar as durezas do momento.
É preciso desenhar o que fazer quando as nuvens dissiparem e à tormenta sucedam homens deambulantes sob o belo céu contemplando os lamacentos destroços. Mesmo sob a tormenta é imperioso ter clareza de que haverá um amanhã e precisaremos saber qual será a caminhada e quais serão os caminhantes que ladearão. Pensar o progressismo em matéria política transcende os limites do estatismo puro, vai além da mera organização da produção, e embora sem ser indiferente a ambos, o que está em causa é reuni-los dentro de uma perspectiva mais abrangente que é a da priorização do genuinamente humano em todas as esferas das relações sociais. A reflexão sobre o papel do Estado percorre a saúde e educação, abrangendo a segurança e as relações econômicas de produção e de trabalho mas precisa fazê-lo a partir da ótica priorizadora da contenção da barreira expansiva do reino de Cronos, o novo deus não entronizado e sem altar que triunfa financiado pelo mundo econômico.
O caminho para o pensamento progressista contemporâneo tem um só rumo, e todos os demais movimentos virão em decorrência dele, qual seja, o de fortalecer as pontes de diálogo com as mentes e corações aprisionados em conceitos obscuros e narrativas midiático-mercadológicas inebriante-entorpecedoras. O aprofundamento de diálogos torna possível a séria retomada do tempo humano do reino de Cronos, e ao tê-lo novamente ao seu dispor, o humano poderá ter o controle de sua vida, e este é o passo prévio, pois quem está a reger o nosso tempo é o real senhor de nossas vidas e nossos sóis. Emergir do mundo das sombras é associar o domínio sobre o tempo à disponibilidade de recursos econômicos para sobreviver.
As sociedades foram armadilhadas pela retórica do mais possuir através do mais trabalhar e produzir, e o seu aprisionamento ocorre na encruzilhada em que quaisquer que sejam os recursos financeiros disponibilizados estes já tampouco estão em condições de ser minimamente desfrutados. A oligarquia entroniza valores que descosturam as vidas e as relações humanas em seus pontos mais ricos e sedutores, nos levam para latitudes em que não experienciamos mais as vidas com os nossos entes queridos, pois em troca disto recebemos a promessa de recursos econômicos para adquirir novas gerações de produtos que não sabemos utilizar ou, talvez, novos bens que tampouco teremos tempo de utilizar. Qual o sentido de livrar-nos de nós mesmos a troco de grandezas sem proveito?
O deus Cronos é entronizado e logo impõe o seu reinado à serviço da dura lógica empresarial. Superá-la é o desafio, mas antes disto é preciso que os sujeitos do jogo entendam as regras, e para que assim seja, a linguagem da política precisa ser dominada e descortinar as chaves de acesso ao território em que ela realiza as magias capazes de distrair a população. É preciso franquear estes territórios ao acesso público dos cidadãos. A reapropriação dos mais atraentes recônditos da vida e das mais ocultas e ricas veredas da existência supõe vencer um desafio prévio para a compreensão do projeto político popular e democrático progressista, qual seja, o espaço em que o espesso véu que recobre o real, e isto precisa ser revertido em transparência clara, límpida visão do termo esperança.
A águia precisa levantar o seu voo à hora certa para escrutinar a floresta desde cima, oscilando entre as nuvens que os homens não alcançam e o chão que todos pisam e sobre o qual podem erigir as suas vidas e os seus sonhos. É preciso espantar abutres e corvos que ameaçam devorar Sísifo – antes que o repetido esforço que lhe é imposto se encarregue disto – sob a indiferença oligárquica, ocupado obediente em realizar a sua tortuosa e torturante tarefa à espera da promessa de liberdade. Cronos apropriou-se do tempo e do corpo humano, a quem falseou promessa de liberdade que não cumprirá, pois do que se alimenta é precisamente do objeto que tortura Sísifo, a mescla de trabalho, dor, sofrimento e sem-sentido. O Cronos radical-capitalista reside nesta essência desconcertadora do humano, destrinchando corpos e esquartejando o que todavia a crueza dos males da vida não chega a comprometer.
A pergunta que se impõe ao progressismo conjugada à ação é sobre a quem caberá erguer a bandeira a ser seguida pelos mil e um Sísifos? Quem apontará e alertará que a sua desgraça não é natural, senão que é reversível neste mundo? Quem será capaz de mobilizá-los e demonstrar que as suas noites intranquilas não são son(h)os mas duros pesadelos, e que para dele despertar nada mais necessitam do que o valor da coragem de olhar nos olhos de quem se apresenta falsamente como o senhor encarnado em Cronos. É preciso celeridade, rapidez e força antes do beijo fatal que a morte reserva aos mil e um Sísifos escarnecidos, pois ela não tarda em face da árdua vida imposta aos seus corpos. Outro horizonte amplo e promissor é possível, sim, e a trilha para alcançá-lo é o da coragem.
Não há esperança para uma sociedade senão quando os homens e mulheres alimentem não apenas esperança em uma tipologia social mas que também concentrem poder e a responsabilidade de construir o seu futuro em desfavor de uma elite carcomida em prol de uma versão sociopolítica e econômica antifascista que combata as práticas elitistas típicas dos piores momentos do século XIX e XX. Não há esperança para uma sociedade em que o carcomido quer aprisionar o vivo pulsante, em que o vetusto pretende conter o frescor da juventude, em que o passado quer ser futuro. Mas também não há esperança na sociedade em que os homens e mulheres do presente se apequenam em suas expectativas e esperanças, encolhendo e recolhendo a amplitude sua vida presente e consentido que castrem os seus sonhos e os dos seus filhos. Não há qualquer esperança para uma sociedade que não reaja nem diga basta à uma massa menor de transgressores das liberdades públicas e da ordem social democrática. Não resta esperança senão para aqueles que ao ser apresentados à condução por velhacos se desvencilhem, e não apoiem aqueles que os encilham e selam as suas costas. Permiti-lo é tripudiar sobre o legado político e sobre as gerações futuras que assim condena.
O pensamento progressista precisa desarmar a perigosa armadilha da resignação e da desesperança. A superação da segunda passa pelo desarme da primeira através da ativação da coragem como recurso explícito em face ao fazer antipolítico violador. O pensamento progressista precisa rearmar a legitimidade popular de oposição ao poder, mas ao colocar a si mesma em xeque mostra o seu valor para dialogar com a humanidade liberta, estimulando assim a cultura da resistência civil que servirá para opor a futuras violências institucionais.
O pensamento progressista precisa privilegiar o olhar e as ações que visam desarticular as circunstâncias de empobrecimento e incremento da depauperação. Este olhar já não mais pode fixar-se exclusivamente sobre a categoria de bens materiais, senão que precisa criar espaços confortáveis de intervenção coletiva crítica sobre as condições de realização de anseios e desejos imateriais que colonizam e fortalecem o lugar da humanidade em que é cultivada a força contra a torpeza e a violência. Os espaços existenciais da população vêm sendo corroídos pelos senhores controladores de Cronos, e não por outro motivo o trabalhador não tem tempo, dinheiro e/ou, ainda, se for o caso, apenas para subsistência. Desempregado, tragédia-mor, nem isto.
A reconfiguração histórica do campo político progressista passa pelo aprofundamento da compreensão de que a oligarquia ocupou posição irremediável e irretorquivelmente antípoda no campo ideológico popular. Quando consideremos que isto não impede o diálogo, por outro lado, é preciso admitir que soa como forte advertência, clara e certeira em face das experiências recentes, de que a oligarquia nunca será companheira de jornada fiel – nem sequer aos fundamentos básicos do Estado democrático de direito – senão meramente transitórios ou históricos enquanto perceberem conveniências.
Não há qualquer esperança para a população mais depauperada nem para a classe média hoje sob o intenso ataque e fogo cerrado das oligarquias senão o retorno do campo progressista ao poder. Apenas à esquerda subsistem expectativas para além da radicalização do triunfo de Cronos. À esquerda subsistem esperanças que à direita foram completamente hipotecadas em seu território seco e árido para a vida do trabalhador. À esquerda subsiste a perspectiva e, mais do que em qualquer outro momento, o dever histórico de impor-se o desafio de retomar e realizar ainda mais profundamente uma sociedade calçada na equidade, na justiça social, na igualdade de oportunidades, na justiça de gênero, no reconhecimento da pluralidade existencial em todas as suas manifestações sexuais, étnicas, culturais, etc.
Não há qualquer esperança que resida no bojo do vetusto e na cultura das eternas oligarquias que ora expulsam de seus corpos as últimas energias e exalam os seus últimos perfumes de duvidoso odor. Elas se encontram ocupadas em seus magníficos castelos ou em casas legislativas suntuosas, seja com suas remodeladas carruagens de luxo atrapalhadas entre mil pajens, ocupadas com maximizar lucros entre funções togadas como se não houvesse amanhã. Desconhecem que a ofensa e a violência de hoje é o gérmen de tudo quanto o amanhã irá colher.
Não há mesmo nesta quadra histórica que o país atravessa, sequer um fio de esperança, nenhum, por mais tímido, que não seja pela densificação da vida política que o campo progressista à esquerda pode realizar em desfavor dos eternos senhores feudais que trocam de traje mas nunca de costumes e hábitos de limpar as botas no rosto daqueles que veem como seus eternos serviçais ou, na versão moderna, súditos encarnados na fantasia de cidadãos, isto sim, de última classe. Passando a tempestade retirar o barro do rosto é sempre possível, mas nunca d´alma que impregna todo o ser daqueles que impõe a violência e a indignidade. Precisam carregar consigo esta mancha mal cheirosa que perfumes finos não remediam. (segue).

Prof. Pós-Doutor. Faculdade de Direito. UnB (CT).