Cesar Vanucci *

“Perdão foi feito pra gente pedir.”
(Verso do cancioneiro popular brasileiro)

Demorou, mas aconteceu. Tutu foi pilhado em vexatório flagrante. Avisos de amigos não faltaram. Tantas as traquinagens extraconjugais praticadas que não ficava nada difícil prever a cena: o teto desabando sobre sua cabeça. Conto como sucedeu. Não sem antes relatar meia dúzia de três ou quatro coisas essenciais para um correto entendimento.

Amigo de infância, confidente do personagem, o cirurgião dentista Isaltino Joaquim, Quinzinho, definiu com exatidão o perfil de Tutu: “Boa praça, mas com defeito de nascença incorrigível, vive se enroscando com rabo de saia!” Tutu é o apelido de Tubertino do Equador. Proprietário de um armazém de secos e molhados na próspera localidade de Capão da Onça, adquiriu o cognome, dado pela devotada esposa Etelvina à época do namoro.

Não havia um único vivente na cidade que não desse notícias de suas travessuras. Dona Etelvina, justamente ela, a única honrosa exceção. A respeito da cara metade é bom saber que ela, pelo trato lhano e dedicação aos afazeres do lar, desfrutou vida afora de especial simpatia na comunidade. Presença obrigatória na lista anual das “dez mais”, organizada pela festejada colunista Ethel, do semanário local, foi sempre vista pelo pessoal, repetindo palavras publicadas na coluna social, como “dama de acrisoladas virtudes”, “de excelsos e peregrinos dotes”.

Anos a fio, a relação do distinto casal permaneceu imperturbada. De um lado, o “desconfiômetro” de Etelvina totalmente desligado; de outro, o Tutu a aprontar umas e outras. Partícipe ativo de vesperais e noitadas de farra, até noivar o sujeito andou noivando. Escapuliu da encrenca graças a providencial ajuda do Quinzinho. A duras penas, ele conseguiu desfazer um “acerto de contas” articulado por parentes da “noiva” ludibriada pelo “dom juan do empório”…

Municiado de álibis engenhosos, Tutu reduzia a subnitrato de pó de mico murmurações que ameaçassem quebrar a tranquilidade doméstica. Alertava sempre a esposa: “Sacumé, minha santa, pessoas como nós são alvo dos invejosos.”

Quando a cunhada surgiu com a história de que ele fora visto de braço dado com uma moça numa clínica ginecológica, Tutu safou-se do rolo com a mesma desenvoltura verbal volta e meia registrada em performances de traquejados próceres políticos surpreendidos com a boca na botija. Arrancando de Etelvina o compromisso de conservar em hermético sigilo a “confidência”, detalhou “tim-tim por tim-tim o que realmente se passou”. Solidário com fraternal companheiro, por “coincidência” o Quinzinho, enfrentando destemidamente o risco de colocar a reputação pessoal em jogo, se dispusera a acompanhar a namoradinha do mesmo a consultório médico pra teste de gravidez, que felizmente deu negativo. O companheiro, impactado pelo problema, sofreu colapso nervoso, vendo-se forçado a procurar ajuda numa casa de saúde…

Estamos pois cientes, a esta altura, que os estratagemas empregados por Tutu surtiram com habitualidade os efeitos desejados no sentido de neutralizar uma que outra desconfiança irrompida, de quando em vez, no plácido semblante de Etelvina.

O mundo de Tutu ruiu numa madrugada fatídica. O dito cujo chegou em casa com o galo já cantando no terreiro. Largou as vestes numa cadeira, botou pijama, calçou chinelo e dirigiu-se à cozinha para tomar um copo de leite. Momentos depois, Etelvina ajeitou-se ao seu lado. Com voz firme, resvalando a irritação, passou a interrogá-lo. Onde estivera? Por que o cheiro de álcool que estava impregnando a casa inteira? Por que, na roupa amarfanhada, tantos fios de cabelo feminino? Respostas engatilhadas na ponta da língua, Tutu apelou para a lábia de sempre no enfrentamento da inquirição. – “Sacumé? Houve festa de despedida de funcionário do empório por motivo de aposentadoria. Rolou bebida. Copo de cerveja, numa brincadeira de muito mau gosto, foi derramado sobre o paletó.” Quanto aos fios de cabelo, a “explicação” oferecida desconcertou Etelvina: tratava-se “apenas” de linhas de algodão que ficaram agregadas à roupa durante a visita feita, naquela tarde, à fábrica de fiação e tecelagem.

Ouvindo com toda atenção as desculpas do conjuge, Etelvina disparou a pergunta derradeira: “Aceito o que tá dizendo, mas queira agora, por favor, esclarecer como essas marcas de batom foram parar na sua ceroula? E não me venha com o papo furado de que são respingos de tinta vermelha de lata que caiu da prateleira…”

O chão sob os pés de Tubertino abriu-se em colossal fenda. A cor rosada do rosto foi substituída por palidez cinzenta. A desculpa esfarrapada em gestação engastalhou-se na garganta. Sacudido por lampejo de sensatez, prostrou-se de joelhos, mãos unidas em sinal de contrição, exclamando: – Mulher, pequei! Peço perdão!

Isso mesmo: batom em ceroula é fogo. Prova arrasadora, irretorquível, definitiva.

Será que não é, então, o caso de manjados personagens políticos da praça, ruidosamente flagrados por conta de provas também arrasadoras, irretorquíveis, definitivas, imitarem o gesto de Tutu, tornando pública na frente das câmeras cabal confissão dos malfeitos praticados? Não é improvável que as pessoas, tal qual dona Etelvina, se disponham condescendentemente a perdoá-los, mesmo que não se revelem propensas, ao contrário da crédula criatura, a aceitar eventual compromisso das ilustres figuras de não virem, jamais, em tempo algum, a reincidir nas bandalheiras intensa e prazerosamente executadas.

* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)