Roberto Bueno*

Muitos de nós pensamos que o Brasil havia dado um passo firme para a construção de um futuro perpassado pelo compartilhamento da valoração política nuclear da equidade social, em substituição a uma vetusta paisagem de senhorio feudal de engenho redivivo em que nossos olhos se deparavam com a desonra a cada esquina, agressores e agredidos pela imagem de homens tripudiados e esmagados por malsinados arranjos sociais. Mas a senha e o passaporte para a estabilização social foram jogados pela janela em algum momento da viagem.

Pensamos, durante alguns bons e dourados anos, que as instituições da ditadura haviam sofrido uma importante reciclagem democrática, e que os seus unicórnios verde-oliva recalcitrantes haviam conhecido o fim de seu tempo, obscuro e tortuoso túnel da longa noite de 20 anos. Pensamos que a anistia havia amenizado os ânimos políticos como também teria força para transformar ou, ao menos, neutralizar, a cultura autoritário-ditatorial. Supomos, erroneamente, que os atores que emergiam no novo momento histórico estavam comprometidos com o cenário de liberdades e direitos sociais que a Constituição de 1988 desenhara para todos. Pensamos, muitos dentre os democratas, que o passado tinha oferecido um duro e eficiente material para pavimentar uma via relativamente segura para o futuro, com cujo termo constitucional desenhado estariam todos comprometidos.
Malgrado atentos para o real, muitíssimos de nós não contávamos com a malsinada réstia humana, os deambulantes terços de centavo de carne e osso cujas moléculas inacabadas da ética se ocultavam sob as catacumbas mais inóspitas, dispostas e preparadas para tentar voltar a reger a ópera fantasma. Desavisados pela prudência e comprometidos pela inadvertência reflexiva, fomos novamente apresentados à realidade que a filosofia da história já conceitualizou há muito, a saber, que a história não é linear e nem contempla uma orientação evolutiva qualitativa inexorável.
Estas forças promoveram o regresso à pré-modernidade, à vileza sob o disfarce da virtude, à agressividade travestida de progresso. Foram elas, as que hoje caem, que estimularam a opulência do real miserável, cuja ira recaiu sobre o país de forma avassaladora, povo e instituições, dura e cruel, mas, sobretudo, hipócrita, rude e servil. Recai sobre os muitos que, obnubilados e arrogantes, são também destituídos de sobriedade e solidariedade, os mesmos que supõem que a fortuna bafeja(rá) sempre aos mesmos, como se a história fosse linear. São estes supostos piedosos homens que nem sequer sob continuadas missas dominicais sabem reconhecer que o supremo pecado é a indigência, eis que a ela dão guarida ao acomodar e preservar as suas condições no mundo. Tampouco percebem o quão insustentável é a perpetração da miséria, capaz de originar fortes ventos a soprar em rumo adverso aos interesses destas ímpias forças acorrentadoras.
Sob este reino animal os autodenominados gestores se encorajam a tratar os homens como máquinas singulares, com engrenagens especiais, em que o ferro é substituído por carne e osso, e o óleo pelo sangue, e a energia cada vez mais barata que os move pelo paralelo movimento de restrição dos direitos a níveis cada vez mais baixos, substituição crescente e sob custos decrescentes. Qualquer que triunfe sobre corpos que são subtraídos de si mesmos, miserável é. Quem quer que ostente riquezas supinas sobre corpos moídos não é mais do que um miserável rebento sob formato humano. Qualquer que avoque a riqueza produzida por infantes desnutridos e crianças esquálidas, eis que será ele próprio o resumo da real miséria humana apenas revestida para o seu exclusivo fim de disfarce, ostentação que precisará sempre de incremento de ainda mais espessas camadas de ouro para ocultar a sua putrefata carranca. Nem a auto-indulgência nem o perdão lhes alcançará.
Quem são os opulentos milionários e bilionários que ostentam os seus iates que valem a sobrevivência de milhares de pessoas? Quem pode se sentir à vontade dentro de um corpo que se jacta de tamanha miséria servilizadora ao seu redor? Quem são os titulares da miséria e que triunfam assim sem pejo nem rubor sobre a pele do obreiro? Quem são os opulentos que colecionam objetos enquanto a fome crassa, a sede amassa e a desnutrição se fixa em corpos mirins? Quem são estes errantes senão horrendas figuras fugidias de suas próprias sombras, imersas em caros líquidos ou pós inebriantes para disfarçar o mal de cada dia a cada final de dia? Sempre precisarão ocultar-se na multidão, mas ainda ali a solidão exercerá o seu poder e os consumirá.
Esta é a opulência da riqueza dos homens miseráveis, a quem os seus milhões aprisionam em vida em gaiolas douradas, enquanto os outros, feitos seus servos, encontram a paz antes do último suspirar. Continuarão a triunfar, uma e outra vez, acumulando, e vergando a si mesmos a cada centena de cadáveres insepultos que se somem em paralelo aos seus milhões. Mal havidos, a paz não sobrevém a alguém senão através da redenção encarnada na solidariedade cujo chamado em muito se está tardando em ouvir. Não os quadrúpedes, mas os bípedes é que são aqui tão próximos descritíveis como predadores, aqueles que estão ali togados eretos sobre o meio-fio, não aqueles que jazem, e sim as bestas-feras que os fazem jazer. Estes, sim, somos nós, todos os que por ação ou omissão deixamos o sangue escorrer até que no corpo já nada reste da seiva da vida.
Ainda em vida estes corpos são donos de arranjos singulares e ricos de sons e palavras podem ser afiados e penetrantes como facas frias, mas é preciso dizer que nada do que se escreva aqui é realmente tão frio e cru como a realidade em que eles cozem a sua dor temperada pela ignomínia. Esta é sentida na pele apenas pelos deserdados, a eles é que toca fugir do pequeno e cruento exército de homens conhecidos como oligarcas. Arregimentam as suas já reduzidas forças para enfrentar a oligarquia cujas carnes rijas e faces inóspitas nem sequer os mais famintos lobos desejarão. O pensamento progressista pode apontar a via inversa e pavimentar estradas em que a trilha é mais importante que o fim, em que, recordando a ética kantiana, o homem é o fim, e que por isto necessariamente contará mais do que a máquina, a estatística e os recursos financeiros. Mas precisamos viver como se houvesse amanhã, e construí-lo é o cotidiano desafio.
O mais gélido dentre todos os monstros gélidos são os homicidas brutais que em vida extirpam do corpo obreiro a saúde, e de suas mentes a esperança, e junto a ambos, arrebatam os seus sonhos. São eles os homicidas que criam as condições estruturais para a repetição do morticínio continuado sob condições extremas de sofrimento. É a estes homens que o perdão não pode alcançar e com quem as confraternizações são apenas meros jogos de ilusionismo e exercício lúdico irreal enganador. É para estas feras que o horizonte não chega, o sol não nasce nem o sol pode brilhar. Junto a si carregam o eterno clima soturno nublado, foto que nunca é clara, face que nunca se ilumina, obscuridade típica da vastidão das melancólicas noites eternas, emoldurados na inefabilidade dos tempos dilacerantes das quais o ostentador não se desvencilhará ainda quando acapare todo o ouro arrecadado injustamente do outro. Perecerão, como todos, à diferença sobre o tempo e o como, e eis que a miséria da opulência se encontra com o seu fim, pesados, enquanto os outros, roubados, leves. Que as terras que lhes cubra não pese tal como a desonra que impuseram e o tacão que fincaram nas multidões. Temo que não possa ser leve.

Professor universitário. E-mail: rbueno_@hotmail.com