Roberto Bueno*

No momento em que a administração federal derrete e Temer continua a plasmar o seu olímpico despreparo para qualquer função pública, algo patenteado em própria voz confessando a corrupção e outros ilícitos que lhe envolvem o âmago, revelando encarnar a face verde-oliva do autoritarismo que colore as suas entranhas. Em tal cenário, ao voltar os olhos para a prefeitura paulistana do emergente tucano temos a clara percepção de que o seu titular, João Doria, é apenas um Temer rejuvenescido, mas com idênticas faltas, ou seja, ali está um pequeno Collor.
A administração municipal de Doria evidenciou o desinteresse pelos homens e mulheres que governa, utilizando-os apenas como variáveis para a elaboração de sua estratégia publicitária. Doria é a imagem da quebra do homem político do tipo que descuida e tripudia sobre o humano, é filho da pós-ilustração sem lustro. A sua exclusiva preocupação é com a capa social da riqueza mórbida, a quem visa favorecer das mais diferentes formas. Todo o resto é puro marketing para obter apoio de uma população empobrecida a quem reserva o seu menoscabo aristocrático, todavia crescente à medida em que a pobreza aumenta, até alcançar os miseráveis, aos quais reserva o seu desprezo.
A prova cabal de sua burda indiferença foi dada por Doria quando autorizou o avanço dos tratores para destruir velhos imóveis da central região paulistana conhecida como Cracolândia e que precariamente serviam de abrigo para uma legião de homens e mulheres, enfermos de todas as idades. O só fato de investir com tratores sem a instauração do devido processo administrativo e nem obedecer ao direito já seria fato grave o suficiente, mas o caso é que a administração Doria se superou, foi muito além: a operação foi realizada com homens, mulheres e crianças ainda ocupando os imóveis! Qual o limite deste homem? Acaso a apresentação de insuficientes desculpas públicas por parte da municipalidade? Jamais. Do alto de sua desprezível encarnação unificadora da arrogância elitista e oligarquia a que pertence e alimenta fartamente, desde logo, qualquer alento derivado mesmo de um suave sopro da virtude da modéstia e da correção democrático-administrativa está de plano excluída por insuportável.
Doria está interessado no marketing, na imagem de homem de ação, mas não na correção das ações. Doria não está minimamente interessado em custos humanos, mas sim em maximizar lucros, realizar cifras e no brilho da moeda, mesmo que ordinária e obscenamente adquirida. É homem movido pela divinização do vil metal, sendo ele próprio mais vil do que o metal que glorifica e que o rege e profundamente orienta. De nobres fanfarrões a um fanfarrinho sem expressão, este se cobre de ouro acumulado à custa da radicalização da pobreza. O encantador de urnas não passa de um bruto adornado, bárbaro sob roupas de marca e pele crua. Milionário, declarou R$184 milhões de patrimônio, tendo reservado R$34 milhões deles para investimento em seu prazer com o mundo da arte, eis que, afinal, avalia por qual motivo qualquer a massa humana poderia ter o direito social natural à alimentação em desfavor do seu capricho de possuir milhões investidos em arte? Certamente, não é o seu caso, mas a aplicação de massivas quantias em arte é frequente recurso utilizado por muitos fraudadores como refúgio glamourizado para dinheiro sem origem comprovada ou para lavagem pura e simples, estratégia de conhecimento acessível a qualquer autoridade menor disposta a investigar assim como aos administradores patrimoniais e às personalidades do mundo do crime, com ou sem colarinho branco.
Na administração Doria o tratamento aos moradores de rua foi coroado com requintes de perversidade somado a já habitual crueldade tão bem marcada pela decisão do milionário gestor antipolítico, de autorizar à Guarda Civil Metropolitana (GCM) que retirasse os cobertores dos moradores de rua. É o mesmo personagem que treme quando ouve falar de aumento de tributos, mas que não gela como as suas vítimas ao projetar as consequências da ordem dadas à sua GCM. É difícil crer que a perversidade humana atinja o patamar de retirar o mínimo recurso térmico necessário para a sobrevivência de homens e mulheres que dormem ao relento ou sob o já precário abrigo das marquises. É também difícil crer que uma cidade de mais de 15 milhões de habitantes se cale ante esta postura fascistóide de uma administração submissa às ordens de um general de falsas estrelas, despreparado para as funções públicas, crente que o instrumento político eficiente para todos os males são os diversos tipos de tacape que vem sendo de utilidade para o enriquecimento de sua árvore genealógica.
São Paulo aponta com agudeza para o momento de triunfo de políticas higienistas que se imaginava terem ficado congeladas no tempo, o que se observa não ser verdade no município do prefeito que associa homens a entulhos varrendo ambos de seu caminho. Sem processo administrativo nem ordem judicial o milionário autoritário-higienista ordenou que máquinas da prefeitura destruíssem imóveis precaríssimos em que buscavam abrigo uma massa de pessoas afetadas pela dependência química, carentes de uma multiplicidade de complexos cuidados. A elas Doria apresentou a terapia da fumaça dos tratores e do gás lacrimogêneo temperado com borracha, na versão projéteis e cassetetes. Quem realmente sofre da patologia mais grave aqui?
Nada mais perigoso do que um falso intelectual incompetente, ignorante administrador e pleno incapaz repleto de iniciativas que considera desafiadoramente brilhantes, disposto a fazer o que não sabe, animado para realizar o que não pode, agitado para impor a sua desrazão ao mundo dos homens sob uma sanha moralista conduzida pelo tacape que apenas os insanos sabem brandir orgulhosamente com a firmeza da convicção. Para o bem e proteção geral, nunca deixá-lo próximo de uma churrasqueira ou de uma poderosa caneta! Doria é um inepto, homem-menino mimado e caprichoso, inculto pretensioso, cujas múltiplas viagens ao exterior o convenceram do valor do estrangeiro, (est)ética fake consubstanciada em Miami ou Los Angeles, passando a estampar em sua personalidade toda a gravidade analítica dos inúmeros neons das ruas de Las Vegas. Doria possui a densidade de um mau suflê e a profundidade do riacho em que formigas o atravessam com a água às canelas.
Doria é falso erudito a suspeitar que a boa fortuna que lhe bafejou pode também emprestar virtudes que seu corpo desconhece e a mente estranha. É apenas mais um senhor feudal ambientado no espaço empresarial paulistano a utilizar modernas formas de sugar do homem o que este quase já não pode dar. Realiza o seu mister através de novos meios que antanho concretizava o brandir de chicotes e açoites, hoje lançando mão de novas versões dos antigos capitães do mato, sempre dispostos para agir sob boa paga em diversos setores da sociedade.
O apagado personagem de brilho efêmero acelerará o seu ocaso com a velocidade das estrelas cadentes, a apressará involuntariamente através da aplicação de sua arrogância perante ao mundo, e assim a flor inculta passará do brilho que o vil metal lhe empresta para as sombras que a sua torpeza contém. O personagem acredita que a cracolândia apenas existe devido a inércia dos que lhe antecederam, e que até o momento a humanidade não pensou o que apenas a sua redentora mente seria capaz de oferecer. Esta é a típica união da arrogância com o salvacionismo bonapartista que tão bem lhes cai a um perfeito duo, Dallagnol-Doria. À jato, acionam as turbinas de suas respectivas máquinas, ambas trituradoras de homens. Doria ordena o avanço da polícia e de máquinas para tratorar a tudo e a todos na Cracolândia, literalmente, inclusive os que, porventura, dormissem ou estivessem inconscientes dentro dos imóveis, pois precisava da manchete de homem de ação que tudo resolve, rótulo que fascistas como Mussolini muito reclamaram. Doria é isto aí! Nada mais do que um rústico tacape em forma humana pronto a deitar ardentemente em corpos humanos, embora vestido com engomadas roupas de grife.
Típico do fascistóide período político presente é que um homem sem razão e nem compreensão da vida e da lógica política seja conduzido ao poder e que aja como se o quintal de sua empresa fosse e que os cidadãos, homens e mulheres, não passassem de móveis velhos que estorvam o ambiente de seu escritório e dos quais o “gestor” precisa dar destino encaminhando-os à baixa patrimonial através do setor competente, o de limpeza. Doria é muito pequeno. O seu tamanho ficou evidenciado quando interpretou que a tragédia humana de saúde pública que tem como atores centrais os dependentes químicos, seriam um problema abordável com a conjugação dos cassetetes da Polícia Militar e os esforços dos setores de varrição e limpeza. Doria revelou-se ínfimo em um tempo de homens pequenos.
A administração paulistana interpreta a miséria humana como uma questão estética que, assim como os muros, podem ser pintados, lavados, enfim, alvo da higienização, recordando o seu maestro Temer, par quem “nós não somos iguais a eles” (o povo). Doria crê que o grave problema de saúde pública que envolve os frequentadores da cracolândia se resolve com uma mera ordem de avançar dada ao Batalhão de Choque da Polícia Militar sob a estratégia de baixar o cassetete à rodo, disparar chuvas de bombas de gás lacrimogênio, disparar projéteis até de borracha, e demais barbaridades afinadas com a agressão a homens e mulheres radicalmente adoentados, fora do adequado domínio da razão e desconectados da consciência do mundo real, circunstância que apenas uma mente realmente doentia poderia concluir que neutraliza e retira destes seres a sua condição humana, permitindo agir como se fossem coisas a ser removidas de sua vista. Sendo assim, resta a pergunta sobre quem sofre de patologia mais grave, se suas vítimas diretas desconectadas do plano do real ou quem ordena os maus-tratos e a violência crua contra homens e mulheres doentes.
A massa de gente deserdada que perambula a sua doença pelos espaços da cracolândia com seus olhares vazios foi atacada e agredida pelas forças policiais do Estado. Então, era de se esperar que os tempos democráticos que tantos insistem em que vivemos fossem confirmados através da formalização de um amplo pedido de desculpas das autoridades responsáveis diretamente pela ação assim como pelo titular do poder no Município. Mas já não vivemos em uma democracia e, assim, a violência ilegal contra os cidadãos tampouco conta. As desculpas de Doria nunca vieram, e isto apenas reafirma que não se tratou de um erro de execução da operação, mas que foi a execução de sua real “política”.
A decisão da abordagem do problema não foi tomada por alguém sob a ação de drogas do tipo das que se valem as pobres vítimas que jazem no território da cracolândia mas, o que é pior, foi tomada à seco, revelando a capacidade de conceber, planejar e ordenar o mal em estado cru e bruto, ainda quando cruelmente endereçado a recair sobre homens e mulheres doentes entorpecidos e praticamente sem capacidade de reação. Esta é a política típica de tempos em que Temer governa e o temer impera, tudo voltado à imposição forçada da lógica exclusiva da realização mais imediata possível dos interesses dos especuladores do mercado financeiro e imobiliário.
Vivemos o crepúsculo que precede o amanhecer que todos nós do campo progressista saberemos como apressar com diálogo e tolerância com o mais amplo grupo de cidadãos que todavia se encontrem em zona de dúvida e fase de deciframento do real, envoltas nas névoas do golpismo que vai sendo lentamente dissipado com a exposição da genuína traição à democrática tradição da família Neves. Será preciso concertar e consertar, diálogos e pontes, com os do mesmo campo e com os diferentes, criar e recompor bases e parâmetros básicos de convergência política em que as liberdades e os direitos humanos sejam o fundamento. Este é um horizonte em que a temeridade vilã não é bem-vinda. Doria é um Temer ainda jovem, um redivivo Collor desta década, nada mais do que um milionário autoritário, tucano-higienista primitivo, dedicado apoiador da desconstitucionalização, solapador de direitos básicos de uma nação cujos valores populares não compartilha. O futuro não pertencerá às oligarquias e suas vetustas descrições de mundo. O alvorecer é sempre brilhante e colorido, e o sol, amarelo intenso, promissor quando nasce e belo-reconfortante quando se põe. O tempo ali atrás da esquina logo correrá e tornará público o que hoje ainda a névoa insiste em ocultar parcialmente sob a suave pressão da brisa que a tudo descortina e horizontes que amplia aos nossos olhos. Apropriemo-nos do porvir.

*Faculdade de Direito. Universidade de Brasília (CT)