Marília Alves Cunha*

Nem há o que se dizer diante da situação em que se encontra a pátria amada, pois estamos vivendo crises que não se resolvem, pelo contrário, aumentam de tamanho a cada dia ou a cada hora. Vivemos em situação permanente de excepcionalidade, perdemos a nossa confiança e a esperança em dias melhores, sem saber se oramos ou xingamos, se lutamos ou nos deixamos levar pela maré da sorte, se acreditamos ou ainda tentamos duvidar da parafernália fantástica que nos levou ao caos.
Por um acaso chegou-me às mãos um texto do nosso inesquecível Rubem Alves, escrito em 2004 e, diante dos acontecimentos, diante do fato de que a ânsia do poder e a ambição levaram as pessoas a atentarem tão violentamente contra a pátria, peço licença para reproduzir neste blog.
O sonho dos ratos
“Era uma vez um bando de ratos que vivia no buraco do assoalho de uma casa velha. Havia ratos de todos os tipos: grandes e pequenos, pretos e brancos, velhos e jovens, fortes e fracos, da roça e da cidade. Mas ninguém ligava para as diferenças, porque estavam todos irmanados em torno de um sonho comum: um queijo enorme, amarelo, cheiroso, bem pertinho dos seus narizes. Comer o queijo seria a suprema felicidade… Bem pertinho é modo de dizer.
Na verdade, o queijo estava imensamente longe porque entre ele e os ratos estava um gato… O gato era malvado, tinha dentes afiados e não dormia nunca. Por vezes fingia dormir. Mas bastava que um ratinho mais corajosos se aventurasse para fora do buraco para que o gato desse um pulo e, era um vez um ratinho… os ratos odiavam o gato. Quanto mais o odiavam mais irmãos se sentiam. O ódio a um inimigo comum os tornava cúmplices de um mesmo desejo: queriam que o gato morresse ou sonhavam com um cachorro…
Como nada pudessem fazer, reuniam-se para conversar. Faziam discursos, denunciavam o comportamento do gato (não se sabe para quem) e chegaram mesmo a escrever livros com a crítica filosófica dos gatos. Diziam que um dia os gatos seriam abolidos e todos seriam iguais. ”Quando se estabelecer a ditadura dos ratos”, diziam os camundongos, “então todos serão felizes”…
– O queijo é grande o bastante para todos, dizia um.
– Socializaremos o queijo, dizia outro.
E todos batiam palmas e cantavam as mesmas canções. Era comovente ver tanta fraternidade. Como seria bonito quando o gato morresse! Sonhavam! Nos seus sonhos comiam o queijo. E quanto mais o comiam, mais ele crescia. Porque esta era uma das propriedades dos queijos sonhados: não diminuem, crescem sempre. E marchavam juntos, rabos entrelaçados, gritando : “ O queijo, já…”
Sem que ninguém pudesse explicar como, o fato é que, ao acordarem, numa bela manhã, o gato tinha sumido. O queijo continuava lá, mais belo do que nunca. Bastaria dar uns poucos passos para fora do buraco. Olharam cuidadosamente ao redor. Aquilo poderia ser um truque do gato. Mas não era. O gato havia desaparecido mesmo. Chegara o dia glorioso, e dos ratos surgiu um grito retumbante de alegria. Todos se lançaram ao queijo, irmanados numa fome comum. E foi então que a transformação aconteceu. Bastou a primeira mordida. Compreenderam, repentinamente, que os queijos de verdade são diferentes dos queijos sonhados. Quando comidos, em vez de crescer, diminuem. Assim, quanto maior o número de ratos a comer o queijo, menor o naco para cada um. Os ratos começaram a olhar uns para os outros como se fossem inimigos. A briga começou. Os mais fortes expulsaram os fracos a dentadas e, ato contínuo, começaram a brigar entre sí.
Alguns ameaçaram chamar o gato, alegando que só assim se restabeleceria a ordem. O projeto de socialização do queijo foi aprovado nos seguintes termos: “Qualquer pedaço de queijo poderá ser tomado dos seus proprietários para ser dado aos ratos magros, desde que este pedaço tenha sido abandonado pelo dono”. Mas como rato algum jamais abandonou um queijo, os ratos magros foram condenados a ficar esperando. Os ratinhos magros, de dentro do buraco escuro, não podiam compreender o que havia acontecido. O mais inexplicável era a transformação que se operara no focinho dos ratos fortes, agora donos do queijo. Tinham todo o jeito do gato, o olhar malvado, os dentes à mostra. Os ratos magros nem mais conseguiam perceber a diferença entre o gato de antes e os ratos de agora. E compreenderam, então, que não havia diferença alguma. Pois todo rato que fica dono do queijo vira gato. Não é por acidente que os nomes são tão parecidos.”
Pois é, lendo este texto escrito em 2004, mas que serve a muitas ocasiões, podemos refletir sobre várias coisas. A reflexão é livre, assim como qualquer conclusão que se possa tirar. Como são estranhos os seres humanos nos seus encontros e seus antagonismos… Ops, desculpem-me, estamos falando de gatos e ratos…

*Educadora – Uberlândia