“As crueldades e as perfídias inerentes à guerra
cobrem o ser humano de uma infâmia mortal.
(Anatole France)
Revi o “Apocalipse now” indoutrodia. A fita é relacionada por muitos cinéfilos entre os clássicos dos dramas de guerra. A atmosfera asfixiante de ambiente povoado por ferocidade bélica é muito bem retratada, adquirindo ênfase na magistral interpretação de Marlon Brando como o sinistro coronel Kurtzz. Recordei-me de pronto que não se trata apenas de personagem de ficção, ao contrário do que se possa imaginar. O coronel é uma figura de carne e osso.
O nome dele é Flint Cole. Militar aposentado do Exército, vivia até recentemente em São Francisco, Estados Unidos, carregando consigo as lembranças tenebrosas de uma guerra sem quartel em que esteve envolvido no Laos. Uma guerra clandestina não admitida oficialmente pelo governo dos Estados Unidos.
Esplêndido documentário levado ao ar tempos atrás pela GNT colocou-nos a par da inacreditável trama. Repórteres estadunidenses, mergulhando fundo em pesquisa que se arrastou por meses e varou continentes, conseguiram compor o assustador itinerário de vida do temido “senhor da guerra” das selvas laosianas. Condecorado como herói na 2ª Guerra Mundial, o coronel foi recrutado pela agência de espionagem CIA, na Tailândia. Deram-lhe a incumbência de organizar um exército mercenário, agregando nativos de uma etnia hostil às forças comunistas do Vietnã que mantinham sob seu jugo parte do território do Laos. Dirigentes daquela agência e membros do serviço diplomático americano deixaram claro para Cole que sua ultrassecreta missão, abrindo novas frentes de batalha, jamais seria oficialmente reconhecida. A posição dos que estavam contratando seus serviços profissionais seria a de negar enfaticamente, em qualquer circunstância, informações ligadas às atividades do coronel que eventualmente viessem a escapar aos controles rígidos da censura oficial.
Os desdobramentos do caso podem ser assim resumidos. A “guerra que não houve” tendo por palco o Laos transformou-se numa tremenda carnificina. Centenas de milhares de pessoas foram mortas. Consta que os aviões despejaram mais bombas nas áreas conflagradas do que na segunda guerra mundial inteira. Kurtzz, ou seja Cole, combatente sanguinário, à frente de grupos bem municiados, tomado de delírios de mando, alterou os rumos da maluca missão que lhe foi atribuída. Acabou montando um esquema de guerra todo pessoal. Num determinado momento, a situação fugiu inteiramente ao controle e às orientações de seus superiores. O exército particular do coronel praticou atrocidades sem conta. A decapitação de inimigos, a retirada de seus órgãos como troféus de guerra e até mesmo a prática do canibalismo compuseram o estoque de maldades que, anos a fio, cuidou de espalhar na zona convulsionada e que lhe valeu a lenda aterrorizante projetada mais tarde no cinema.
O documentário a que fazemos alusão é impressionante. Os depoimentos reunidos são de estarrecer um frade de pedra. Os repórteres chegam, no final da investigação, a confrontar o coronel, então residente em São Francisco. Já tinham ouvido, no Laos, na Tailândia, nos Estados Unidos, arrepiantes relatos de outros personagens do brutal drama encenado. As declarações de Cole confirmaram, em gênero, número e grau, os desatinos e barbaridades acontecidos nas selvas laosianas. Na entrevista, em que se conduziu com perfurante frieza, o cara ressalta que as guerras são mesmo assim: algo infernal. Todos nutrimos, verdade seja dita, a impressão de que é isso mesmo. Mas as palavras e o percurso guerreiro do coronel deixam-nos diante de inimaginável dimensão de horror.
Contribuem para que se apreenda melhor aquilo que Padre Vieira sustenta nos “Sermões”: “É a guerra aquela calamidade composta de todas calamidades, em que não há mal algum que ou não se padeça, ou não se tema; nem bem que seja próprio e seguro.”
* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br