Roberto Bueno*

O conjunto de ocupantes do atual governo constituído à raiz de um golpe de Estado exerce o poder sob base de legalidade comparável a do golpe de 1964, quando ocorreu a falsa declaração da vacância do cargo, posto que público e notório que o Presidente João Goulart se encontrava em Porto Alegre. No Estado de exceção o Estado de direito passa de condição essencial de organização e mediação da vida para um segundo plano que adquire importância nada mais do que para servir como um véu decorativo.
Hoje o poder estabelecido já mal disfarça os seus atos de força, tal como ocorreu na ordem para cercar o Congresso no dia 9 de maio de 2017 para que assim fossem analisados todos os destaques da reforma Previdência, em uma clara demonstração de que ali se faria a impostura de votação legal, posto que a população brasileira a ela se opõe em sua quase totalidade segundo indicam os dados levantados pela imprensa. O Congresso não poderia ouvir a voz do povo, e para tanto foi montada uma genuína operação de guerra, com escudos, armas pesadas e máscaras de gás para que, sob força, pudesse se realizar a pantomima de uma falsa sessão legislativa de aprovação da nova legislação previdenciária em que conhecemos o solista assim como o coro narrativo que o acompanha.
No roteiro teórico do Estado de exceção é a figura do soberano aquela que decide isoladamente quando o direito será suspenso e quando ele será restaurado. À diferença do conceito clássico que não propõe expressamente alternâncias sucessivas entre o Estado de exceção e a normalidade jurídica, o atual governo brasileiro derivado de golpe de Estado constituiu um Estado de exceção no qual oscila pendular e rapidamente entre a aplicação do direito posto e o rompimento da ordem jurídica, apresentando um swing coberto pela grande mídia para ocultar a real característica do sistema jurídico-político sob o qual vivemos que é a de configuração da exceção.
A diferença que medeia entre o clássico conceito de Estado de exceção e o Estado de exceção que se configurou modernamente é que enquanto o primeiro propõe a exceção para os casos em que se verifique intenso comprometimento da ordem, por outro lado, uma trupe-quadrilheira apenas quer assaltar o poder e utiliza o conceito como pretexto. Sem embargo, é preciso construir bases legitimadoras, e para isto buscam alternativas para legalizar as suas estratégias. Neste sentido precisam de uma densa cortina de fumaça e, assim, criam artificialmente uma situação de crise extrema que possa justificar as suas aspirações de subversão da ordem. É neste momento que a grande mídia entra em cena.
Será com o apoio da grande mídia que quadrilhas assaltantes do poder e da riqueza nacional podem falsificar a narrativa do real, que terão êxito em redescrever falsamente as estruturas e influenciarão potentemente na percepção pública da realidade. Esta é a premissa para que os quadrilheiros alienadores de bens alheios justifiquem a implementação de seu Estado de exceção, conscientes de que precisam agir muito rápido, pois o efeito da publicidade tem encontro marcado com o peso da concretude da vida, que logo se fará sentir por uma irada população com consequências imprevisíveis.
Enquanto isto, as correias de transmissão do golpe são acionadas e respondem adequadamente. Na esfera jurídica observamos como o Estado de exceção foi reconhecido em decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região situado na cidade de Porto Alegre, capital de Estado que já realizou movimento independentista e ergueu barricadas pela legalidade em 1961.
O Estado de exceção reconhecido pelo citado Tribunal funciona sob a lógica do voluntarismo e da suspensão do governo das leis, é a substituição da legalidade-legitimidade pelo recurso à negação de ambas em prol da visão messiânico-salvacionista do Estado. Esta manobra é realizada através do império da vontade de um só ou de poucos e, em qualquer caso, de um regime autoritário-elitista, do que é exemplo o presente caso brasileiro.
O reconhecimento judicial do Estado de exceção transmite uma seríssima mensagem ao conjunto dos atores jurídicos. Informa aos órgãos julgadores que podem dar azo e livre curso ao abandono, a qualquer momento, dos parâmetros legais para realizar os julgamentos. Isto é o que vem acontecendo em diversos casos face aos quais os aplicadores do direito – mesmo a Suprema Corte Federal – vem adotando diferentes critérios e decisões. Claro exemplo disto foi o da nomeação do ex-Presidente Lula para a Chefia da Casa Civil do Governo Dilma Rousseff, então impedida pelo Ministro Gilmar Mendes, enquanto que, já no Governo Temer, não foi impedida a nomeação de Moreira Franco para o mesmo posto, malgrado a gravidade das denúncias que sobre ele pesavam, que preenchiam todos os requisitos legais que, por certo, o ex-Presidente Lula não preenchia, mas que mesmo assim resultou impedido de assumir a Chefia da Casa Civil. O direito pereceu, a exceção triunfa nesta quadra.
O Estado de exceção foi sendo configurado no decorrer dos dias, sendo o juiz Moro o seu ponta-de-lança, cujo ápice foi ter passado ao largo da claríssima determinação legal que o obrigava a reenviar para o STF qualquer processo em que fosse de algum modo implicada a Presidência da República. Moro ignorou completamente a lei e não somente não cumpriu o seu dever como ainda a violou em dois pontos essenciais: (a) não inutilizou as gravações feitas após o lapso temporal para o qual a Polícia Federal tinha autorização para realizar e (b) vazou para a imprensa o teor das gravações sob a sua responsabilidade e que, por conter conversas da Presidência da República, já não eram de sua competência, mas do STF. É este o juiz que patenteou o seu profundo desapreço pelo direito enquanto mero meio e, paralelamente, o seu exclusivo desejo de instrumentalizá-lo para cumprir os seus próprios fins e o de seus simpatizantes. O referido magistrado não cansa de tentar mobilizar a população através de entrevistas, conferências e vídeos logo publicados na rede mundial de computadores, assumindo conduta típica de um político em campanha, no caso, para a condenação das lideranças de um específico segmento político democrático-popular.
Nesta circunstância o Estado de exceção vai-se tornando de inviável ocultação na medida em que o direito é instrumentalizado e apenas utilizado quando conveniente para determinados e bem localizados fins políticos, à revelia dos princípios e do conjunto de regras processuais que prevê para a sua aplicação. O Estado de exceção suspende estas normas em conjunto ou, ao menos, as disponibiliza para o uso conforme julgue conveniente o soberano, cujo voluntarismo nesta quadra da história brasileira se resume na ruptura do pacto entre capital e trabalho.
O Estado de exceção sob o Governo Temer se configura exatamente no respeito apenas eventual pela lei, e em sua clara instrumentalização para fins particulares e não para o cumprimento daqueles que a legislação se propõe, e muitos são os exemplos. Um deles envolve o favorecimento do Presidente ao seu Ministro Geddiel Lima em reuniões realizadas no Planalto para que lhe fosse facilitada a compra de imóvel, mas que dependia de documentação cuja emissão se encontrava sob a competência dos subordinados do Ministro da Cultura, Marcelo Calero, a quem Temer pressionou para que resolvesse.
No Estado de exceção o voluntarismo se sobrepõe às leis propondo uma interrupção, um corte no sistema jurídico que passa à tutela de um soberano, que determinará quando a lei será ou não aplicada, e também quando (e se) a ordem será restaurada definitiva e plenamente. No Estado de exceção da era Temer não há esta clareza do cenário proposto pela filosofia política clássica em que ocorre, primeiro, um claro corte e, depois, a instituição da normalidade. O Estado de exceção do regime temeriano inaugura uma modalidade excepcional que opera como um jogo de sombras, um swing sucessivo, uma alternância entre a aplicação do direito posto e as decisões fundamentadas no puro arbítrio do soberano. A era Temer conta com os holofotes da mídia para fazer o jogo de sombras que ofusca e distrai sobre a percepção da real natureza do regime, conta com uma mídia obnubiladora das mentes que seguem crentes que vivem sob a democracia previsível em um Estado de direito.
O Governo Temer não criou uma tipologia especial do Estado de exceção, mas sim uma variável particular, a de um poder transgressor que já não está concentrado na figura de um só, o soberano, mas sim disseminado entre diversos atores. Este poder excepcional foi transferido de uma fonte única e exclusiva do Poder Executivo conforme previsto pela teoria clássica para uma realidade multifacetada de atores bem coordenados entre si por interesses quando não por planejamento. Este conjunto tem disposição e interesse em exercer o seu poder para um fim comum bem definido, a saber, o da eliminação dos mais poderosos atores políticos capazes de enfrentar o novo sistema e a nova ordem econômica que pretendem impor à população.
Fugindo ao modelo, no caso brasileiro o Estado de exceção não foi declarado, mas ele está em vigor, mesmo sem um instrumento jurídico. O acordo de fundo é o de que atores extrapolem as suas competências enquanto outros não exerçam as suas funções de controle. Este proceder consentido e não combatido pelas mais altas instituições do Estado virtualmente corrompeu radical e irremediavelmente o nível de garantias providas pela teoria clássica da separação dos poderes.
Em seu momento muitas foram as críticas realizadas ao positivismo jurídico e o seu formalismo, pois nele o magistrado permanecia absolutamente limitado a reiterar através de sua boca o que fosse a exata vontade da lei (la bouche qui prononce les paroles de la loi), embora já corressem advertências quanto a que a pior das ditaduras seria a do Poder Judiciário. Nos tempos correntes é perceptível que muitos magistrados calam a voz e o sentido da lei impresso pelos representantes populares – sublinhe-se que em um sistema já bastante viciado pela intervenção decisiva da oligarquia – para dar vez e voz, cem por cento, à concretização da vontade dos grupos no poder.
É nestes termos que entramos irremediavelmente e a passos largos na trilha da consolidação de um forte sistema autoritário cujo perfil vamos vislumbrando melhor no horizonte a cada dia, tal como exemplificado pela proposta de postergação das eleições de 2018, mas também pela medida de força de isolar a representação política dos eleitores como ocorreu na primeira semana de maio de 2017 quando os cidadãos foram impedidos de entrar no Congresso quando da votação da importante reforma da Previdência.
O Estado de exceção há muito é uma realidade no Brasil, mas apenas ganha real atenção da classe média quando, de tempos em tempos, ele ressurge e transcende a realidade das periferias e passa a influenciar o cotidiano da classe média. O Estado de exceção é hoje uma triste realidade, pois o povo foi afastado do processo de tomada de decisões e as normas jurídicas que deveriam sustentar a pauta dos processos políticos e judiciais deixaram de fazê-lo, substituídas pelo puro voluntarismo de uma oligarquia ilegítima. O Brasil hoje experimenta momento histórico em que a condução da vida pública desconhece a submissão ao direito e nem atenta aos diversos sinais da população e isto, embora não declarado, apenas pode ser classificado politicamente como Estado de exceção.

*Pós-doutor. Faculdade de Direito. UnB (CT). E-mail: rbueno_@hotmail.com