Gilberto Neves*

Madrugada de 21 de Abril de 2017. Baile de formatura dos alunos de engenharia civil da Universidade Federal de Uberlândia. Palácio de Cristal. Ambiente faustoso. Festa tranquila. Uma moça negra de 23 anos que saía do baile, elegantemente trajando um rendado vestido branco, teve seu colorido turbante arrancado à força por seis estudantes de classe média brancos. Sob debochadas risadas, Dandara Tonantizin se viu ainda encharcada de cerveja atirada pelos covardes. Uma agressão machista a uma mulher indefesa. Uma ofensa racista a uma mulher por seus trajes alusivos à estética negra e à religiosidade afrobrasileira.
O que leva brancos a cometerem agressão físico-psicológica, humilhando e constrangendo uma pessoa sem sequer precisar de motivo? “Do nada”, surge uma estúpida agressão a uma negra. Por que o racismo é tão “gratuito”? Não foi um revide a alguém que supostamente tivesse agredido o outro levando-o a devolver a ofensa com um componente racial. Foi uma atitude de explícito incômodo à presença de uma pessoa orgulhosa de sua identidade negra.

Afinal, o que é o racismo?

Muita gente ainda acha que o racismo é uma “ideologia” do capitalismo para ampliar a exploração do trabalho negro. Claro que a discriminação e a exclusão negras favorecem a maior exploração do trabalho negro, com a sua baixa qualificação, salários desiguais para trabalhos equivalentes, a não presença dos negros nas diretorias ou posições de status e outros. A consequência lógica dessa “certeza” é que, abolindo-se a exploração capitalista, seria eliminada a “causa” do racismo. Será? Então por que nas sociedades que superaram o capitalismo não foi superado o racismo? Ou, por que o fim da escravidão não acabou com o racismo?
A forma do racismo se dá com distintos tipos de ideologias em diferentes sociedades. Exemplos: democracia racial (Brasil), intocáveis (Índia), gota de sangue (EUA) e cor cubana (Cuba). A permanência do racismo nas sociedades pós-capitalismo indica que outras seriam suas causas. Baseio-me em elementos de um novo estudo sobre os fundamentos do racismo, sua permanência e a relação dessa visão com o ocorrido à Dandara.
Segundo essa hipótese, o racismo é uma “construção histórica” surgida desde “tempos profundos” a partir de violentos choques populacionais ao longo dos processos de luta por territórios, caças e regiões favoráveis à sobrevivência. Em dados momentos, populações brancas chocaram entre si, mas também com as populações negras, amarelas, mongóis etc. O choque com os negros foi um dos mais intensos gerando maior estranhamento devido à cor da “pele escura”. Eram “bárbaros” ou “estrangeiros” com cor e traços “incômodos”. O fenótipo é como os animais se identificam ou se afastam. Os brancos vieram das montanhas do norte, os negros das planícies e planaltos do sul. Uma boa demonstração destes choques é o filme “10.000 Mil Anos A.C.”
Destes choques resultaram guerras em que, ao final de muitos combates por conquistas e domínios, os brancos saíram vitoriosos, impondo genocídio e escravidão. Durante muito tempo essa lógica foi regra geral entre povos conquistados, brancos ou negros. Sempre que vitoriosos, os conquistadores impuseram sua versão histórica da conquista. Teatros, canções, textos literários, mitos, lendas e até passagens religiosas serviam impor a história dos vencedores. Em relação às vitórias contra os “peles escuras”, o fenótipo era o critério de acesso ou não aos recursos. Mas o que era um dado da natureza (diversidade) foi se tornando valoração moral que chegou ao racismo (branco, do “bem; negro, do “mal”). Assim, surgiu o mito da supremacia branca, apoiada até mesmo em textos religiosos em que deuses puniram os peles escuras. Mito de Cam e passagens do Bagavah Gita e outros vieram reforçar a ideia dos “peles escuras” condenados por seus pecados, aparência pavorosa e sub-humana e inferior. A secular associação do fenótipo (aparência negra) à sua suposta inferioridade “biológica” e seu aspecto pavoroso tornou-se ideologia para justificar a supremacia branca. Justificar extermínios, crueldade e escravidão. Entrou em campo a ciência para “provar’ a existência biológica de raças e sub-raças. Por muito tempo, a igreja católica apoiou a escravidão por considerar os negros raça sub-humana. Depois que a ciência foi desmascarada, a igreja pediu perdão. Portanto, o racismo enquanto ideologia de superioridade branca é anterior à escravidão negra, e não posterior. No entanto, no período das conquistas e colonização européia do Novo Mundo (pós 1500) a justificação da escravidão pré e pró-capitalismo foi se circunscrevendo exclusivamente às populações negras. Foi-se deixando fora brancos e índios subjugados.
O racismo desenvolveu-se como um sistema desumanizador, e não apenas um caso de ofensa pessoal. O negro foi de todas as formas possíveis massacrado como inferior e pavoroso. Um sistema de exclusão e domínio branco que se recicla e funciona desde as leis à policia; das escolas e faculdades à televisão; do mercado à política; da cultura e da academia à intelectualidade, sempre construindo a “negatividade negra” para justificar seu não lugar e sua coisificação. De tal forma que um racista chega a ter mais sentimentos aos animais do que ao indivíduo negro. Desumanizando-se, aceita-se a brutalidade e a ofensa à dignidade sem peso de consciência. Desta forma, o sistema construiu (e ainda reafirma) no inconsciente social a “natural” associação negro = malvado/inferior. Em algumas pessoas em grau explícito, noutras de forma imanente ou adormecida.
É isso que explica o fato de vizinhos amigos de diferentes fenótipos por muitos anos num fatídico dia o branco agredir racialmente o negro por motivo fútil. Exemplo: Um deles deixar o carro na frente da garagem do outro. Ou, o patrão numa desavença com o empregado falar “pra não fazer serviço de preto”. Vem daí um jovem branco achar que o baile de formatura não é lugar de uma mulher negra vestida exuberante e afirmando sua identidade racial e cultural.
Ainda mais se sua beleza negra (quem sabe?!) despertar a inveja de suas namoradas brancas. Somente essa “introjetada” sensação do não lugar da negra e da sua inferioridade explica o despertar (nada gratuito) da intolerância desumana e da brutalidade covarde. É desumano porque estes racistas depois até se escondem, mas para se valerem da impunidade, e não porque seria errado debochar e ofender “uma negra que não pode estar lá nem muito menos afirmar sua identidade”.
Felizmente, a ampla repercussão do caso e a revolta contra os racistas revela a crescente rejeição ao racismo por brancos e negros. E, que o movimento negro tem conseguido produzir novas consciências antirracistas e fincar conquistas institucionais para punir e fazer retroceder a racismo.

*Professor e advogado – Uberlândia – MG