Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Enquanto Trump vai lançando seus perdigotos grosseiros, mal intencionados ou mentirosos sobre o Brasil e outros países, o mundo gira e revela que cada vez mais a potência mundial de outrora, embora ainda mantenha parte de seu poderio, a graças ao arsenal militar e de outros recursos que ainda possui, vai caminhando em direção ao abismo, tanto simbólico como material. Já ninguém duvida disso, principalmente porque os EUA já perderam quase totalmente sua aura, construída de forma questionável, aliás, de serem paladinos e grandes defensores da democracia no mundo. Neste campo, em comparação com o Brasil, por exemplo, a ciência política independente tem demonstrado que nossos mecanismos de proteção da democracia real foram muito mais eficientes do que os deles, rebaixados que foram por Trump ao estatuto de uma república bananera. O nosso oito de janeiro, embora sem afastar todos os riscos, foi resolvido de maneira muito mais certeira do que o seis de janeiro deles. Se podemos orgulhar da nossa Democracia, o mesmo se pode dizer a respeito do nosso Sistema de Saúde, o SUS, embora este não seja devidamente compreendido por parte da população – até porque ainda precise ser aprimorado, e muito. Mas em comparação com o deles, o nosso SUS ganha disparado…
Algo que ilustra bem os dilemas do sistema de saúde nos EUA é a nomeação, por Trump, do Secretário (Ministro) da Saúde, o cidadão Robert Kenedy, de nobre estirpe política, mas que na verdade tem um histórico de negacionismo e tosquice, inclusive quanto à eficácia e eligibilidade de vacinas, além de defender posições obscurantistas e retrógadas nas questões de saúde pública. Os impactos do trumpismo na saúde já estão se mostrando claramente no país, entre eles a redução de verbas para pesquisas e programas sociais, além de enfraquecimento da regulação governamental, com reais restrições de acesso à saúde, dentro de um panorama que em si já era restrito.
Nos EUA os seguros privados de saúde, no Brasil denominados de “planos de saúde” dominam amplamente o cenário e assim perto de 160 milhões de pessoas, inclusive imigrantes, são abrangidos (apenas) por eles.
Quando comparada aos outros países da OCDE, a performance estadunidense em termos de resultados em saúde é bastante medíocre, seja em termos de acesso, eficiência, equidade e cobertura, mesmo sendo o país que mostra, ao mesmo tempo, o maior gasto global ou per capita entre todos eles. Além disso, as perspectivas são de piora progressiva com as transições demográficas e epidemiológicas já em curso, não somente lá como no resto mundo.
O sistema vigente nos EUA, diferente daquele do Brasil, do Reino Unido e outros países da Europa, não possui a característica formal da universalidade, ou seja, garantia de direito à saúde, com acesso a todos os grupos populacionais, independente de pagamento ou outra forma de vinculação. Ali, do ponto de vista da ação pública, se estabeleceram historicamente apenas programas restritos a grupos vulneráveis, como são os casos do Medicare e Medicaid, expostos a seguir. Fora disso, as coisas devem ser resolvidas no Mercado, através de planos de seguro-saúde, ou seja, o direito é apenas garantido para quem pode pagar os pacotes de serviços. O resultado é que um número estimado em 8 milhões de pessoas naquele país não dispõe de qualquer forma de acesso garantido à saúde, nem mesmo através de tais programas públicos, que na realidade são mistos, com parte de seu financiamento vindo do próprio bolso das pessoas.
O programa Medicare é basicamente destinado às pessoas com mais de 65 anos de idade e também a portadores de doenças crônicas, com foco especial nos pacientes que necessitam de diálise renal. Mesmo este programa, destinado a pacientes em condições especiais, requer pagamento prévio de seguro. Ele oferece também a possibilidade de se adquirir seguros adicionais em condições financeiras mais vantajosas, mostrando assim que não interfere de fato com as bases do sistema, que sempre envolvem transação monetária. Este seguro adicional é regra dentro do sistema, constituindo opção de 90% das pessoas dentro dele. A cobertura de medicamentos exige, também, um plano separado – e pago.
O Medicaid é aplicável a pessoas de baixa renda (até cerca de 15 mil dólares anuais), abrangendo prioritariamente crianças e mulheres grávidas. Oferece a cobertura do Medicare e mais serviços de transporte (ambulâncias), atenção domiciliar, casas de repouso e serviços auditivos e de visão. Embora seja de regulação federal, os estados têm certa autonomia para gerir os benefícios, gerando diferenciações diversas ao longo do país, nem todas baseadas em princípios de equidade.
Umas das poucas mudanças substantivas na organização da saúde pública nos EUA foi o Affordable Care Act, desencadeado sob a presidência de Barack Obama, em 2010, motivo pelo qual ficou conhecido como ObamaCare. Este programa aumentou substancialmente o acesso dos cidadãos á saúde, não através de uma política como o SUS (saúde como direito de todos), mas sim pela redução de preço e facilitação do acesso ao seguro saúde tradicional (pago) no sistema dos EUA, além de incremento na proteção dos consumidores. Ao lado disso, reduziu a idade, a menos de 65 anos, para acesso ao Medicare, reduzindo também o limite de renda para tanto. Os efeitos depois de uma década se fizeram notar, com redução de cerca de 50% no volume de pessoas descobertas. Os governos democratas, como o de Obama e de Biden reforçaram tais medidas, mas elas têm sido vigorosamente combatidas por Trump, sem total sucesso, todavia, graças ao apoio popular que o ObamaCare desfruta.
As perspectivas sistema de saúde do EUA, que não prima historicamente pela universalidade nem pela equidade, na vigência das atuais políticas trumpianas, são naturalmente sombrias. Trump se comprometeu, na última campanha, a não tocar no Medicare, a não ser para aumentar as restrições a imigrantes. Mas as ameaças ao ObamaCare não são desprezíveis, incluindo, por exemplo, restrições financeiras federais com consequente mudanças na cobertura e cardápio de serviços oferecidos, aumentando a desproteção aos mais vulneráveis. Neste sentido, estima-se que já no primeiro governo do republicano mais de dois milhões de pessoas acabaram por perder a cobertura nos programas públicos e que é provável que este número cresça mais ainda nos dias atuais. Além disso, procura-se dar mais autonomia aos estados, atenuando a regulação federal, o que poderá também trazer consequências negativas para a proteção social no país. Contudo, há polêmicas não resolvidas em tais medidas, já que os prejuízos para os cidadãos, principalmente de áreas rurais e empobrecidas, são notórios, o que certamente poderá conter o ímpeto antiestatista dos políticos republicanos.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário de Saúde em Uberlândia e sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade