Dr. Flávio de Andrade Goulart*
A medicina é, sem dúvida, uma profissão que remunera bem seus praticantes. Faz parte do senso comum tal afirmativa e na verdade se confirma pelas estatísticas. Quantos jovens e respectivas famílias não elegem a Medicina como profissão, realizando os maiores esforços, tanto intelectuais como materiais, exatamente por este motivo? Alguns dados sobre o assunto: no Brasil, segundo dados da Receita Federal, a renda média mensal dos médicos foi de R$ 30,1 mil em 2020; tal rendimento varia entre as unidades da Federação e as capitais do país, onde médicos declaram, em média, renda 13,3% maior do que no interior; os maiores rendimentos médicos no Brasil estão registrados em Macapá (R$ 37,6 mil), Brasília (R$ 37,3 mil), Rio Branco (R$ 35,8 mil) e Curitiba (R$ 35,4 mil); as capitais com menores rendimentos são Salvador (R$ 27,2 mil), Aracaju (R$ 27,9 mil) e São Luís (R$ 28,2 mil). No DF, médicos declararam renda acima de R$ 37 mil mensais, valor 49,0% acima do que é declarado na Bahia, por exemplo, sendo este o estado com menor rendimento médio. Os rendimentos variam com a idade e o sexo dos profissionais, sendo que aqueles que estão entre os 51 e os 60 anos de idade auferem o maior rendimento declarado, enquanto as mulheres médicas mostram renda de 64% em relação àquela dos homens. Estas são a algumas das conclusões do estudo sobre Demografia Médica que vimos apresentando e discutindo aqui no blog nas últimas semanas (https://www.fm.usp.br/fmusp/conteudo/DemografiaMedica2023.pdf). Nele se mostra ainda que os médicos estão na sexta posição nacional entre os maiores rendimentos declarados no IRPF, ficando atrás apenas de profissões como titulares de cartório e o pessoal do Ministério Público, Poder Judiciário, diplomatas e alguns advogados. A medicina figura, sem dúvida, entre as atividades mais rentáveis do país e, entre as profissões da saúde, a mais bem remunerada, com renda média em patamar bem mais elevado que a da população com nível superior de escolaridade. Em tal panorama, o DF mais uma vez se sobressai, com uma das melhores rendas médicas do país, porém em forçoso contraste com a respectiva produtividade, que é a mais baixa em termos nacionais, conforme discutimos no post da semana passada (ver link). Vamos detalhar melhor isso.
Alguns achados adicionais deste estudo:
1. Os dados aqui apresentados têm como fonte declarações de IRPF, não se referindo unicamente ao exercício da medicina, sendo divididos em termos de salários e atividade profissional; sujeitos à tributação exclusiva (13º, aplicações financeiras e ganhos de capitais, por exemplo), além de isentos, como transferências patrimoniais, lucros e dividendos.
2. Em 2020, a Receita Federal registrou declarações de quase 90% dos médicos do país, sendo que parte deles, apesar de terem registro em CRM, declara outra ocupação principal junto à Receita Federal; existem também não declarantes, como os médicos residentes, que representam cerca de 8% dos profissionais do país, e que recebem bolsa de Residência Médica, isenta de Imposto de Renda (IR).
3. O rendimento médio mensal declarado dos médicos brasileiros foi de R$ 30,1 mil em 2020, sendo o menor valor da série histórica desde 2012,com tal diminuição podendo ser atribuída, em parte, às mudanças demográficas da população de médicos, com a entrada de profissionais mais jovens no mercado de trabalho.
4. A renda média mensal declarada dos médicos varia consideravelmente conforme a idade, com os médicos mais velhos declarando maior rendimento; a renda deles praticamente dobra entre as faixas etárias 19-30 anos e 31-40 anos, triplicando na faixa seguinte, 41-50 anos.
5. Na faixa 61-70 anos o médico tem ligeira redução, de 3%, na renda e na faixa de 71 anos ou mais a diminuição é de 17%, o que possivelmente coincide com aposentadorias ou redução de jornadas de trabalho e da parte da renda derivada do exercício profissional.
6. O presente levantamento reforça fato já documentado na literatura, que é os homens receberem remuneração maior do que as mulheres, sendo que as diferenças tendem a persistir mesmo com ajustes por especialidades e carga horária.
7. Desigualdades regionais de rendimento também existem e são intensas: estados com baixa densidade de profissionais por habitante, como AP, AC, RR e MT, por exemplo, registram maior rendimento, enquanto alguns estados, como MA têm rendimentos abaixo da média, mas também menor razão médico/habitante. O rendimento declarado em 2020 por médicos do conjunto das capitais foi de R$ 32 mil mensais em média, o que é 13,3% maior do que a renda média do estado.
8. As assimetrias registradas podem estar ligadas a múltiplos fatores concorrentes ou sobrepostos, entre eles o desenvolvimento socioeconômico da região e a oferta de médicos em relação ao tamanho da população, o que também se confirma em levantamentos sobre renda não só de médicos.
9. O mercado de trabalho médico e o valor das remunerações podem ter, além do mais, relação associada com certas características do sistema de saúde local ou regional, com maior ou menor concentração do setor privado, taxa de cobertura de planos de saúde, existência de serviços especializados e de maior complexidade.
10. Há que se considerar, também, a ocorrência de pagamento de altos salários por parte de algumas prefeituras visando a fixação de profissionais e a constituição de empresas médicas, além de outros fatores.
11. Em termos das diferenças com relação a outras profissões, a renda média mensal declarada pelos brasileiros foi de R$ 8.964, enquanto a dos médicos foi de R$ 30.196, valor 3,4 vezes maior. Já em comparação com outras categorias profissionais, os médicos têm rendimento médio três vezes maior que dentistas, e entre quatro e cinco vezes maior que outras profissões da saúde.
Meus comentários
Em primeiro lugar, não há como negar essas informações, derivadas que são de declarações espontâneas à Receita Federal. No caso abordado anteriormente aqui, ou seja, da produtividade médica, que no DF é muito baixa em relação ao país, poder-se-ia questionar alguma coisa em termos dos critérios de cálculo, mas na questão presente isso absolutamente não ocorre.
Existem, com certeza, fatores diferenciais no DF que explicam estes ganhos mais elevados em relação à média nacional. Por exemplo, maiores oportunidades de emprego, dado o amplo espectro de órgãos públicos presentes na cidade, muitos deles contando com serviços médicos próprios, como é o caso das empresas estatais e outros. Acrescente-se a isso a situação das Forças Armadas, do Legislativo e do Judiciário, onde isso também é regra, sem falar da renda da população, que aqui também se diferencia para mais, com reflexos óbvios na oferta de convênios, planos de saúde e atividades privadas em geral.
No Entorno do DF também existiriam possibilidades semelhantes, apesar de ser este constituído por população de renda mais baixa. É que algumas prefeituras fazem contratos diretos com grupos médicos aqui localizados, de forma que estes se responsabilizam pela prestação sistêmica de cuidados à população, embora de maneira divergente da política nacional de atenção básica, seja pela questionável qualificação profissional para esta forma de atenção ou pela não formação de vínculos. Isso sem falar nos desvios em relação aos modos legais de contratação, fora da CLT e do estatuto público, com utilização privilegiada da chamada “pejotização” e às vezes até de “rachadinhas” diversas.
Mesmo que existam polêmicas (mas não exageradas) sobre a questão da produtividade, este fator, associado ao rendimento médio elevado da categoria médica deveria ser levado em consideração, seja na formulação de políticas para o setor saúde, seja no próprio conjunto de reivindicações corporativas, que frequentemente se apoiam em argumentos de baixa remuneração e “más condições de trabalho”.
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SUS e Estado de bem-estar social: perspectivas pós pandemia,
Acabo de receber o livro SUS e Estado de bem-estar social: perspectivas pós pandemia, de autoria de meu amigo Nelson Rodrigues dos Santos, para todos Nelsão, no qual sou citado, com muita honra para mim. Este cara foi e continua sendo um ativista visionário que sempre empregou o melhor de si mesmo para sonhar, nutrir, respirar, viver, enfim as ideias matrizes que resultara na criação do SUS. Acesse para saber mais: https://saudenodf.com.br/2023/03/09/um-guerreiro-imprescindivel-em-favor-do-sus/
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.