Dr. Flávio de Andrade Goulart*
O sujeito que ora se despede da cadeira de Presidente da República pode ter enganado muita gente, a respeito de muitas coisas, por demasiado tempo. Mas em certos assuntos, não se pode negar, ele cumpriu com rigor e esmero algumas das promessas que fez. Por exemplo, a de ter chegado ao Poder para destruir, não para construir – conforme disse textual e publicamente no início de seu mandato. Na Saúde, isso foi executado fervorosamente, por exemplo, através da nomeação de sucessivos mandatários incompetentes no comando de tal área, com o preenchimento de cargos técnicos com um batalhão de capitãs e capitães cloroquina de variada patente e escassa qualificação. Sem falar do descrédito lançado sobre os programas de imunização e outras ações de governo; a restrição de recursos a programas estratégicos; as propinas na compra de insumos; a prescrição de remédios sem efeito; as perdas derivadas de armazenamento de insumos sem qualquer controle; a sonegação de informações colocadas sob sigilo de um século; as idas e vindas das autoridades; além do maior escândalo de todos, este de proporções verdadeiramente bíblicas (literalmente…), qual seja a condução desastrosa e até mesmo criminosa, por premeditada, que marcou as ações do Governo Federal na pandemia de covid. De fato, é preciso contar com muita competência, resiliência e pertinácia do futuro governo para corrigir tanto desmantelamento. Assim, o que se espera do Governo Lula, na Saúde assim como em outras áreas, é de verdadeiro RECOMEÇO ou mesmo RECONSTRUÇÃO, mais do que retomada, reação, recuperação ou mera reavaliação. Que se ponha mãos a obra já a partir do primeiro dia de 2023! Mas há que se indagar: começar a partir de onde? Aqui vão algumas sugestões. Não será simples e muita água há de rolar por debaixo da ponte até se acertar o passo. O novo governo precisa ser ambicioso nas propostas, mas ao mesmo tempo cauteloso de até mesmo modesto nas estratégias, para não tornar a frustrar as expectativas dos cidadãos.
Assim, preliminarmente, seria essencial mostrar respeito com a área da saúde, pelo menos através da nomeação de ministros e equipes técnicas mais competentes e, de preferência, já efetivamente testadas nos estados e municípios. Isso inclui, naturalmente, a desinfestação e a desmilitarização do Ministério da Saúde – já no primeiro dia de janeiro. Não é demais lembrar que também nos governos petistas a saúde em alguns momentos se transformara em moeda de troca com o Centrão, com a nomeação de gente da qual já ninguém se lembra do nome. No governo Temer a derrocada já era total, com o notório Ricardo Barros operando no Blogo G da Esplanada um verdadeiro escritório de representação de interesses dos planos privados de saúde e das clínicas industriais da exploração da loucura. Isso precisa acabar. Competência e credibilidade já!
E vamos combinar ainda: que tudo se desenrole dentro do primado da Ciência, sem cloroquinas, negacionismos, yamaguchis e pazuelos.
Mas é bom lembrar que nem tudo dará resultado imediato, não só porque na administração pública isso costuma ser a regra, como pelo grau de destruição elevado sofrido pela área nos últimos anos.
Eis entao uma lista preliminar.
1. Em caráter emergencial, algumas ações que podem produzir reflexos mais imediatos devem ser tentadas como, por exemplo, na Farmácia Popular, com a ampliação de seus itens e garantia de acesso; na reconstituição das tabelas do SUS, de forma seletiva, incorporando novas metodologias de pagamento baseadas em valor e resultados; na retomada de obras paradas pelo país a fora; na reativação de programas abandonados, como por exemplo Saúde Mental, imunizações, Mais Médicos, além de outros; no estabelecimento de pisos e melhores condições de trabalho para profissões de saúde estratégicas, como a enfermagem e, além disso, outras condutas coerentes com a reconstrução, fundadas em base científicas, com metas e prazos bem definidos, incluindo aí o combate à corrupção e ao desperdício.
2. No financiamento da saúde, é necessário ampliar recursos e orientá-los para induzir, de fato, a universalização da saúde, para o que se deve elevar o gasto público em saúde a pelo menos 5% a 6% do PIB nos próximos anos, superando a faixa abaixo de 4% em que se encontra hoje. Fazer o gasto público superar o patamar estacionários em que ele se encontra há alguns anos também seria essencial. Programas estratégicos devem ser contemplados no orçamento da saúde, com o devido apoio negociado junto ao Congresso Nacional, como por exemplo na expansão da Atenção Primária à Saúde/Saúde da Família, no desenvolvimento farmacêutico, na autossuficiência tecnológica, na saúde indígena, nos sistemas de controle de epidemias e na assistência às periferias das grandes cidades, com negociação e busca permanente de novas fontes de recursos. Necessário, também, estabelecer mecanismos rigorosos de combate à corrupção e de conferir às ações de saúde um estatuto de monitoramento por valor, ou seja, tomando como parâmetro a aferição da solução de problemas reais da população, não apenas de simples quantitades de procedimentos. Atenção especial para não se embarcar na armadilha dicotômica mais dinheiro versus mais gestão, pois ambos os fatores são igualmente necessários.
3. Modelo assistencial: é preciso retomar a expansão da Atenção Primária/Estratégia de Saúde da Família, abandonada e desprezada pelos Pazuelo e Queiroga, adicionando qualidade à mesma, com real universalidade, eficiência e resolutividade, para alcançar a totalidade da população brasileira, mediante a conversão de modelos tradicionais para ESF, garantindo completude das equipes, sem deixar de aproveitar inovações gerenciais que incluam flexibilização de procedimentos, instituição do Cartão SUS e outras ferramentas de saúde digital.
4. Fortalecimento da governança regional do SUS, superando a etapa de municipalização pura e simples, com progressivo aprimoramento da gestão, ampliação de investimentos para reduzir as disparidades na dotação de serviços de saúde das regiões, com desenvolvimento institucional das Secretarias Estaduais de Saúde e apoio ao desenvolvimento de alternativas institucionalizadas de organização regional de serviços, dentro da égide pública, com avaliação técnica contínua e responsabilização definida, mas não necessariamente dentro das limitações do direito público.
5. Recursos Humanos. Medidas diversas, queincluiriam a liberação de concursos ou seleção pública para áreas estratégicas com grande déficit; maior regulação do ensino das profissões de saúde; reestruturação das políticas de educação e capacitação para profissionais em atividade; desenvolvimento de estratégias complementares para expansão da atuação multiprofissional, especialmente na ampliação das práticas da enfermagem; regulação imediata de piso salarial para esta categoria; desenvolvimento de estudos para implementação de serviço civil obrigatório e definição da carreira SUS para profissionais de nível superior, à semelhança do que já existe, por exemplo, na área de Receita Federal e no Judiciário, além de estudos para remuneração de profissionais por desempenho e cumprimento de metas.
6. Gestão. Responsabilização é a palavra-chave, de preferência definida e regulada por lei, à semelhança do que já existe para as questões fiscais relativas aos gastos públicos; o novo governo deve se empenhar nisso através de sua base no Congresso. Mas não é só: o estímulo ao desenvolvimento de parcerias público-privadas, desde que resguardem o interesse público; a introdução do fator “valor” nas relações com prestadores, funcionários e fornecedores; a maior presença do MS nas relações com os demais parceiros do SUS, particularmente na instituição dos sistemas regionais e microrregionais de saúde; o monitoramento e auditoria contínuos do gasto em saúde no país devem estar incluídos em tal pacote de medidas.
7. Fortalecimento do SUS para o enfrentamento de emergências de saúde pública, através de estrutura de governança técnica e qualificada que centralize funções relacionadas a emergências sanitárias; desenvolvimento de instrumentos de planejamento e normativos e de uma estratégia nacional de comunicação, que sejam transparentes e baseados em evidências, além de implementação de estratégias de reconhecimento e incentivo aos trabalhadores da saúde.
Enfim, o SUS é um ser ainda em vias de evolução e o governo que se iniciará em janeiro deve ser realmente de União Nacional. Assim, além de tudo o que foi dito acima, torna-se preciso, na Saúde, renunciar a toda arrogância e também a algumas certezas de fundo ideológico adquiridas ao longo de anos passados. Convenhamos, ao longo das gestões petistas as virtudes que se antepõem a tais vícios nem sempre foram afirmadas de forma convincente pelas mandatários no Ministério da Saúde…
É claro que tem mais. Isso aí seria apenas para início de conversa…
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Frase da semana
Reproduzo aqui o comentário de Ricardo Kotscho, na FSP do dia 11 de novembro de 2022: Se ainda havia alguma dúvida, a divulgação do grotesco e inútil relatório das Forças Armadas sobre a segurança das urnas eletrônicas, na quarta-feira, mostrou mais uma vez como é urgente rever o papel dos militares na democracia em períodos de paz….
É isso aí…
Veja mais em https://noticias.uol.com.br/colunas/balaio-do-kotscho/2022/11/10/relatorio-sobre-as-urnas-e-urgente-rever-papel-dos-militares-na-democracia.htm?cmpid=copiaecola
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*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.