Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Programa (ou Estratégia) de Saúde da Família: a quantas andará a política de saúde inaugurada nos anos 90 e que já foi responsável pelo atendimento a mais de 100 milhões de brasileiros? Quem a procurar, por exemplo, no site da Secretaria de Saúde aqui do DF, não encontrará sequer uma palavra ou simples vírgula sobre ela. Na página do Ministério da Saúde o que se encontra são afirmativas genéricas e pouco atualizadas sobre seu conteúdo e alcance, sem mencionar o fato de que o setor está entregue, nos últimos anos, a uma trupe circense da variedade “Capitã Cloroquina” e outros negacionistas e fanáticos pseudo-religiosos de igual estirpe. A SF não morreu (ainda) mas é flagrante o descaso com que vem sendo tratada no atual governo, com uma enxurrada de portarias burocráticas que a desfiguram a cada dia, até chegar a ser sequer mencionada entre as políticas de governo. Por esses e por outros motivos, principalmente pela sua capacidade de adicionar valor à atenção à saúde, fato confirmado em grande parte dos países do mundo, mas desprezado atualmente no Brasil, é que vale a pena resgatar aqui um pouco da história de seus princípios. Recorro ao que escrevi em minha tese de doutorado na Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, cujo link vai ao final (ver Saúde da Família: Boas Práticas e Círculos Virtuosos), fazendo uma regressão temporal radical, da Grécia, da Babilônia e do Egito antigos, à Idade Média, Renascimento e Revolução Industrial, prosseguindo depois em direção à modernidade através de outros posts que serão acrescentados a este. E a questão fundamental é a seguinte: o que vivemos hoje em dia no Brasil, em termos de políticas de saúde, honra a tal passado que em muitos aspectos é bastante ilustre?
Com efeito, práticas (e políticas) de saúde são processos históricos, isto é, influenciados pelos modos de conceber e agir da sociedade face ao corpo humano e respectiva valorização concedida à saúde e à doença em cada momento, o que depende da estrutura da sociedade e da visão de mundo dominante. Em outras palavras, a resposta social aos problemas de saúde da de cada indivíduo e da população possui relação com o modo de vida presente, com ênfases diferentes na maneira de resolvê-los. O fato é que mesmo em acontecimentos antigos podemos vislumbrar sinais de ações que acabaram por se tornar consagradas na modernidade.
Temos exemplos disso ao longo de toda a história humana documentada. Na antiga Babilônia, códigos já prescreviam a necessidade de se cuidar da saúde da coletividade e mesmo do controle das condutas dos médicos. No Egito de dois milênios a. C. já havia especialidades médicas, com grande o prestígio dos médicos generalistas, além de profissionais contratados para prestar assistência integral aos trabalhadores mobilizados para a construção das pirâmides. Na Grécia antiga, já se associava a saúde do povo à higiene, à harmonia e ao equilíbrio entre corpo, mente e cosmos. Serviços públicos rudimentares de drenagem e suprimento de água nas cidades já estavam presentes. Aliás, os médicos gregos tinham seu salário fixado por um imposto especial e possuíam uma base territorial de ação. A medicina de então, por influência de Hipócrates (450 a. C), tinha também como aspecto marcante a prática generalista dos médicos, o que influenciou também a práxis do Império Romano. Na Idade Média, depois da influência religiosa na saúde, restrita aos conventos, os médicos leigos passam a ter sua atuação tolerada e até mesmo estimulada pela Igreja, que havia mudado sua conduta em relação ao corpo humano. No século XIII, em Salerno (atual Itália), verifica-se um primórdio de intervenção estatal em saúde, com a publicação de decretos imperiais sobre a prática e a formação médica. Na Suíça se dá o advento de uma espécie de médico de família – o chamado médico de câmara. Começam a surgir rudimentos de sistemas de saúde pública nas cidades, especialmente na França, nos Países Baixos e na Inglaterra. O enfoque do cuidado à pobreza começa a ganhar corpo, da mesma forma que certa ênfase na educação e na promoção de hábitos higiênicos e de saúde.
UNCIAR ESTE ANÚNJá na época do Renascimento e da globalização mercantilista, a Inglaterra passa a ter especial relevância, com a ascensão da burguesia ao poder e suas decorrências políticas econômicas e sociais, tais como a primeira revolução industrial, a urbanização acelerada; a formação gradual do proletariado urbano, assim como o advento de legislação de proteção social e o aparecimento de um verdadeiro pensamento social em saúde. Neste mesmo país e em menor grau na Alemanha e na França, uma real modernidade sanitária começa a se afirmar.
E volto à pergunta de partida: temos sido capazes, no Brasil, de honrar este passado de coisas já inventadas há séculos, como saúde das famílias, formação médica generalista responsabilização sanitária, saúde ambiental, políticas públicas de saúde, promoção da saúde, participação social, regionalização e outras? As ações do atual governo, com seu cânone de negacionismo, nomeação de autoridades sanitárias ideológicas e subservientes ao mandatário (ou simplesmente incompetentes..), ações desencontradas e sem base científica, aniquilação de conquistas já consolidadas na área do controle de doenças epidêmicas, foco eleitoreiro, desvios financeiros e de conduta, além de outras aberrações, com impacto regressivo sobre os indicadores de saúde, mostram que o Brasil está não só desonrando a história da saúde pública mundial e nacional, mas também recuando algumas décadas em relação a conquistas que já eram tidas como definitivas.
Sem dúvida, conhecer a história é uma boa maneira não só de evitar os erros do passado, mas também de se orientar a respeito de coisas já existentes e que de fato funcionam bem, evitando onerosas (e desnecessárias) reinvenções da roda. É assim que os avanços de muitos séculos de história são ignorados por certos luminares de nossa época, como os notórios queirogas, pauloguedes e respectiva caterva, para não falar do inominável delinquente serial que os nomeou e comanda.
Mas outubro vem aí. Sobreviveremos.
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Pela Democracia, agora mais do que nunca! (Julho de 2022)

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Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito
Em agosto de 1977, em meio às comemorações do sesquicentenário de fundação dos cursos jurídicos no país, o professor Goffredo da Silva Telles Junior, mestre de todos nós, no território livre do Largo de São Francisco, leu a Carta aos Brasileiros, na qual denunciava a ilegitimidade do então governo militar e o estado de exceção em que vivíamos. Conclamava também o restabelecimento do estado de direito e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. A semente plantada rendeu frutos. O Brasil superou a ditadura militar. A Assembleia Nacional Constituinte resgatou a legitimidade de nossas instituições, restabelecendo o Estado Democrático de Direito com a prevalência do respeito aos direitos fundamentais. Temos os poderes da República, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, todos independentes, autônomos e com o compromisso de respeitar e zelar pela observância do pacto maior, a Constituição Federal. Sob o manto da Constituição Federal de 1988, prestes a completar seu 34º aniversário, passamos por eleições livres e periódicas, nas quais o debate político sobre os projetos para o país sempre foi democrático, cabendo a decisão final à soberania popular. A lição de Goffredo está estampada em nossa Constituição: ” Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição “.
Nossas eleições com o processo eletrônico de apuração têm servido de exemplo no mundo. Tivemos várias alternâncias de poder com respeito aos resultados das urnas e transição republicana de governo. As urnas eletrônicas revelaram-se seguras e confiáveis, assim como a Justiça Eleitoral. Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em um país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a devida plenitude. Nos próximos dias, em meio a estes desafios, teremos o início da campanha eleitoral para a renovação dos mandatos dos legislativos e executivos estaduais e federais. Neste momento, deveríamos ter o ápice da democracia com a disputa entre os vários projetos políticos visando convencer o eleitorado da melhor proposta para os rumos do país nos próximos anos. Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições. Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o Estado Democrático de Direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional. Assistimos recentemente a desvarios autoritários que puseram em risco a secular democracia norte-americana. Lá as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão. Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática.
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Imbuídos do espírito cívico que lastreou a Carta aos Brasileiros de 1977 e reunidos no mesmo território livre do Largo de São Francisco, independentemente da preferência eleitoral ou partidária de cada um, clamamos às brasileiras e aos brasileiros a ficarem alertas na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições. No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições. Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona: Estado Democrático de Direito Sempre!
PARA ASSINAR: https://www.prerro.com.br/carta-as-brasileiras-e-aos-brasileiros-em-defesa-do-estado-democratico-de-direito/

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.