Dr. Flavio de Andrade Goulart*

Primeiro caso: Dona Rosinha é uma senhora idosa que mora na Vila Alvorada, na periferia de uma cidade grande. Ela sempre teve muitas dificuldades em conseguir consultas com médicos, sendo que sofre de hipertensão, varizes e relativo sobrepeso. Recentemente, contudo, foi aberta em seu bairro uma Unidade Básica de Saúde da Família, com equipe completa e tudo que manda o figurino. Dona Rosinha já esteve na unidade diversas vezes, já tendo sido aberto seu prontuário e designada a equipe que lhe acompanhará. Indagada pela Agente Comunitária se estava apreciando o novo atendimento, disse que não muito, pois eles estavam ispiculando muito da vida dela e que além do mais as consultas eram muito demoradas, o que a deixava fatigada. Segundo caso: Jorge é um jovem médico recém saído de uma residência em Clínica Médica. Ele trabalha em um Centro de Saúde de periferia e sente-se perfeitamente à vontade com suas atividades, pois está ali por escolha própria, foi admitido por concurso e gosta daquela rotina de atender pessoas diversas, com queixas também muito diversificadas, obrigando-o muitas vezes a estudar e se aprofundar com os problemas que lhe são trazidos. A Secretaria de Saúde acaba de fazer um inquérito sobre a qualidade dos serviços prestados em sua rede e Jorge ficou bastante decepcionado com sua avaliação, pois entre elogios superficiais, alguns pacientes se queixaram de que ele receita poucos remédios e reluta em encaminhar pacientes aos especialistas fora dali, mesmo quando os pacientes lhe explicitam tal desejo. Terceiro caso: Dr. Benevides é endocrinologista e divide seu tempo entre um consultório particular com boa clientela e o atendimento em unidade especializada pública. É conhecido por receitar remédios caros, pois acredita que o custo de um medicamento não é um problema de médicos, mas sim de governos e que além do mais sua obrigação é sempre oferecer o melhor a seus pacientes. Gosta do que faz, mas se mostra especialmente contrariado em relação aos médicos da rede básica, um Dr. Jorge em particular, que em interações ocasionais insiste em defender que os pacientes de diabetes devem ser tratados na Unidade de Saúde da Família e não encaminhados ao especialista, o que tem prejudicado a pesquisa de um novo medicamento hipoglicemiante que Benevides executa a pedido de um laboratório farmacêutico.
É isso aí. Nós, o povo da saúde, costumeiramente nos preocupamos muito com a especificação dos agentes etiológicos, o apuro dos métodos diagnósticos e a qualidade das opções farmacológicas, na esperança que isso venha a trazer os melhores resultados para nossos pacientes. Meritórios desejos, sem dúvida, mas infelizmente não formam todo o quadro de conhecimentos e informações que um profissional da área deveria dominar. Os exemplos acima, creio, fazem parte de um território onde médicos, enfermeiros e dentistas, além de outros praticantes, costumam não pisar. Este terreno é o da Cultura, e nele habitam verdadeiras quimeras.
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Quando se fala em cultura, particularmente dos usuários, surgem expressões como a saúde tem obrigação de me dar tudo que eu preciso, não importando a dimensão e a natureza de tal necessidade, na qual estariam incluídos desde o desemprego até as desavenças conjugais. Levantar isso nos leva a ser mal interpretados algumas vezes, por retirar a responsabilidade do poder público ou colocar a culpa nas verdadeiras vítimas.
Mas existem mais expressões daquilo que eu denomino uma cultura nefasta na saúde, podendo se situar nos diversos lados da mesa, seja por parte dos usuários, dos tomadores políticos de decisão, do judiciário, passando pelos profissionais de saúde, é claro. Exemplos: o dinheiro da saúde pode incorporar qualquer tipo de demanda, ele tem que dar para o gasto – parece até que a grana tem as propriedades do látex. Juízes e Promotores, por exemplo, fazem disso mais que uma manifestação cultural, uma crença arraigada, um dogma quase religioso. E mais: só o médico pode resolver meu problema! Só um especialista para dar conta do que eu tenho. Corolário: devo dispor de todos os serviços de saúde possíveis, inclusive emergências e especialidades, a poucas quadras de minha casa. Com todo respeito, acrescento eu: que não sejam próximos demais para que o demandante não seja perturbado pelo alarido das sirenas das ambulâncias. A lista de queixas é longa, e prossegue: onde já se viu uma consulta sem remédio!; este doutor faz perguntas demais sobre a vida da gente; banho de assento e repouso – para que serve isso? – é o que eles sabem receitar; vou sair daqui e vou dar queixa na rádio, na delegacia e na promotoria; eu venho aqui consultar e eles só falam em vacina; já eu gosto é do pronto atendimento: tudo bem que a gente fica umas horas na fila, mas sempre sai daqui com receita e pedido de exame na mão. E vai por aí a fora.
Falar em cultura pode parecer estranho, quando não faltam problemas mais objetivos em nosso sistema de saúde, que as narrativas acima não deixam também de contemplar. De fato, há poucos recursos, menos decisão política, muita pirotecnia, pouco conhecimento técnico, muita burocracia, privatização de interesses, politicagem permanente e muito mais. Mas a verdade é que quando se adicionam esses ingredientes ao caldo da cultura, o resultado não poderia ser pior. Mas as queixas dos pacientes devem ser melhor entendidas, não como expressão irrefutável da verdade, mas como ingredientes de um caldo cultural, para o que existem abordagens apropriadas, distantes da simples negativa ou de delírios populistas .
O fato é que a cultura dos usuários faz a tampa do balaio da cultura dos políticos, dos médicos e dos juízes. E o encontro disso não resulta em nada que preste.
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Um artigo do cientista britânico Frank Furedi, da Universidade de Kent, veio a fortalecer meus argumentos relativos à questão cultural na saúde. Eis o que ele diz: “as sociedades ocidentais não vão superar a crise dos sistemas de saúde. Por mais que os governos joguem dinheiro no setor, um número cada vez maior de pessoas se identificará como doente. A solução para o problema não está no âmbito das decisões políticas, mas sim no âmbito da cultura. São coisas que estão além das possibilidades dos sistemas de saúde isoladamente”.
Confesso que fui dormir aliviado, com aquele velho e confortável sentimento do “mas eu não dizia isso mesmo?” E assim espantei para longe de mim uma quimera. Mas a verdade é que sempre que sai uma, chegam outras…

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.