Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Nise da Silveira é uma verdadeira brasileira de mérito. Já nos anos 40 ela se rebelara contra os métodos desumanos então aplicados a pacientes com transtornos mentais, como o eletrochoque, a lobotomia e o confinamento, entre outros, como formas punição mais do que de alívio de sofrimentos. Seus opositores, numerosos na ocasião, trataram de transferi-la para a área de terapia ocupacional, onde ela também encontrou espaço para desenvolver um modelo humanizado de tratamento, através de uma teoria associada a práticas de realce às expressões dos sentimentos dos pacientes por meio das artes, especialmente da pintura, mas também da música. Tal produção artística ganhou reconhecimento, em muitos casos, pela qualidade estética, demonstrando também resultados positivos na recuperação de seus autores. A Casa das Palmeiras, fundada por Nise ainda em 1956 com foco em reabilitar sem internação, de forma praticamente inédita no Brasil, também investiu no processo criativo e afetivo dos pacientes. Além da arte, o contato com gatos e cães foi outro tratamento introduzido por ela no país, facultado aos pacientes cuidar de animais nos espaços abertos do centro, estabelecendo vínculos afetivos que também contribuíam para seu bem estar. Há instituições inspiradas no trabalho dela — algumas nomeadas em sua homenagem — em Portugal, na França e na Itália, além de cidades brasileiras como Juiz de Fora, Recife, Porto Alegre e Salvador, entre outros. E não seria nada demais também creditar a Nise a honra de ter sido precursora dos movimentos de reforma da saúde mental no Brasil. que culminaram, a partir dos anos 80, com a ampla desospitalização dos tratamentos e a libertação dos pacientes de estruturas que se pareciam mais com prisões do que com verdadeiras instituição de saúde. Pois bem, foi a esta verdadeira heroína nacional, que o delinquente que ora ocupa a Presidência da República (por não muito tempo mais, esperamos todos), negou a inscrição no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Isso ainda pode ser vetado pelo Congresso e as pessoas de bem, como eu e vocês, esperamos que de fato aconteça. O PR (psicopata renitente) alegou que a proposta representaria “contrariedade ao interesse público” e que também não seria possível avaliar “a envergadura dos feitos” de Nise e o impacto destes no desenvolvimento da nação, culminando ainda com a estúpida afirmativa de que tal homenagem seria relacionada a “ideais dissonantes das projeções do Estado democrático”. É isso aí, este indivíduo desentende completamente o que é interesse público ou Estado democrático, bem como os “feitos” terapia ocupacional, humanização da assistência, psiquiatria moderna, fazer o bem, práticas inovadoras, etc. Na verdade ele não sabe nem mesmo o que é ser Presidente de um País como o Brasil, com letras maiúsculas. Em termos de heroísmo e contribuições à pátria, seu entendimento esbarra em personagens como Brilhante Ustra, Olavo de Carvalho, Daniel Silveira – tipos assim. E suas conhecidas limitações morais, afetivas e intelectuais o impedem de ir mais longe do que isso. Mas felizmente, para nossa alegria, outubro vem aí…

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Em tempo: minha querida Henriqueta Camarotti, profissional de Saúde Mental e militante histórica da luta antimanicomial no DF me lembra que Nise da Silveira foi, de fato, uma grande inspiradora do de tal Movimento no Brasil e que aqui em Brasília foi graças ao trabalho dela que foi criado o atelier de ArteTerapia do Instituto de Saúde Mental, coordenado por Elisa Garcia, no final dos anos 80. Lembra ela, ainda, da grande determinação de Nise em seus propósitos e sonhos, na capacidade de superar as adversidades sem perder o sentido humanitário, libertário e amoroso. Mesmo quando tudo conspirava para as grades e as camisas de força ela era capaz de criar novos caminhos, com uma potente criatividade em desbravar territórios inóspitos – era sua grande marca.
Saiba mais sobre Nise da Silveira
• https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61603637
• https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/05/25/bolsonaro-veta-titulo-de-heroina-da-patria-para-nise-da-silveira
• Bolsonaro veta título de ‘heroína da Pátria’ para Nise da Silveira — Senado Notícias
E sobre seu marido, o médico sanitarista Mario Magalhães da Silveira, outra figura da qual podemos nos orgulhar:
• https://veredasaude.com/2020/11/18/desenvolvimento-e-saude-tributo-a-mario-magalhaes-da-silveira/
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Mais informações:
Em 1951, o poeta Ferreira Gullar (1930-2016) conheceu o trabalho da psiquiatra brasileira Nise da Silveira (1905-1999). Por meio de amigos em comum, ele soube que ela fazia um interessante — e, na época, bastante inovador — trabalho de terapia por meio da arte com os pacientes internados no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro.
Silveira dirigia a seção de terapia ocupacional da instituição desde 1946 — cargo que ela conservaria até 1974. Sua bandeira, desde o início, primava pelo combate a técnicas agressivas no tratamento de pessoas com doenças mentais, como o uso inadequado de eletroconvulsoterapia (conhecida popularmente como eletrochoque), camisas de força, lobotomia, insulinoterapia e confinamento.
Em lugar desses métodos, então praxe na época, ela preconizava um tratamento baseado na arte. A médica reinventou o próprio departamento de terapia ocupacional, antes um espaço que servia para delegar aos pacientes tarefas de limpeza e manutenção da instituição. Sob o comando dela, foram criados ateliês de pintura e modelagem.
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“A Nise foi uma pessoa extremamente importante na psiquiatria. Foi aluna do [psiquiatra suíço] Carl Jung, teve contato com ele e foi pioneira daquilo que a gente poderia chamar hoje de luta antimanicomial, na época não existia esse termo”, avalia à BBC News Brasil o psicólogo e psicoterapeuta Ari Rehfeld, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Ela fez um trabalho maravilhoso e pioneiro na terapia ocupacional e sua influência está hoje tanto na psiquiatria como na psicologia.”
“Seu trabalho mudou os tratamentos psiquiátricos, substituindo métodos pouco eficientes e extremamente agressivos para os pacientes com transtornos mentais”, prossegue Rehfeld.
psiquiatra Paulo Amarante, presidente honorário da Associação Brasileira de Saúde Mental e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ressalta que “Nise foi uma psiquiatra que questionou os métodos invasivos, violentos e ineficazes da psiquiatria”. “Ao se recusar aplicar a eletroconvulsoterapia [ECT], abriu um precedente singular na psiquiatria ortodoxa”, diz ele, à BBC News Brasil.
Tratamento pela arte
A psiquiatra acreditava que a arte servia para que os doentes conseguissem ressignificar suas conexões com a realidade. Ela defendia que isso era possível por meio de suas expressões criativas e simbólicas.
Ferreira Gullar nunca deixou de acompanhar, com fascínio, a trajetória da médica, que acabou se convertendo em amiga. Em 1996 ele publicou, em livro, uma longa conversa com ela. A obra se chama Nise da Silveira – Uma Psiquiatra Rebelde. O poeta também dedicou ao tema algumas de suas colunas no jornal Folha de S. Paulo.
Em outubro de 2006, por exemplo, ele contou a história de um “paciente magrinho chamado Emydgio” que, no ateliê de pintura do manicômio, destacou-se pela produção. “Um dia, próximo ao Natal, Nise perguntou a Emygdio que presente gostaria de ganhar e ele respondeu: ‘Um guarda-chuva’. Ela concluiu que ele desejava ir embora”, narrou Gullar.
O legado de Nise da Silveira, a médica que teve a homenagem nacional vetada pelo presidente Jair Bolsonaro, pode ser dividido em duas partes: a importância para o atendimento psiquiátrico; e a importância para as artes.
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“O legado da Nise da Silveira é enorme, foi uma verdadeira pioneira global da psiquiatria humanizada, baseada na arte, na criatividade e nos vínculos afetivos com humanos e outros animais – e não no uso excessivo de medicamentos altamente dopantes”, afirma o neurocientista e biólogo Sidarta Ribeiro, professor titular e vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
“Fez tudo isso como mulher entrando em espaços dominados por homens, numa época de grande verticalização da psiquiatria, em que internações compulsórias, eletrochoques, camisas de força, polimedicação e mesmo lobotomias eram aplicadas de forma generalizada a pessoas com todo tipo de transtorno mental.”
Militância comunista
Nascida em Maceió, Silveira tinha um pai professor de matemática e jornalista e uma mãe pianista. Estudou em um colégio de freiras exclusivo para meninas e, nos anos 1920, graduou-se na Faculdade de Medicina da Bahia. Era a única mulher em uma turma de mais de 150 homens.
Já casada com o médico sanitarista Mário Magalhães da Silveira (1905-1986), mudou-se para o Rio em 1927.
Nos anos 1930 começou a estudar psiquiatria. Depois de especializar-se em saúde mental, passou em concurso público e começou a trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental do Hospital da Praia Vermelha.
Mas esse começo de carreira na área sofreu uma interrupção. Porque foi na mesma época que ela passou a se interessar por arte e literatura e, simultaneamente, engajar-se politicamente. Tornou-se militante do Partido Comunista Brasileiro e, denunciada por uma enfermeira, acabou presa por “posse de livros marxistas”. Foram 18 meses no presídio Frei Caneca, onde conviveu com o escritor Graciliano Ramos (1892-1953) — também detido ali — e isso acabou fazendo dela uma personagem do livro Memórias do Cárcere.
“A figura de Nise entrara-me fundo no espírito. Apesar de havermos ficado momentos difíceis um diante do outro, confusos, aturdidos, em vão buscando uma palavra, aquela fisionomia doce e triste, a revelar inteligência e bondade, impressionava-me”, diz um dos trechos do livro. “Não me arriscaria a dirigir-me a ela. Se isto acontecesse, emudeceríamos outra vez, permaneceríamos no constrangimento horrível, a catar ideias incompletas e espalhadas. Contentava-me perceber-lhe à distância a palidez, o sossego fatigado, a viveza dos enormes bugalhos.”
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No livro, há 41 menções ao nome dela.
O retorno ao serviço público só se daria nos anos 1940. Em 1944, ela assumiu a coordenação dos trabalhos de terapia ocupacional do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II. E sua atividade acabou revolucionando a maneira como esses pacientes são tratados no mundo.
Atriz Glória Pires interpretou Nise em cinebiografia da psiquiatra ‘Nise – O Coração da Loucura’; ao lado, o ator Fabrício Boliveira interpreta um de seus pacientes
“O exercício de múltiplas atividades ocupacionais revelava, por inumeráveis indícios, que o mundo interno do psicótico encerra insuspeitadas riquezas e as conserva mesmo depois de longos anos de doença, contrariando conceitos estabelecidos”, escreveu ela, sobre esse trabalho, no livro ‘Imagens do Inconsciente’. “E, dentre as diversas atividades praticadas na nossa terapêutica ocupacional, aquelas que permitiam menos difícil acesso aos enigmáticos fenômenos internos eram desenho, pintura, modelagem, feitos livremente.”
Rehfeld explica que era um trabalho “muito ligado à costura e à pintura”, que resultava também em exposições. “Não foi coisa de um, dois, três anos. Foi uma vida inteira dedicada a esse tipo de trabalho que se mostrou efetivamente muito eficiente como expressão no tratamento de saúde mental”, explica o professor.
Sua atuação terapêutica não ficou circunscrita ao Centro Psiquiátrico Nacional. Em 1956, ela fundou a Casa das Palmeiras, uma clínica destinada a reabilitar antigos pacientes de instituições psiquiátricas — muitas vezes com sequelas devido aos maus tratos recebidos. Sua ideia era reabilitá-los para que eles fizessem uma transição entre o período de internação e a reintegração social.
Nise da Silveira também foi uma pioneira no uso de animais para tratamento de doentes mentais, encarando os bichos como fundamentais para o reforço das relações emocionais e também para fortalecer senso de responsabilidade. Sobre isso, ela escreveu o livro ‘Gatos: A Emoção de Lidar’.
“Ela possuía uma série de animais e os deixava sempre em contato com os pacientes, que podiam se relacionar e cuidar deles”, completa Rehfeld.

A psiquiatra foi uma das pioneiras na difusão da psicologia junguiana no Brasil — ela chegou a estudar no instituto fundado pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) em dois períodos. A partir dos anos 1950, correspondeu-se intensamente com Jung e foi à convite dele que realizou uma mostra com as obras feitas por seus pacientes em um congresso internacional realizado em Zurique, na Suíça, em 1957.
Até mesmo os edifícios dos hospitais psiquiátricos foram alvo de preocupações da médica. “A ausência de interesse da psiquiatria pelos problemas do espaço revela-se na arquitetura hospitalar. É uma arquitetura fria, rígida”, argumentou, também no livro ‘Imagens do Inconsciente’. “Dá suporte e reforço ao medo, ao sentimento de estar isolado de tudo.”
Importância para a arte
Seu legado artístico é um efeito colateral da medicina psiquiátrica por ela aplicada. Em 1952, Nise da Silveira fundou no Rio de Janeiro o Museu de Imagens do Inconsciente, uma instituição dedicada a estudos, pesquisa e preservação dos trabalhos produzidos nos ateliês frequentados por seus pacientes.
A instituição abriga hoje um acervo de cerca de 350 mil obras produzidas por artistas-pacientes. Entre os principais nomes estão Emygdio de Barros (o Emygdio citado por Ferreira Gullar), Octávio Inácio, Adelina Gomes e Carlos Pertuis.
Em seu livro Imagens do Inconsciente, a própria Silveira analisa detidamente 272 ilustrações produzidas por seus pacientes.
Homenagens
Apesar de ter tido a inscrição de seu nome no livro dos Heróis e Heroínas da Pátria vetada pelo presidente Jair Bolsonaro, não faltam reconhecimentos nacionais e internacionais à carreira de Nise da Silveira.
O centro psiquiátrico onde ela trabalhou, por exemplo, hoje é chamado de Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira. Há instituições inspiradas no trabalho dela — algumas nomeadas em homenagem a ela — em Portugal, na França e na Itália, além de cidades brasileiras como Juiz de Fora, Recife, Porto Alegre e Salvador, entre outros.
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Em 1987 ela foi reconhecida com o grau de oficial da Ordem de Rio Branco. Em 1992, a Associação Brasileira de Críticos de Arte concedeu a ela o título de personalidade do ano. Ela também recebeu a Medalha Chico Mendes do grupo Tortura Nunca Mais e a Ordem Nacional do Mérito Educativo, do Ministério da Educação, em 1993.
Sobre o veto de Bolsonaro, Rehfeld afirma ser “lamentável” que sejam “detratadas com muita facilidade personagens muito importantes”. “A gente perde um pouco da nossa história. O trabalho de Nise é reconhecido mundialmente, aí uma ignorância e um partidarismo pouco defensável, porque ela militou na esquerda, fazem tirar dela a possibilidade de receber um prêmio”, pontua.
“É um absurdo. Mostra uma tendência de termos muito pouco apreço à nossa história e não cuidarmos de grandes exemplos que temos e que poderiam continuar a influenciar o país”, conclui o professor.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.