Ana Maria Coelho Carvalho*

Como já escrevi, estou tentando organizar e manter uma fazendinha, a Ouro Verde, nas proximidades de Pirapora. O verde é sua riqueza: possui belas árvores do cerrado e vegetação conservada na beira do rio. Quero deixá-la de herança para as três netinhas, para a posteridade. Talvez fazer uma casinha para brincarmos, na majestosa árvore de tamboril ao lado da casa. Fazer trilhas ecológicas com as crianças das pequenas cidades próximas. Formar um centro de estudos do cerrado para alunos de Biologia. Organizar um retiro para velhinhos que gostam de pescar e que poderiam ajudar nas trilhas ecológicas. Mas a primeira coisa a levar, nesse último caso, seria um desfibrilador…De qualquer forma, sonhar é preciso. E não basta ter apenas um sonho, é preciso ter vários.
Acontece que, entre o sonho e a realidade, existe uma grande diferença. Por exemplo, as dificuldades já começam com a viagem para chegar até lá. Geralmente, vou de carona com o filho que tem uma fazenda por perto. Na última, em fevereiro, fomos os três filhos, eu, a minha cachorrinha e a perdigueira Dama, no carro Kia Mohave ( que tem costume de estragar no caminho e voltar de guincho). A viagem deveria ser de 5h. Durou 7h e dormimos em um hotelzinho na beira da estrada, para continuar mais 2h no dia seguinte. A ponte estava interditada nas proximidades de Patos de Minas e tivemos que entrar no desvio, uma estradinha de terra. Barro, chuva, escuridão e carros voltando. As pessoas avisavam que só caminhão grande passava na lagoa onde o rio transbordou. Chegando lá, observamos os caminhões imensos e carregados atravessando , as rodas afundando. O filho disse que dava para “ir no vácuo” de um caminhão. Eu não queria ir. Mas, como ficar por lá, sozinha em cima do barranco, na chuva, perdida na noite escura? Fomos. O carro conseguiu sair do outro lado da lagoa, mas passou a fazer um barulho esquisito, de lataria solta. Na volta, saímos às 5h da manhã. Logo depois, na primeira curva da estradinha de terra da fazenda, o pneu do carro caiu em uma cratera feita pela enxurrada. Mas não quebrou e lá fomos. Pegamos o desvio novamente e , de súbito, o carro travou. Não andava. Estávamos perto de Serra do Salitre e não tinha sinal de celular. A solução foi pegar carona para a cidade e chamar um guincho. Os três filhos foram pra estrada pedir carona, mas ninguém parou. Peguei minha cachorrinha no colo ( ela charmosa, com lacinho) e fiz o sinal característico. O primeiro carro parou e entrei com um filho. Era um senhor simpático com a filha, que fazia medicina em Divinópolis. Ficaram felizes em nos ajudar e nós, mais ainda. Deixaram-nos no centro da cidade, agradecemos e o filho desceu do carro, puxando com força a mala vermelha que estava perto de sua perna, presa entre o assento da frente e o banco de trás. Saiu empurrando-a pela calçada rapidamente, atrás de um táxi velho que tinha virado a esquina. A moça, a estudante de medicina, olhava boquiaberta. Eu também, pois não sabia que ele tinha uma mala vermelha. A moça, constrangida, conseguiu falar que a mala era dela! Ele desculpou-se, sem jeito, explicando que ia chamar o táxi e automaticamente já pegou a mala. Foi um quase roubo. Depois, ele ligou para o motorista do guincho, explicando onde o carro estava e descrevendo a cor do Kia como dourada. Eu disse que o Kia era prateado, que o motorista não iria encontrar um Kia dourado. Daí ele explicou-me que fazia confusão com as cores, pois era daltônico. O pior é que ele é daltônico mesmo e, sinceramente, não sei como ele enxerga a cor do carro…Enfim, nós dois viemos 4h de taxi, com o motorista ouvindo jogo de futebol a toda altura, e chegamos no final da festa de 70 anos do sogro do meu filho. Os outros dois , a cachorrinha e a Dama vieram em cima do caminhão guincho e chegaram à noitinha em Uberlândia.
Bom, se fosse só a viagem, tudo bem. Mas lá na Ouro Verde acontece cada uma… Isso, sem considerar que tudo que precisa ter em uma fazenda, lá ainda não tem. E o que tem, estraga diariamente. E mesmo tendo só uma vaca, um bezerro, um cachorro e um cavalo, tem muita emoção. Por exemplo, o Cookie, o cachorro perdigueiro, literalmente enfiou o nariz onde não era chamado. Atacou um porco espinho. Ficou de dar pena. O caseiro teve que levá-lo às pressas para o veterinário, que tirou mais de duzentos espinhos da boca, focinho e língua. Não morreu, mas ficou tristinho, tristinho. Agora, tem uma onça pintada imensa andando por lá, deixando pegadas pra todo lado. Atacou o bezerro de um vizinho e comeu só a metade, deixou a presa ainda viva. Comeu um veado pertinho da minha casa, o crânio ficou no meio do mato (decerto a próxima vítima serei eu). Andou em volta da casa do vizinho, que mora sozinho e ficou apavorado. O ajudante do meu caseiro, que estava fazendo cerca, foi tirar uns galhos e viu a onça deitada. Correu como louco e ficou branquinho. Ah, e o Canarinho, coitado! Aquele cavalo que vivia fugindo. Está por lá, mas não dorme mais, tem que deixar as luzes das varandas acesas à noite e ele só fica perto da casa.
Já avisei ao caseiro que não pode matar a onça, o espaço é dela, nós é que somos os invasores. Mas com certeza agora ele vai embora e o Canarinho deverá arranjar outro plano mirabolante de fuga.

*Bióloga – Uberlândia – MG – anacoelhocarvalho@terra.com.br