Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Para início de conversa é bom deixar claro: a expressão poder local (ou mesmo municipal) também se aplica diretamente ao DF, pois nosso lugar de vida tem características muito mais de um município do que de uma UF/Estado. Somos na verdade um município grande – e sem dúvida, também, um falso estado… O fato é que as frases “a municipalização é o caminho”; “tudo o que for descentralizado funcionará melhor”. “o poder local é soberano” foram como que sacralizadas pela minha geração de sanitaristas, gente que já estava na militância pró-SUS quando a atual Constituição Federal foi escrita na década de 80. A intenção era a melhor possível, mas infelizmente o futuro veio mostrar que nem tudo era como se pensava, pois, entre outras razões, o poder dos municípios e das instâncias descentralizadas não só tem limites, como pior ainda, repete muitas vezes os mesmos vícios do poder centralizado. Ao ler um artigo recente, publicado por pesquisadores da FGV de São Paulo (ver link), sobre a gestão local da saúde na atual pandemia, pude perceber que algumas dessas considerações mais sombrias, que há anos me perseguiam, pulsam ainda hoje. E antes de passarmos a comentários mais profundos sobre tal questão, é necessário afirmar que mesmo com todos os percalços da descentralização da saúde, a situação na atual pandemia estaria ainda pior – e muito! – se as ações de controle dependessem diretamente ou exclusivamente do Ministério da Saúde, particularmente no contexto de um governo tosco e pouco responsável como o atual.
Com efeito, sem deixar de reconhecer os avanços do processo no SUS, dizem os autores em tal artigo: Não obstante contarem com profissionais comprometidos, competentes e com potencial de inovação, verificamos que os sistemas municipais de saúde analisados tiveram problemas para implementar ações essenciais nas áreas da governança, da vigilância e da assistência à saúde. Essas limitações poderiam ser superadas mediante ações multisetoriais harmônicas, intensas, contínuas e incisivas, que aprimorem o planejamento e fortaleçam a gestão de saúde nos municípios, visando torná-los mais preparados para enfrentar uma crise do porte da pandemia de Covid-19. Essas ações devem ser promovidas, articuladas e incentivadas pelo governo federal e pelos estaduais, com a plena participação de todos os atores envolvidos. A última frase diz algo essencial: a atuação desastrosa, para dizer o mínimo, do Governo Federal na atual crise sanitária.
Voltemos à Constituição. A ênfase na descentralização nela é bastante expressiva, traduzindo-se não só por ação legislativa concorrente entre os níveis de governo, como por delegações de competências e atribuições aos estados e municípios. Assim, aumentou o poder legiferante dos estados e dos municípios em aspectos tão variados como saúde, educação, preservação da natureza, patrimônio artístico e cultural. Na área social as mudanças foram altamente expressivas, estabelecendo novas responsabilidades e também prerrogativas diversas em relação à saúde, à educação, ao meio ambiente, à assistência social. Sem dúvida, eram aspirações ambiciosas, retratos de uma era de reconquista democrática, mas também de fortes expectativas, nem sempre fundadas na realidade. Registre-se, ainda, as mudanças de índole epidemiológica, demográfica, tecnológica, além daquelas culturais, ligadas à própria percepção de direitos por parte dos cidadãos, com muitas transformações desde o ano em que a CF foi promulgada.
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Tudo isso pode indicar que a ambição dos constituintes, embora legítima, não teria encontrado terreno propício para se concretizar em muitos casos e, em outros, talvez, não tivesse encontrado correspondência real com a evolução dos fatos sociais. Mas é preciso admitir que a CF 88 representou um exuberante fato jurídico, que a diferencia e qualifica em relação às suas antecessoras. Mas enquanto fato social concreto – e isso é bastante notório na área da saúde – a Constituição, como dizem versos de Fernando Pessoa, ainda falta cumprir-se. Aliás, não só na Saúde como em muitos outros aspectos.
Alguns problemas de nosso arcabouço constitucional relativo à descentralização em saúde:
1. Apesar de estar em experimentação há 15 anos, o processo de descentralização vigente não tem tido sucesso em criar ou pelo menos induzir o desenvolvimento de verdadeiras e duradouras relações cooperativas, solidárias e não-predatórias entre os níveis de governo, compatíveis efetivamente como um sistema federativo; em outras palavras; a capacidade demonstrada em equilibrar as desigualdades e promover a equidade continua sendo muito baixa dentro de tal sistema.
2. As situações negativas ou “desencontros” no processo brasileiro de descentralização da saúde podem derivar de questões estruturais, ligadas a cenários que os legisladores constituintes ou os gestores, particularmente do Ministério da Saúde, não puderam prever ou, se previram, não enfrentaram devidamente
3. Destaque-se, especialmente, situações derivadas do caráter da própria federação brasileira e de seu entorno político e cultural, por exemplo, a extrema dependência do governo “de cima”, as limitações no enfrentamento das desigualdades sociais, as diferentes motivações dos níveis estaduais e municipais na implementação das políticas etc.
4. Decisão política equivocada ou incompleta de parte dos próprios gestores é outra questão posta, por exemplo: a regulação federal radicalmente dura e fundada em portarias sub-entrantes, além de ser transitória, intempestiva e fragmentada; a indefinição dos conteúdos de gestão e assistência em cada nível de governo, em função de conflitos político-partidários entre os estados e municípios; a não-decisão ou não-enfrentamento de questões, por exemplo, a manutenção ou a mudança apenas superficial do modelo assistencial; a não integração intersetorial das políticas sociais; a debilidade dos mecanismos de controle; a integração incompleta entre assistência individual e coletiva, entre outros aspectos.
Mas não custa afirmar que a descentralização das ações de saúde no Brasil, preconizada pela Constituição Federal de 1988, embora tenha se processado com relativo sucesso em muitos aspectos, padece de um dilema essencial, ainda não resolvido: entre as boas intenções dos constituintes, dos gestores ou dos militantes da Reforma Sanitária e as ações concretas dos governos que se sucederam, de qualquer matiz ideológico, aliás, há um enorme desencontro, de fundo político, mas também cultural, conceitual e operacional.
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Isso se vê agravado pela postura comum na militância da saúde de não se abrir para a discussão de mudanças no SUS, atribuindo a qualquer moção neste sentido pecha de reformismo (reforma da reforma) não só dificulta os avanços que ainda são necessários, como também polariza e carrega de ideologia, de forma equivocada, o que deveria na verdade se constituir como debate necessário entre sociedade política e sociedade civil do país.
A verdade é que, na saúde, muitas das promessas da celebrada Constituição Cidadã ainda faltam cumprir-se…
Voltando ao artigo dos autores da FGV citado no preâmbulo, ali se analisa preliminarmente o relato de gestores do SUS em três cidades brasileiras de médio e grande portes, de diferentes regiões do País, sobre a experiência vivida em 2020, sem fazer julgamento ou avaliação das ações realizadas, mas sim para tentar explorar padrões de resposta e resiliência do SUS ante a Covid-19. Foi possível, assim, demonstrar que mesmo com fragilidades estruturais, o SUS municipal mostrou resiliência diante do impacto da atual crise sanitária, com expressivo envolvimento das equipes de APS e de vigilância em saúde nas ações de resposta, bem como capacidade de promover rápida ampliação de leitos hospitalares.
Em termos da gestão do sistema foram destacadas as estratégias de compartilhamento de responsabilidades na resposta à pandemia, por exemplo, as parcerias com universidades, a participação de OSS e a articulação com os órgãos gestores estaduais. Como empecilho, os limites formais da administração direta, além de outros limites impostos, por exemplo, pela falta de planejamento e de mecanismos robustos de coordenação da resposta, especialmente por parte do governo federal.
Enfim, parafraseando uma antiga frase de Churchill sobre a Democracia, a descentralização também tem muitos e muitos problemas e às vezes parece um estorvo, mas ao mesmo tempo é o melhor – ou o único – caminho para o sucesso muitas políticas públicas. De toda forma, é sempre preciso definir o que deve e o que não deve ser descentralizado e a realização disso em relação a cada momento histórico. A descentralização pode nem sempre dar certo, mas quando é bem conduzida, com aplicações certeiras e em momento apropriado, pode aprimorar a essência de muita ação pública e garantir seu sucesso.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.