Dr. Flávio de Andrade Goulart*
O que vou narrar a seguir é metade realidade, metade ficção. Reflete acontecimentos que assisti em minha vida de gestor de saúde, mas ao mesmo tempo acrescenta elementos relativos a coisas que não vi, mas sei que existem. Aliás, existem, com certeza, aqui em Brasília também. A heroína é Filomena, gerente de unidade de saúde ambulatorial na atenção básica. Moça esforçada, ela tem muito orgulho do que faz, pois foi selecionada para um curso de gestão em saúde dentre quatro outros concorrentes e foi considerada aluna destacada, sendo a primeira a ser nomeada para a gerência, que exerce já há quatro anos. O que faz Filomena se sentir uma gerente especial é o fato de que, ao contrário da maioria de seus colegas gerentes, ela não tem formação específica na área de saúde, pois é administradora, embora tenha uma longa carreira no setor, como encarregada de faturamento em um hospital durante oito anos, sendo que em tal condição concluiu sua faculdade.
Filomena é o que se poderia chamar uma pessoa aplicada. Orgulha-se de conhecer na ponta da língua o estatuto do servidor público e, além dele, todas as disposições normativas existentes com relação aos serviços. Domina com perfeição e capricho o jargão técnico da contabilidade, particularmente no que tange ao faturamento no SUS. Ela costuma dizer que não toma decisões de nenhuma espécie sem consultar o que chama “meus livros de cabaceira”: o estatuto do funcionário, a coletânea de normas do SUS, A Lei 8080 e até mesmo a Constituição, entre outros. Além do curso de gerente já fez inúmeros outros de menor porte, particularmente na área de relações humanas no trabalho e logística, campos pelos quais passou a ter especial predileção.
Filomena está muito chateada… Um programa sensacionalista matinal de TV, muito apropriadamente chamado “Barra pesada”, deu grande destaque à reclamação de um usuário da unidade que ela dirige, denunciando falta de determinado medicamento essencial nos estoques. Filomena sabe que tal medicamento não deveria estar em falta, pois não só é de uso contínuo por parte de muitos pacientes como, na história da unidade, pelo menos depois que ela assumiu a gerência, isso jamais acontecera. Filomena sempre cuidou das solicitações à SMS com a maior atenção e acredita que desta vez talvez tenha falhado o esquema que montou, delegando a uma auxiliar (Fabiana) a elaboração da lista mensal de pedidos, há cerca de 15 dias. Ela só poderia intervir sobre o problema depois de passado o final de semana, pois a notícia lhe alcançou numa sexta-feira, quando tomou conhecimento do problema em casa, por intermédio de um de seus familiares, pois estava de licença, compensando horas extras da última campanha de vacinação.
Filomena já até marcou uma consulta com o psiquiatra no seu plano de saúde, pois se sente muito deprimida. Mas a espera que lhe anunciaram é muito grande. Meses…
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Na segunda-feira, Filomena é a primeira a chegar em sua unidade, disposta a esclarecer tudo. Mas logo de início é lembrada que Fabiana foi liberada (por ela própria) para compensar suas horas-extras e mais outros acertos e que só retornaria ao trabalho dentro de uma semana. Ela então resolve ir pessoalmente ao órgão central, pois tem convicção que este tipo de coisa é melhor resolver pessoalmente.
Entretanto, vê-se às voltas com outro contratempo: é dia de fechar alguns dos boletins do sistema de informação em saúde, uma tarefa árdua e morosa, pois o único computador disponível na unidade tem pelo menos meia década de uso e é de baixa potência, além de estar muito sobrecarregado de dados. Filomena se resigna a aguardar mais dois dias para executar a providência que tem em mente, pois sente que sua presença no serviço agora é muito importante, principalmente depois do noticiário depreciativo da TV.
Como o assunto mobiliza as atenções de todos os funcionários, no final da tarde Filomena recebe uma informação nova, originada de uma funcionária da limpeza, Adelaide, que lhe pede total sigilo a respeito do assunto. Segundo Adelaide, tudo o que aconteceu e que foi parar na imprensa pode não ter passado de uma armação, tendo em vista que uma usuária do serviço, por nome Maria, havia se desentendido com Fabiana há algumas semanas e, na ocasião, algumas pessoas ouviram a mesma dizer que “um dia se vingaria”. Consta também que o marido de Dona Maria, de nome Alcebíades, líder comunitário na região, vem se sentindo agastado com a unidade, fazendo não raramente críticas ácidas aos serviços prestados pela mesma e às pessoas que ali trabalham, acreditando-se que na origem de tal comportamento esteja o não-aproveitamento de algumas pessoas indicadas por ele para vagas de Agentes Comunitários de Saúde recentemente abertas.
Filomena acha que a denúncia tem razão de ser, pois dona Maria é dessas pessoas que frequentam a unidade muito amiúde e, embora se dê bem com muitos funcionários e particularmente com os médicos, com quem tem relações especialmente amistosas, não poupa outros membros da equipe de investidas, às vezes até caluniosas. Em uma outra ocasião, uma denúncia trazida por esta senhora, foi considerada como uma retaliação pessoal contra uma funcionária, vizinha de dona Maria, acusada por esta de “estar lhe paquerando o marido”.
Enquanto se entretém com tantas preocupações, Filomena acompanha cuidadosamente o fechamento dos boletins de informação e uma vez completado o serviço, não mais na quarta feira, como pretendia – pois houve falta de uma pessoa que a ajudava – mas sim na quinta, consegue ir até o nível central resolver a pendência que lhe atormentava já há quase uma semana.
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Aí, então, sua ansiedade só teve motivos para aumentar, pois não só o “Barra Pesada”, que havia denunciado o problema em primeira mão, como outros programas sensacionalistas de rádio, não falavam de outra coisa, até acrescentando detalhes comprometedores como, por exemplo, de que em inúmeras ocasiões ocorreram trocas de medicamentos no ato da entrega a pacientes, levando algumas pessoas a piorarem de seus sintomas. Filomena estava, então, literalmente, “à beira de um ataque de nervos.”
Na Secretaria viu suas suspeitas se confirmarem: o medicamento realmente estava fora da lista encaminhada duas semanas antes. Ela se ofereceu para levá-lo pessoalmente à unidade, já, mas o responsável pelo almoxarifado lhe faz ver que isso contrariava as normas da Secretaria, e que ela teria de esperar pela nova data de entrega prevista, dentro de dez dias aproximadamente.
Filomena lamenta, mas, afinal de contas, como ela era defensora intransigente da máxima de que “normas são normas”, acata a decisão de seu colega almoxarife e resolve aguardar pacientemente a normalização do atendimento.
Seus problemas, entretanto, estavam longe de acabar…
No dia seguinte, o Ministério Público entra na história, exigindo do Secretário uma explicação para a falta de medicamentos na unidade. Filomena, naturalmente, recebe a incumbência de justificar o acontecido, por escrito e em prazo de 24 horas.
Neste mesmo dia, o “Barra Pesada” manda um repórter à unidade para entrevistar Filomena e não a encontra, já que ela estava na Secretaria preparando o relatório que o gestor lhe pedira. O repórter diz que vai aprontar um escarcéu sobre a ausência da responsável, “em pleno horário de trabalho”.
Alguém lhe liga anonimamente para dizer que existiria uma rixa entre Adelaide e dona Maria, que também eram vizinhas e tinham desavenças antigas, não sobre maridos, mas a respeito de demarcação dos respectivos terrenos.
Para completar o quadro, Fabiana reaparece e alega que o medicamento não foi solicitado simplesmente porque havia quantidade suficiente em estoque (mostra provas…) e que deve ter ocorrido algum desvio.
Ato contínuo, o almoxarifado central se manifesta, pedindo que Filomena compareça para depor em uma comissão de inquérito visando esclarecer possível desvio de medicamentos na unidade.
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Numa altercação com uma funcionária que lhe parecia abusar de faltas por atestados médicos, aparentemente inverídicos, Fabiana ouve da mesma a crítica de que pelo menos se consultava sempre no serviço público, ao contrário da gerente, que tinha privilégios e buscava seu atendimento em plano de saúde.
E assim Filomena finalmente teve a sua hora marcada com o psiquiatra (ou seria psicólogo?) Doutor J. Pinto Fernandes, que ainda não havia entrado na história, mas viu-se obrigada a desmarcar a consulta.
Pano rápido…
***
Esta história merece alguns comentários…
Pobre moça! É o que certamente estamos todos pensando. Tão bem
intencionada, mas ao mesmo tempo tão sem sorte em sua vontade de
querer sempre fazer a coisa certa… Mas será que a culpa é da sorte? Ou dos próprios atos em que nossa personagem se mete? Ou os problemas dela estariam em outra parte, por exemplo, na estrutura em que Filomena está inserida? Melhor começarmos a procurar a causa de tantos males que afetam essa moça por este último caminho.
Embora isso não esteja explicitado na narrativa, um possível obstáculo poderia ser o fato de que Filomena não tem formação na área de saúde, não sendo médica ou enfermeira, por exemplo. Isso costuma gerar problemas, pois há uma crença generalizada que a saúde deve ser responsabilidade apenas deste tipo de profissional. Nada mais falso. Ou melhor, pode até ser verdade quando se fala de cuidado direto a pessoas, seja no plano individual ou no coletivo. Mas quando se trata de gerir meios, a coisa muda de figura. Pode até ser contraindicado que isso seja atribuído a médicos, por exemplo, cuja formação não contempla habilidades para tal exercício, embora comumente o senso comum acredite – de forma equivocada, aliás – que bons médicos sejam também bons administradores, o que nem sempre acontece e pode ser mais exceção do que regra.
Está claro também que Filomena trabalha em uma instituição
problemática. Isso porque visivelmente os processos de comunicação
internos são falhos, não há trabalho verdadeiro em equipe ou sob o
formato de redes, a infraestrutura também deixa a desejar – veja-se o
caso dos computadores, por exemplo.
Outra questão estrutural, porém de natureza externa, é o papel
exercido pela imprensa no caso. Mas melhor qualificar: de certa
imprensa. Com efeito, a cobertura da mídia para as ações de saúde tem
importância fundamental para o sucesso destas, veja-se, por exemplo,
as campanhas de vacinação ou de prevenção de doenças. O que seria
delas sem a presença e a insistência dos noticiários de jornais, rádio e TV? E aquelas campanhas associadas a cores, rosa, amarelo, azul, que já começam a ser incorporadas ao imaginário das pessoas? Mas no caso presente, os males que afligem Filomena têm natureza diferente do que é simplesmente a função de informar ou prestar serviços à população, tratando-se muito mais de um modo de exploração sensacionalista, que hoje ocupa muito espaço em toda parte. Por trás disso não apenas o interesse de lucro, por conta da audiência, mas também os interesses políticos e eleitoreiros de alguns comunicadores. E a saúde, as ações policiais e o tema da violência, costumam ser os alvos preferenciais disso.
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Filomena se afirma como uma cumpridora de normas. Em princípio, nada de estranho ou irregular nisso, pelo contrário. Aliás, reza a boa norma da burocracia que o que é vedado ao funcionário deve ser obedecido rigorosamente. Mas há sutilezas a serem consideradas. As
normas existem para serem interpretadas e muitas vezes a pouca flexibilidade na interpretação pode indicar também fuga a responsabilidades. A fronteira é delicada e foi provavelmente o uso desmedido de tal regra que levou um zeloso burocrata a abrir um
processo de investigação antes mesmo que a suposta omissão da lista de medicamentos fosse apreciada na origem, como deveria ser. O Ministério Público, presente de maneira um tanto intempestiva na ação, não mostra muitas vezes a isenção com que deveria cumprir sua missão institucional, ao buscar holofotes mais do que a verdade, pecando
assim por atitudes exatamente contrárias a isso.
Há também a questão demasiadamente humana das intrigas, ciúmes, briga de vizinhos, desavenças de diversas naturezas que afetam a vida das pessoas. Isso parece ser especialmente marcante nos ambientes das
periferias, nos quais as pessoas têm menos opções de lazer, acumulam
sofrimento e estresses diversos derivados da vida urbana, além de se
verem frequentemente frustrados em relação a suas expectativas de
consumo e usufruto de direitos essenciais estabelecidos nas políticas
públicas. E o resultado é sofrimento enorme, em estado puro, sendo
isso que muitas vezes leva as pessoas aos serviços de saúde e às vezes
as torna tão agressivas em relação aos que ali trabalham, vendo nestes
muitas vezes a causa essencial de seus males. E frequentemente ainda
são advertidas nos cartazes costumeiros nas paredes dos serviços de
saúde: maltratar servidor público é crime.
Questão sem dúvida delicada é aquela explorada por uma desafeta de
Filomena, que a acusou de ser privilegiada por utilizar para si
própria um plano privado de saúde. Na verdade, nada há de antiético ou ilegal nisso. O problema é que tal atitude pode despertar indagações
do tipo: então, o que você faz para os outros não serve pra você?
Seria banal se não fosse comum entre o pessoal que trabalha nos
serviços públicos de saúde – demasiadamente comum, talvez. E se a
pergunta não se cala, as respostas não costumam ser convincentes.
Como tudo na vida, os dilemas de Filomena possuem causas e
possibilidades múltiplas. Ela certamente é muito mais vítima do que
culpada ou algoz. Mas ao mesmo tempo não é lícito, como costumam fazer as lideranças corporativas, colocar a culpa sempre nos outros, sejam eles os governantes, o setor privado, o Legislativo, os membros de
outras esferas da burocracia estatal, os usuários etc. Do jeito que o
nosso sistema de saúde anda, o melhor é começarmos a fazer uma
profunda autocrítica, generalizada.
**Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.