Dr. Flávio de Andrade Goulart*

Acabo de receber e passo a comentar, Subsídio ao resgate e atualização do SUS constitucional (A luta continua), texto avulso, dentro do bom costume do seu autor, pessoa pouco afeita às burocracias acadêmicas, meu amigo Nelson Rodrigues dos Santos, o Nelsão. Mas antes disso, algumas palavras sobre ele. Em primeiro lugar, ser conhecido por um apelido carinhoso, não pelo nome pelo qual se é conhecido no banco ou no cartório, não deixa de ser um atributo que poucas pessoas obtêm como privilégio ao longo da vida. Exemplos notáveis que me vêm à mente: Pelé, Lula, Betinho, Nonô, Mandela, Chico. Conheço este cara ímpar desde os tumultuados e generosos anos 70. Eu era um jovem médico (ele é apenas um pouquinho menos jovem do que eu) e já ouvira falar da saga daqueles moços que haviam embarcado numa canoa que parecia promissora, a criação do curso de medicina e, quase simultaneamente, da secretaria municipal de saúde de Londrina. E acompanhei também a peleja daquela moçada contra um coronel de plantão, agente da ditadura ali implantado. Embarcar em canoas que pareciam promissoras e depois fizeram água: uma boa imagem para definir a história de toda uma geração que se envolveu com as coisas da saúde neste País. Mais tarde, meados dos anos 80, na euforia da redemocratização, em tempos mais promissores para a saúde, o jovem de Londrina estava agora em Campinas, como Secretário Municipal de Saúde e ali organizou uma reunião de seus pares paulistas. Foi gentil comigo, recém-nomeado Secretário em Uberlândia e praticamente desconhecido no meio, convidando-me para tal reunião. Pode parecer coisa simples e banal, mas foram eventos como este, inéditos até então, que começam a delinear o que viriam a ser, um pouco mais tarde, os conselhos de secretários municipais de saúde. Pouco depois disso, estávamos todos, ainda jovens e cheios de expectativas, na oitava Conferência Nacional de Saúde, em Brasília. Ali nosso personagem circulava ativamente em seu traje cotidiano, camisa branca para fora das calças e sandálias, nos salões e arquibancadas do Ginásio de Esportes, à procura de colegas de todo o Brasil. O resultado foi uma reunião informal, realizada em uma das arquibancadas, com algumas dezenas pessoas presentes, todas ligadas à gestão municipal e assim começou a nascer o Conasems, apesar da singeleza e informalidade daquele momento. Ali fizemos um pacto de organizarmos ao máximo à nossa base para levarmos no ano seguinte, em Londrina a proposta da criação de um organismo nacional de SMS. Dito e feito!
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No referido texto, redigido na linguagem simples e pontuada que é própria do estilo Nelsão de escrever, ele faz considerações sobre o momento presente da saúde no Brasil, apontando fatos e questões conjunturais dos 33 anos que se passaram desde a promulgação da Constituição, além de alguns de natureza mais miúda e contextual. E nos são apresentados dados muito bem garimpados sobre o SUS, seu financiamento, a relação público-privado, o modelo constitucional de saúde e sua herança, em tudo se denunciando o verdadeiro descolamento da esfera federal em relação àquelas estaduais, municipais e da sociedade. Destaca-se ainda o verdadeiro abalo que a atual a pandemia provocou na Economia, não só no Brasil. mas também no mundo, com seus impactos na democratização das relações entre Estado e Sociedade. Não são descuidadas, também, as propostas enfeixadas em termos de prioridades estratégicas em relação às diretrizes constitucionais da regionalização e da hierarquização.
Assim, em linhas gerais, Nelsão nos propõe: 1) a elevação dos investimentos federais na saúde, em todos os níveis; 2) a modernização da gestão pública, com foco na universalidade, equidade e integralidade, bem como a construção da governança ao nível regional, a otimização da relação custo-efetividade e a participação dos trabalhadores de saúde da população usuária; 3) a regulação mais efetiva, por parte do Estado, dos serviços privados complementares ao SUS; 4) revisão da relação entre Estado e setor privado suplementar, substituindo o financiamento público direto ou indireto (renúncia fiscal), por dispositivos próprios do mercado, mas sempre dentro das diretrizes constitucionais.
Não há por que contestar qualquer um de tais tópicos. Eles apontam para o essencial e o que caberia, dentro dessas minhas breves e modestas considerações é no máximo tentar levantar algumas questões pertinentes aos mesmos e que se abram em seu detalhamento para melhor esclarecimento. Pensar sobre isso, aliás, deveria ser uma tarefa de todos que se preocupam com os rumos atuais de nosso sistema de saúde e se dedicam a pensar sobre os destinos do mesmo.
Quanto à necessidade de incremento dos investimentos federais na saúde, não há muito o que dizer. Eles são insuficientes, mesmo quando comparados a países de situação econômica inferior à do Brasil e, além do mais, mostram uma grande desproporção com o gasto privado no país.
Da mesma forma, o muito que fala em gestão inadequada na saúde no país não deixa de ser verdadeiro, mas há que fazer distinções. A modernização da gestão pública, conforme propõe o texto, é essencial, mas sempre cabe lembrar que isso, embora potencialize a utilização racional de gastos, não é capaz de resolver completamente o problema do desfinanciamento da saúde. São coisas que devem ser tratadas conjuntamente e Nelsão aponta corretamente a colocação de focos nítidos nisso, ou seja, a universalidade, a equidade e a integralidade, sem esquecer – acrescento eu – que se introduza também a noção de valor na atuação do setor público, ou seja, na mensuração criteriosa dos resultados em saúde, relativos aos custos que correspondem aos mesmos, seja para o sistema de saúde, prestadores, trabalhadores, financiadores e, principalmente, para a sociedade e para os pacientes em geral. Noções associadas a isso são: a eficiência, o controle de custos, a transparência, a redução de riscos, a definição de indicadores, a adequação de tecnologias, o trabalho em equipe, a responsabilização dos gestores, o compartilhamento de informações, a coordenação do cuidado, entre outras.
A construção da governança é outro aspecto fundamental, mas eu ampliaria o conceito para além do nível regional. Cabe lembrar que problemas de natureza sanitária, econômica, demográfica, cultural e política não têm como serem resolvidos de maneira singela ou apenas dentro dos moldes formais, nos limites de municípios ou estados, isoladamente. Há que buscar, de fato, uma governança integrada, o que requer a ampliação do escopo da gestão dos vários participantes da equação assistencial, em termos de meios e de fins. Assim, novos arranjos institucionais devem ser experimentados, fugindo do mais do mesmo e do cada um cuida de si tradicionais, para buscar fundamentos em valores de solidariedade e cooperação, com definição de novos papéis e novos modus operandi das máquinas administrativas, com foco na responsabilização das três (sublinhado meu) esferas gestoras. Só assim será possível afastar os fantasmas do predatismo e da competição, o que implica em aumentar recursos e poder decisório, não necessariamente de cada um dos entes federados, mas do conjunto deles, com a criação de instrumentos eficientes de gestão integrada, sem abrir mão da responsabilização individualizada de cada ente envolvido.
Mas, atenção, não custa lembrar: não se pode prescindir do exercício de atributos do Gestor Federal, que não sejam apenas o de arbitragem, mas também de agente ativo dentro de uma expressiva atuação trilateral, sem que isso se transforme em usurpação do poder pelo governo central. Isso implica em que as próprias atribuições específicas em saúde de cada ente federativo sejam ampliadas, de forma a incluir a coordenação das ações e programas de saúde; o desenvolvimento dos sistemas locais e microrregionais de saúde; o fomento à integração dos serviços públicos de saúde comuns; a utilização cooperativa dos instrumentos de planejamento local e regional, entre outras possibilidades, tendo como foco o a redução das desigualdades sanitárias.
Mas atenção, neste ponto é preciso reconhecer um aspecto conjuntural, ou seja, que a modus operandi do atual governo, marcado pelo predatismo, autoritarismo e arcaísmo nos modos de fazer política, torna as mudanças muito difíceis de acontecer, embora seja preciso, mais do que nunca, insistir em sua defesa.
O texto defende ainda uma regulação mais efetiva, por parte do Estado, dos serviços privados complementares ao SUS, “para atuar como se públicos fossem”, o que implicaria numa revisão da relação entre Estado e setor privado, seja ele complementar (serviços contratados) suplementar (planos de saúde), tendo como desdobramento imediato a substituição do modo de financiamento público direto ou indireto (renúncia fiscal), por leis próprias do mercado, mas ainda dentro das diretrizes constitucionais.
Nada mais correto, isso tem a clareza e a obviedade das coisas sobre as quais sempre nos perguntamos: por que não é assim ainda? Aliás, quando vemos os questionamentos a uma maior integração entre o setor público e o privado na saúde, por exemplo, facultando a atuação privada em determinados segmentos da assistência, o primeiro obstáculo que os defensores mais intransigentes do SUS interpõem é justamente aquele que aponta uma porta aberta para a corrupção. Isso tem sido a realidade factual, mas não seria o caso, então, de gastarmos mais energia intelectual e política na melhoria do desempenho do Estado brasileiro, de modo a torna-lo mais capaz de regulamentar e fiscalizar os contratos e demais instrumentos de parceria com a iniciativa privada? A tônica de tais debates tem sido a de lamentar a escuridão, longe de acender alguma luz sobre ela.
Nelsão contesta a hegemonia da gestão federal ao longo das três décadas de existência do SUS, o que é fato real. Ao mesmo tempo, dignifica “a experiência acumulada da gestão descentralizada (estadual e municipal) contra-hegemônica”, rica em “criatividade e articulações”, na formulação e realização de ações intensivas e contínuas em prevenção e assistência, “no limite dos seus recursos e dos efeitos das distorções federais”.
Isso não deixa de ser afirmativa correta e confirmada empiricamente em toda parte, mas há outro lado a ser observado: contra-hegemonia e criatividade nem sempre são ingredientes suficientes para se fazer uma boa gestão na saúde, é preciso mais, por exemplo, democratização da gestão, competência técnica e atenção aos ditames da realidade. Não é à toa que alguns cientistas políticos têm chamado atenção para as altas doses de autoritarismo e clientelismo que (também) marcam as gestões estaduais e municipais, que neste aspecto se rivalizam com a atuação federal.
Por outro lado, não se pode descartar ou desconfiar liminarmente da atuação federal, afinal parte das famosas “três esferas de governo”, na gestão do sistema. Em alguns casos, por exemplo, na definição de prioridades nacionais, nas calamidades sanitárias e na compra de insumos estratégicos, ela deve ser hegemônica mesmo – mas que fique claro que estamos falando de tempos normais e de governos idem.
O texto aborda supostas barreiras à construção do SUS, verdadeiras janelas de oportunidade perdidas, erigidas ao longo dos últimos trinta anos, sendo citados alguns exemplos de situações descartadas ou ignoradas “pela instância federal”. São assim lembradas a construção das Normas Operacionais Básicas, nos anos 90; a NOAS do início dos anos 2.000; o Projeto Integrado para a Qualificação da Gestão Descentralizada, também desta época; os chamados Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão, de 2006; o PL121/2007; a Lei federal 141/2012, além de outros.
É de se lamentar mesmo. Aliás, a construção do SUS no Brasil é profundamente marcada pela destruição sucessiva de boas ideias e inciativas. Em relação a essa verdadeira nêmesis apontada por Nelsão é bom lembrar alguns fatos inquestionáveis, todavia. Algumas dessas iniciativas tiveram origem em uma burocracia iluminista do Ministério da Saúde, dotada de um poder demiúrgico autoatribuído. Outras não tiveram força de lei, mas apenas de normas e portarias sem grande potencial de alterar o panorama. Nem todas passaram por um crivo de discussões e ajustes por parte dos gestores das três esferas. Quase sem exceção, tentaram tratar a variegada realidade dos entes subnacionais como se fossem uma coisa só, com as mesmas necessidades e aspirações. Há ainda aquelas que se perderam nos labirintos de um pensamento desejoso, aliás comum à militância do SUS, dentro do qual os fatos sociais importariam menos que a compulsão normativa. Ao fim e ao cabo, trata-se daquela histórica escultura do SUS a golpes de portaria, sobre a qual eu mesmo já tinha falado em artigo escrito ainda nos anos 90.
O Ministério da Saúde, afirma o autor, representaria um Ministério de Governo, subalterno àqueles ditos de Estado, como Casa Civil, Economia, Defesa, por exemplo, já que estes últimos seriam os que articulam junto ao Legislativo as votações e tramitações dos projetos de Lei. Isso teria motivado as oportunidades perdidas referidas acima, além de intermediar, não para o bem, as reais relações do SUS com os subsistemas privados de saúde. Não deixa de ser um problema real, mas que talvez possa ser relativizado por compor uma práxis que é parte do modus operandi da democracia, com todas as dificuldades a ela inerentes, mesmo que exercida de forma pouco desejável.
Nelsão cita o respeitado sanitarista Gonzalo Vecina Neto, que indaga sobre os erros e equívocos políticos e de gestão que teriam sido cometidos em etapas e governos anteriores. Nada mais correto do que lembrar disso. O atual governo, sem dúvida, bate todos os recordes de incúria, irresponsabilidade e incompetência política e administrativa. Mas o desmonte que ora se acentua já vinha em curso antes. Haja vista, nos últimos anos, não só no panorama temer-bolsonariano, a sucessiva troca de Ministros (para atender as exigências deste mesmo Centrão que ora assola o País); as idas e vindas das políticas, por pressões eleitoreiras, ideológicas e corporativas; a autêntica guarda de galinhas por parte de raposas, com a entrega de setores do MS a notórios portadores de interesses pouco republicanos ou em baixa sintonia com as ideias mestras do SUS.
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Concluindo, o grande dilema com que se debate Nelsão (e nós todos sanitaristas, afinal) não é apenas entre público x privado; otimismo x pessimismo; janelas abertas x janelas fechadas; apenas denunciar x agir politicamente. É bem mais do que isso – eu explico a seguir.
Vejo certa nostalgia de nós sanitaristas em relação ao expressivo desenvolvimento teórico da Saúde Coletiva nos anos da Reforma Sanitária, com aquela incorporação de uma sofisticada trama de categorias sociológicas, que entretanto foi substituída, mais adiante, por um pensamento sistêmico mais pragmático e instrumental. Assim escapamos, na luta em trincheiras da resistência ao arbítrio, de certas visões dicotomizadas de mundo, ao mesmo tempo em que demos de cara com a realidade, na construção, de forma pragmática e instrumental, do sistema de saúde pelo qual pugnávamos. Assim, pensávamos que uma verdadeira salvação da saúde pública se alcançaria mediante a libertação deste campo de saberes e de práticas de sua carga positivista, objetivista, instrumental que o ofuscaria, para fazendo dele um saber (entre outros) sobre a produção de saúde e de doença, afastado da arrogância de querer ser “o Saber”.

E foi assim que a gente continuou sonhando com um campo de conhecimentos e de práticas que produzisse não objetos sujeitados, mas seres com potencial para pensar e mais, dotados de uma vida livre, na contramão dos economistas e dos políticos, com autonomia relativa ao Estado, aos partidos políticos, às ideologias, dentro de um cenário no qual fosse minimizada a alienação das pessoas. Uma missão, enfim, para um personagem certo: convoquêmo-lo: Shazam!
Mas isso significaria, ao mesmo tempo, que aquela transcendência pretendida pela saúde pública tradicional, com todo seu viés autoritário, excludente, instrumental, etc fosse substituída por uma nova exegese, de feição pós-moderna e politicamente correta, assentada na emancipação do homem. Seria a Saúde Pública da Libertação, à maneira de Boff & Betto? Convoquemos, então, não o Super Homem, mas São Francisco de Assis para dar contra de algo assim!
É por aí que vai o grande dilema, não só de Nelson Rodrigues dos Santos, mas de todos nós, ainda mais em tempos tão estranhos como os atuais. Resumindo: encarar a missão de sermos objetivos, pragmáticos e razoáveis em nossas propostas de mudar o mundo da saúde, mas ao mesmo tempo exercitarmos nossas utopias – e conciliar as duas coisas.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.