Dr. Flávio de Andrade Goulart*

[Com a colaboração de Henriqueta Camarotti]

“Acolhimento” é um termo muito versátil. Vale para questões afetivas e simbólicas, mas também para definir uma metodologia de trabalho não só em saúde como em outras ações sociais e até mesmo serve ao campo jurídico ou comercial. O dicionário Houaiss registra que a palavra provem do latim vulgar accolligère, com significados de colher, reunir, apanhar, juntar. No uso corrente pode ser “oferecer ou obter refúgio, proteção ou conforto físico; proteger(-se), abrigar(-se), amparar(-se)”; “dar ou receber hospitalidade; hospedar(-se), alojar(-se), recolher(-se)”; “ter ou receber (alguém) junto a si”. E em sentido mais formal ou jurídico pode ser também receber, admitir (algo); aceitar ou dar crédito, levar em consideração (pedido, requisição etc.); atender. A aplicação do conceito de acolhimento em saúde possui pelo menos três dimensões genéricas: (a) como componente de políticas específicas (Humanização e Atenção Básica);(b) organizacional e ambiental, em termos de estrutura e processos; (c) simbólica, envolvendo aspectos afetivos e de responsabilização individual e coletiva. Este texto se dedica precipuamente a este último componente, mas antes de passar a ele vamos nos deter brevemente nos dois primeiros.
Nos termos da Política de Humanização em Saúde, também conhecida como Humaniza-SUS, está dito que acolher significa reconhecer o que o outro traz como legítima e singular necessidade de saúde, sendo ação que se dá entre as equipes e serviços de saúde, de um lado e usuários e populações, de outro. É além disso considerado um valor nas práticas de saúde, a ser construído de forma coletiva, partindo do conhecimento dos processos de trabalho e tendo como objetivo construir relações de confiança, compromisso e vínculo entre seus componentes, incluindo aí a rede socioafetiva. Aspecto central do mesmo é a escuta qualificada diante das necessidades do usuário, tendo como consequência a garantia de acesso oportuno dos usuários a tecnologias adequadas às suas necessidades, de forma a ampliar a efetividade das práticas de saúde, implicando em avaliação de vulnerabilidade, gravidade e risco dos mesmos.
Entre as inúmeras diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica (regionalização e hierarquização; territorialização; participação; coordenação da rede de atendimento; cuidado centrado na pessoa; resolutividade; longitudinalidade) o acolhimento tem relação direta com os quatro últimos. Assim, o cuidado centrado nas pessoas representa ações de cuidado singularizadas e que permitam às pessoas desenvolver conhecimentos, aptidões, além de confiança para tomar decisões sobre sua própria saúde; a resolutividade tem a ver com a articulação de diferentes tecnologias de cuidado individual e coletivo, além de vínculo, para produzir intervenções efetivas e garantidoras de ampliação da autonomia dos pacientes; a longitudinalidade diz respeito à continuidade da relação de cuidado, mediante construção de vínculos e responsabilização entre profissionais e usuários ao longo do tempo e de modo permanente. A coordenação do cuidado, embora de alcance e responsabilidades mais amplos do que aquela do acolhimento em si, existe para acompanhar e organizar o fluxo dos usuários entre os pontos de atenção da rede de serviços de saúde.
Acolhimento como estrutura e processos respectivos: o conceito orientador é o de espaço saudável e confortável, onde se respeite a privacidade das pessoas e também ocorram processos de trabalho específicos de promoção e cuidado em saúde. Deve ser diferenciado de simples “triagem”. Ponto de encontro entre as pessoas, com ambiente de acordo com as necessidades de usuários e trabalhadores. A equipe pode variar de um serviço pra o outro, mas na atenção básica é fundamental a presença (e a coordenação) da enfermagem.
Nos serviços de saúde normalmente se costuma pensar no acolhimento na relação com pessoas portadoras de alguma doença ou disfunção, mas deve ser incluído aqui o sofrimento humano como o motivo da procura dos serviços, não importando se há uma doença a ser tratada. Na prática, expressiva demanda na atenção básica está motivada pelo sofrimento da vida, das emoções exaltadas ou mesmo das dificuldades enfrentadas objetivamente no cotidiano, tais como falta de condições, recursos, dependências de álcool e drogas de filhos e maridos, violência doméstica ou urbanas, problemas escolares ou mesmo no trabalho etc.
Para falar de acolhimento na rede de serviços de saúde é imprescindível considerar aspectos afetivos ou simbólicos, e por que não dizer filosóficos. Este campo envolve diretamente a postura de todos envolvidos na atenção à saúde, não só as equipes de profissionais da saúde, mas também os gestores, formuladores de políticas, funcionários administrativos, pessoal de manutenção e apoio, além dos usuários e seus familiares. Estamos falando aqui de uma corrente de eventos dentro da qual se promove e se produz saúde, cabendo garantir que todos seus elos sejam robustos, pois a fragilidade de apenas um deles comprometerá toda a corrente. Nada mais essencial, portanto, do que a própria postura acolhedora em qualquer ato de produzir ou promover saúde.
Em relação às pessoas dedicadas a acolher pessoas e promover a saúde das mesmas, de suas famílias e da comunidade, é importante destacar a necessidade de flexibilidade dos papeis. Normalmente, as funções estão bem definidas nos serviços de saúde, o que tem sua utilidade, mas é também necessária uma disponibilidade ampliada, de fundo solidário, para informar, buscar informações, servir de elo nos encaminhamentos, assegurar compromissos fora das unidades e até mesmo, por que não, tocar a mão de alguém em sofrimento, oferecer o olhar, tocar e ser tocado pela essência do outro, empurrar uma cadeira de rodas ou uma maca em caso de urgência ou necessidade. Bom exemplo disso são os médicos que chamam diretamente seus pacientes pelo nome nas portas dos consultórios, aparecendo perante os mesmos e não incumbindo alguém de fazê-lo. Aspecto diferencial na qualificação de um profissional, mesmo especializado, deveria ser sua postura de se desdobrar para resolver o problema de dado paciente, mesmo de forma indireta, mesmo que venha a fazer mais que “sua obrigação”?
No campo simbólico, ainda, no que diz respeito aos profissionais e demais servidores, é preciso promover a disponibilidade contínua de aprender novas abordagens, descobrir diferentes formas de melhor ajudar os pacientes, além de se desenvolver como pessoa e procurar o autoconhecimento. A saúde da comunidade se constrói, fundamentalmente, pelo aperfeiçoamento das equipes enquanto pessoas e seres afetivos, dispostos a oferecer o melhor de si, o que representa uma gama de valores mais profundos, de amorosidade, de generosidade, de empatia e de compaixão.
Cabe falar alguma coisa sobre a compaixão, um aspecto frequentemente pouco valorizado na atenção à saúde, por ser considerado, equivocadamente, como alheio ao mesmo. Mas se trata, sem dúvida, de um conceito imprescindível em tal campo, além de ser aplicável a todo o conjunto das relações humanas. Mas na saúde, especificamente, é preciso compreender melhor sua expressão no contato e acolhimento daqueles que sofrem e procuram ajuda. Afinal, o cérebro do Homo sapiens sapiens, como mostra a ciência contemporânea, já estaria naturalmente dotado dos chamados neurônios espelho, substratos básicos da faculdade de desenvolver empatia, ser compassivo, acolher e sentir o sofrimento dos demais. E mais ainda: por meio de tal estrutura é que se desenvolve o sentimento de agir em beneficio daqueles que estão à nossa frente, tratando-se de condição inerente à espécie humana sapiens, qual seja a de sentir o sofrimento do outro e fazer algo para amenizá-lo. Segundo os evolucionistas da atualidade a nossa espécie logrou sobreviver evolutivamente pela capacidade natural de cooperação e cuidado com os demais, um tema de forte significado. E isso também depende de estímulo e treinamento, o que traz à luz responsabilidades dos setores de capacitação de RH nas instituições de saúde.
Com foco na saúde, o exercício da compaixão deveria permear nossas atitudes nas instâncias do cuidado, por exemplo, na aplicação de uma injeção algo desse sentimento flui junto; na prescrição de um medicamento expressa-se no desejo de curar; no transporte de pacientes nos corredores de hospital, o exercício de um processo da superação; nas portarias, desdobrando-se em carinho e afeto por aqueles que recorrem às unidades de atendimento. Em síntese, o campo da compaixão compreenderia as ações permeadas por sentir a dor do outro e de ser interpelado a agir com interesse e pró atividade. A compaixão deve ser ingrediente fundamental de todas as ações no campo da saúde.
Finalmente, inclui-se o trabalho transdisciplinar, quando diferentes áreas transcendem sua postura limitante e abrem espaço para um encontro aberto e profícuo em beneficio daqueles que precisam de soluções em benefício de sua saúde. A princípio parece óbvio o trabalho em equipe, mas no cotidiano os profissionais costumam se fechar em castelos do saber e não se apoiam mutuamente na busca da melhor resolução. Mais uma vez há uma tendência a se fechar em compartimentos estanques, cada um tendendo a achar que sua área irá resolver isoladamente a complexidade do sofrimento humano.
Em suma, a postura de acolhimento verdadeiro inclui a disponibilidade em aprender junto, crescer com a experiência, se interessar pelas ações dos demais colegas de trabalho, dando o melhor de si e de cada um. É preciso compreender e dar força, ainda, ao conhecimento que os pacientes trazem de si mesmos, sua intuição e aprendizado da resiliência diante do enfrentamento da doença. Acolher tal saber reforça a capacidade de usuários e seus familiares no caminho de superação da doença.

*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.