Dr. Flávio de Andrade Goulart*
Mil e um dias de (des)governo. Às vezes me sinto vivendo em tempos bíblicos, de pestes, pragas de gafanhotos, línguas de fogo e dilúvio universal. Ou em algum outro planeta. Por exemplo, quando percebo que entre os médicos, categoria de que faço parte, embora não tão orgulhosamente como outrora, o bolsonarismo ganhou adeptos inumeráveis, dentro de uma perspectiva que escapa à mera ideologia, indo muito além disso para o terreno do caráter (ou da falta dele) ou da desfaçatez e da ignorância. O sentimento de estranhamento se adensou quando vi, há algum tempo, meus colegas da turma de 1971 da velha Faculdade de Medicina da UFMG, que em outros tempos rejeitavam a ditadura militar, reunidos em grupo de whatsapp trocando animadas mensagens de adesão aos arroubos e delírios conservadores e autoritários, quando não negacionistas, “capitaneados” pelo atual ocupante da Presidência da República. É triste e repugnante, sem dúvida. E eles não seriam exceção, eis que leio na revista Cult (ver link ao final) a informação de que grupos de médicos representam hoje uma das mais importantes correias de transmissão de fake news bolsonaristas no Brasil. E, além disso, sob o olhar cúmplice e complacente do Conselho Federal de Medicina e outras entidades de classe, sabotam e desacreditam as normas da OMS, promovendo e prescrevendo falsos medicamentos, questionando as medidas de isolamento, negando, enfim, a pandemia, ao minimizar seus efeitos, em termos de mortes e incapacidades dela decorrentes. O que afinal teria acontecido com aqueles antigos jovens libertários ou, pelo menos esclarecidos, como éramos nos anos 60 e 70?
Não há como recorrer ao benefício da dúvida ou da ignorância, nem mesmo a quaisquer defensivas baseadas na neutralidade, na recusa em aceitar a polarização ideológica (de resto, irracional), ou em alguma desconfiança na informação de que se dispõe hoje. Em tal questão, não há “dois lados”, mas apenas um, o da verdade, da ciência, do bom senso e da recusa e denúncia puras e simples à barbárie necrófila que se pretende impor ao Brasil.
Essa gente miliciana, que já fazia seus exercícios táticos há três ou quatro anos, seja insultando os médicos cubanos ou gritando palavras de baixo calão contra quem lhes cheirasse a “inimigo da classe”, já não representa apenas um constrangimento moral e uma vergonha para a nação. Eles configuram a negação de tudo o que a medicina deveria ser, ainda mais quando morrem alguns milhares de brasileiros por dia e quando o total de mortos chega a 600 mil e quatro atabalhoados ministros, três deles médicos, já tomaram posse no Bloco G da Esplanada do Ministérios. Essa gente é um escárnio para o Brasil e como disse o articulista do texto acima: a quem recorreremos se o médico que nos atender pode estar mais interessado em defender sua facção política e suas crenças tribais do que em nos tratar?
É claro que existem por aí advogados, empresários, políticos, engenheiros, enfermeiros etc com esta mesma feição. Mas falo aqui apenas da categoria que me está mais próxima, embora o padrão de comportamento seja o mesmo.
O bolsonarismo como fenômeno político existe de fato, sendo inúmeras as análises disponíveis sobre o mesmo, seja de cientistas políticos, sociólogos ou jornalistas, que identificam e tipificam tal fenômeno. Para mim é mais uma questão de caráter do que de ideologia – e também de ética (ou estética). Suas características se sustentam em crenças messiânicas, que passam pela militarização da sociedade; pelo atendimento a uma suposta “vontade do povo”; pela hostilidade à ciência e também pelo anticomunismo, embora seus acólitos não sejam geralmente capazes de definir cada um desses termos. Pisoteiam diariamente a palavra “liberdade”, ao confundi-la com a divulgação de notícias falsas e com a transgressão de regras sanitárias de proteção coletiva,
Achá-los apenas ridículos, bem como a seu líder, não resolve o problema, antes apenas os torna mais agressivos e cheio de certezas. É claro que eles vivem dando oportunidade para isso, mas, convenhamos, parece haver certa metodologia por trás de tal comportamento, e reduzir o caso a mero histrionismo de sujeitos “sem noção” seria um erro fatal.
Recorro aqui a Zygmunt Bauman, um filósofo polonês contemporâneo, que desenvolveu o conceito de modernidade líquida, para configurar uma época em que as relações sociais e individuais, além das econômicas, políticas e de produção se tornaram frágeis, fugazes e maleáveis, à maneira dos líquidos. Isso poderia parecer vantajoso em alguns aspectos, mas pode ser também porta aberta para distopias sórdidas, como é o caso da adesão de muitos médicos ao bolsonarismo e o negacionismo científico peculiar ao mesmo.
Isso se evidenciaria, por exemplo, pelos fetiches compartilhados pela massa que se mantem presa ao imaginário propagado pelo ex capitão, como, por exemplo: a crença em uma promessa de felicidade e de grandeza, com fundamentos na pátria, na família e em Deus; a segurança a ser conquistada através do armamento das pessoas; o vislumbre de um “Brasil grande”, retroagindo a um sonho da ditadura militar; a força do individualismo empresarial, religioso, pessoal; a conclamação a um modo de vida self-made (“deixar de ser maricas”, “parar com mimimi”, voltar urgentemente ao trabalho, por exemplo); a transferência de culpa a terceiros, geralmente identificados como comunistas, esquerdistas, chineses, interesses estrangeiros, prefeitos e governadores; a aceitação do medo como instrumento de ação política; a desconfiança não só em relação ao “sistema” (seja lá o que isso for), mas também em relação às conquistas da ciência, entre outros aspectos.
Mas o caso dos médicos, embora atendendo a estes requisitos, tem suas particularidades. A principal delas é a perda de prestígio que a profissão experimentou no Brasil nas últimas décadas. E por vários motivos, não apenas pelas sucessivas crises econômicas que lhes retiraram clientes ou pela regulamentação e busca de equilíbrio financeiro defendidas pelos planos de saúde, como eles gostam de afirmar e colocam em primeiro lugar na lista de suas mazelas. Porém há mais do que isso, ou seja, fatores intrínsecos à profissão, como o proverbial distanciamento da categoria face às necessidades e demandas da sociedade e sua dificuldade em dialogar e exercer algum intercâmbio social, a não ser pela via eleitoral e mesmo assim dentro de partidos e plataformas conservadoras, geralmente. O fato é que o que era antes sólido pra os médicos, ou seja, serem partes daquela prestigiosa profissão à qual poucos logravam alcançar, agora se desmancha em um mundo “líquido” que eles já não mais se reconhecem e não conseguem interpretar, onde já não encontram o apoio do passado para se orientar e se salvar do afogamento.
Em tal universo fluido, as lideranças corporativas, como aquelas exercidas no CFM, nas associações médicas e nos sindicatos flutuam ao léu, e já não sabem o rumo a dar a seus associados, procurando apoio no mundo político e dele se tornando caudatários, em terreno onde antes reinavam soberanos. E então sonham com gloriosos tempos passados (supostamente), que muitos dos recém incorporados nem conheceram de fato.
Assim, entre os bolsonaristas, médicos ou não médicos, restou certo poder na ponta dos dedos, como lembra Bauman, ou seja, o uso irresponsável e sem limites das redes sociais e da difusão de informações falsas, sem qualquer apoio no bom senso e na realidade, coisa que fazem utilizando a máscara do anonimato, a confortável solidão, as zonas de conforto, narradas por tal autor como características daquele cenário líquido. Em tal contexto, o que interessa é falar entre símiles, dentro de uma bolha, não com quem pense diferente, não importando a perda do enraizamento na realidade.
A marca antissistema do bolsonarismo médico é outro aspecto digno de aprofundamento. A qual sistema se opõem os doutores, afinal? Certamente, trata-se apenas da parte de que se sentem excluídos, embora não sejam capazes de estipular exatamente os conteúdos de tal “sistema” e nem mesmo de tal sentimento de exclusão. Sua argumentação poderia ser melhor definida como uma peroração mal informada, oscilante, escassa em vocabulário e quase sempre desqualificadora, não raro apelando para a galhofa, o que lembra aquilo que Bauman tratou como verdadeira carnavalização, ou seja, situações nas quais se coloca uma máscara, o que facilita seus agentes se agitarem juntos, freneticamente, fugindo assim da ordem natural das coisas, traduzindo sentimentos de raiva, desprezo e derrota. mas não desejos de mudança compartilhada. Não chega a ser coisa de gente consequente, mas apenas de verdadeiros títeres em mãos manipuladoras (mas que não deixam de saber o que estão fazendo).
É fruto de tal “carnavalização” a negação que tal grupo perpetra contra tudo de que se julga ameaçado, seja o Judiciário, o esforço regulador na saúde, o equilíbrio dos poderes, as conquistas sociais no campo dos costumes, o pensamento de esquerda, o “globalismo” e ainda, de forma mais estarrecedora, a ciência. É aí que entra o negacionismo relativo à atual pandemia, exercido ao arrepio não só das evidências científicas, mas do sentido de humanidade em geral. E daí: eis uma síntese do que dizem eles diante da inominável tragédia que ora assistimos no Brasil.
Assim os médicos e outros grupos sociais que aderiram ao bolsonarismo se veem no âmago de um policentrismo complexo de que fala Bauman, no qual subsistem instâncias diversas e desconectadas, entre elas as velhas entidades “de classe” e partidos, as “bancadas temáticas”, as igrejas neopentecostais, as organizações de certo lumpen-empresariado, os gabinetes de ódio, os grupos pró cloroquina e antivacina. E ali dão suas cabeçadas, sem entender de fato a essência do turbilhão que os rodeia.
Voltemos a Gomorra. A referência à cidade bíblica aqui não tem caráter religioso ou moralista. Apenas para lembrar de um ambiente de erros (e pecados, sem dúvida) no qual as pessoas vão levando a vida se nenhuma percepção do fim que lhes aguarda.
Acordem, doutores, o velho mundo já morreu e o novo ainda não nasceu – e o que lhes dizem ser novo de novo não tem nada. Enfim, quem um dia fez o juramento de Hipócrates e assumiu a missão de salvar e acolher pessoas, no sentido mais profundo de tal termo, deveria descer do pedestal e se aperceber do sofrimento consequente ao descaso, ao abandono de nossa população, à violência que o bolsonarismo vem impondo ao país. É imperativo prestar atenção nos desdobramentos da truculência que hoje impera nas redes sociais e nas relações interpessoais diretas, fomentadoras do retrocesso civilizatório que vivenciamos. Mais do que tudo isso, é preciso tomar consciência da finalidade precípua da medicina em aliviar o sofrimento e tornar a humanidade mais justa e pacífica, como ato político consciente, não meramente voluntarista e desinformado. (Com a colaboração de Henriqueta Camarotti).
*Flávio de Andrade Goulart é médico, professor de Medicina na UFU e na UNB, secretário municipal de Saúde em Uberlândia e é sobrinho do poeta Carlos Drummond de Andrade.